segunda-feira, 31 de agosto de 2009

VI

Tenho o rio na boca.
Tenho os pés abrasados
do atrito das poeiras
imersos no bálsamo da água.
Tenho a voz extenuada de dizer
à água que nunca se detém:
salve, ó cheia de pressa.

Tenho rio em vez de sangue.

A. M. Pires Cabral, in Telhados de Vidro, Inês Dias e Manuel de Freitas (dir.),nº 9, Averno, Novembro de 2007.

Por trás da Gare Saint Lazare






























Henri Cartier-Bresson tirou esta fotografia em 1932. Uma vez, falando acerca dela, o fotógrafo explicou que tinha acontecido, por acaso, estar atrás da vedação com a máquina no momento em que o homem saltou. A isto, chama-se agarrar o momento decisivo. Reparem nos pés do homem, mal tocam no chão, ele ficou em suspenso.

«O Amante de Lady Chatterley», de D. H. Lawrence

D. H. Lawrence dava títulos aos seus livros que durante muito tempo me mantiveram afastada deles: O Amante de Lady Chatterley, Amor no Feno e Outros Contos, A Virgem e o Cigano, por exemplo. Pareciam-me títulos de romances de cordel dos do tipo de Eurico Cebolo ou de telenovelas avant la lettre.
Um dia um amigo disse-me mesmo muito bem de O Amante de Lady Chatterley e eu resolvi lê-lo. O esqueleto da história podia vagamente parecer-se com tudo isso, telenovela brasileira, romance de Eurico Cebolo, etc. Mas Lawrence devia ser um tipo muito observador e que, portanto, percebia muito de homens, mulheres, sexo e do frágil equilíbrio entre estes elementos, e isso percebe-se desde o princípio de O Amante de Lady Chatterley. Se ainda não o leram, façam como eu e quando puderem sigam o conselho do meu amigo. Deixo-vos um excerto.

Connie sentia-se fascinada quando a escutava, mas, logo a seguir, um pouco envergonhada. Não devia escutar com aquela estranha e violenta curiosidade. Afinal, as histórias mais íntimas de outras pessoas só devem ser ouvidas num espírito de respeito por essa coisa que luta e que sofre: a alma humana, num espírito de simpatia delicada, discriminativa. Porque até a sátira é uma forma de simpatia. É a maneira como a simpatia se dá e se retira que determina as nossas vidas. E neste ponto reside a enorme importância do romance, quando em mãos capazes. O romance pode informar e conduzir a novos lugares a corrente da nossa consciência simpatizante, e pode libertar a nossa simpatia de elementos mortos. Assim, o romance, quando em mãos capazes, pode revelar os lugares mais secretos da vida: pois é nos lugares da vida secretos e passionais que a maré da consciência sensitiva deve subir e descer, purificando e refrescando.

D. H Lawrence, O Amante de Lady Chatterley, António R. Salvador (trad.) Relógio d'Água, 2005.

Volto a pensar no teu sorriso

VOLTO A PENSAR no teu sorriso, e ele é para mim uma água límpida
descoberta por acaso entre os seixos de um leito,
exíguo espelho onde olhas uma hera e os seus corimbos;
e por cima o abraço de um branco céu perfeito.

Esta é a minha recordação; não sei dizer, distância vã,
se no teu rosto se exprime livremente uma alma ingénua,
ou se és um fugitivo que o mal do mundo estenua
levando consigo o sofrimento como um talismã.

Mas isto posso dizer-te, que a tua pensada efígie
submerge os caprichosos desgostos numa onda rasteira,
e que a tua imagem se insinua na minha memória gris
simples como a copa de uma jovem palmeira...

Eugenio Montale, Poesia, Assírio e Alvim, José Manuel de Vasconcelos (trad.), 2004.

domingo, 30 de agosto de 2009

Com que voz


Em 2001, João Canijo realizou um filme que é uma história de Antígona, Ganhar a Vida. Este poema de Camões é a dada altura cantado por Cidália, a personagem interpretada por Rita Blanco. E é tão pungente, tão adequado e resulta tão bem no filme, porque esta música, naquele instante, converte-se na definição daquela mulher e explica-a.

Alvoradas Dissonantes

(...) o dia cinzento, a lâmpada vermelha, eu nunca ouvira uma história assim, contada por uma pessoa assim a não ser da boca dos grandes homens que tinha conhecido na minha juventude, grandes heróis da América de quem tinha sido amigo do peito, com quem vivera aventuras e com quem tinha sido preso e com quem partilhara as alvoradas dissonantes, os rapazes desfalecidos na berma dos passeios, a verem símbolos nas sarjetas a transbordar, os Rimbauds e Verlaines da América na Times Square, putos - nenhuma rapariga alguma vez me comovera com uma história de sofrimento espiritual, a alma dela revelara-se de forma tão bela, a irradiar luz como um anjo a deambular pelo inferno e o inferno eram precisamente as mesmas ruas por onde eu vagueara de olhar atento, em busca de alguém exactamente igual a ela (...)

Jack Kerouac, Os Subterrâneos, Paulo Faria (trad.), Relógio d'Água, 2006.

Litania

O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;

o triunfo cruel das tuas pernas
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece

navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor de um fruto, o peso de uma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;

são a grande razão, a única razão.

Eugénio de Andrade, in Ao Longe os Barcos de Flores, Poesia Escolhida por Gastão Cruz, Dita por José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luís Lucas, Luísa Cruz, Natália Luiza, Gastão Cruz (org.), Assírio & Alvim/ Sons, 2004.

sábado, 29 de agosto de 2009

No teu poema (1976)


Em 2005, a minha madrinha resolveu dar-me um CD com música portuguesa de que ela gostava. Esta era uma das minhas favoritas. Era um CD mesmo muito bom, acho que o melhor que alguma vez me ofereceram (sim, mesmo melhor que a gravação da Decca de La Bohéme, na versão de 1952 de Thomas Beecham). Esta é música de todos os dias. Nem sempre a linguagem não pedestre (como diria Aristóteles) nos pode acompanhar a cada instante. Música às vezes como gente. Como companhia. Melhor que gente às vezes.

Uma diálogo de «Hud» de Martin Ritt, 1963




















[Lonnie]He's beginning to look kind of worn out, isn't he? Sometimes I forget how old he is. Guess I just don't want to think about it.
[Hud]It's time you started.
[Lonnie]I know he's gonna die some day. I know that much.
[Hud]He is.
[Lonnie]Makes me feel like somebody dumped me into a cold river.
[Hud]Happens to everybody: Horses, dogs, men. Nobody gets out of life alive.

Gráfico

I
Curva de espaços, curva das baías,
Vida que não é vida com os gestos inúteis,
Quem me consolará do meu corpo sepultado?

II
Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais
Do fundo do mar.
Eu nasci há um instante.

III
A mulher branca que a noite traz no ventre
Veio à tona das águas e morreu.

IV
Chego à praia e vejo que sou eu
O dia branco.

Sophia, Coral

«Inglourious Basterds» de Quentin Tarantino, 2009
















Se ainda não viu o filme, não leia este post (spoilers).

Aqui há uns dias ouvi Quentin Tarantino afirmar (em peça da Sic Notícias, salvo o erro) que tinha aprendido tudo sobre cinema no cinema. Nessa reportagem mostravam-no a filmar a famosa cena de dança entre Uma Thurman e John Travolta em Pulp Fiction. Tarantino dançava ao mesmo tempo que dirigia os seus actores. Depois de ver isso, e de ter visto filmes como Death Proof, não ficamos com muitos motivos para duvidar da afirmação de Tarantino.
Também a mim, como à maior parte das pessoas que já o viu, o filme me pareceu extraordinariamente bem filmado, a primeira cena, em que a personagem de Pierre LaPadite aparece a cortar lenha, um tipo grande, forte, bruto, aparentemente destemido, em contraste com a cena em que Tarantino o filma adiante, com o pormenor dos olhos marejados de lágrimas,é verdadeiramente bonita.
Parece-me ainda que esta cena joga com o horizonte de expectativa do espectador regular de filmes de Tarantino. Numa cena dirigida por este realizador em que sucessivamente se filma um homem com um machado, um homem com uma caneta, um homem a beber um copo de leite (em vez de um copo de vinho) e um homem com um cachimbo altamente suspeito, fico sempre à espera de ver algo de brutalmente violento acontecer.
O mesmo sucede na cena em que o tenente Aldo Raine e o soldado que leva a alcunha de Shortie são presos por Hans Lada: nessa cena não consegui evitar recordar-me de uma outra, de Pulp Fiction, em que as personagens de Bruce Willis e Ving Rhames são presos numa cave.
Deste ponto de vista, Tarantino «brinca» com aquilo que é o nosso conhecimento dos seus filmes e o nosso horizonte de expectativa em relação a estes, e já fizera algo parecido em Death Proof, quando numa das cenas um telemóvel toca e o toque é a música (creio que) do Kill Bill.
Para quem estava à espera de um filme altamente violento, em que seguiríamos os basterds de massacre em massacre (as possibilidades parecem-nos infinitas quando um deles é apresentado como tendo por especialidade esmagar cabeças de Nazis com um taco de basebol), o filme rapidamente nos faz mudar de ideias, e os basterds dividem o papel principal (para não dizer que têm um papel quase secundário) com outras personagens, nomeadamente Soshanna e o coronel Hans Lada, que sim, tem um desempenho que é isso tudo que dizem e ainda fala fluentemente quatro línguas no filme. Uma das melhores personagens de Tarantino, de todos os tempos, sem dúvida. Bem como o tenente Aldo Raine.
A primeira cena em que eles contracenam (o diálogo em italiano) conta-se entre as coisas mais divertidas que tenho visto numa sala de cinema. Valia a pena pagar o bilhete nem que fosse para ouvir o sotaque de Aldo Raine (que se identifica como sendo do Tennessee, talvez uma private joke de Tarantino, que é originário de Knoxville) e a cena em que ele alude às suas actividades de bootlegger.
Muita coisa fica ainda por ser dita. Este é também um filme sobre cinema, literalmente e metaforicamente. É-o literalmente por causa das bobines de nitrato (com tempo de Tarantino passar uma cena do À 1 e 45 de Hitchcock, filme em que um autocarro explode também por causa de um rapazinho que transportava uma bobine de nitrato, mais um elemento que parece corroborar a afirmação do realizador a que acima aludimos). Metaforicamente porque acho que, embora concorde que o filme também seja um exercício de história alternativa, história ficcional, como afirmam alguns críticos, tendo a ver o seu final (a modos que) quase como uma mise-en-abyme em que creio que é o espectador quem se torna uma narrativa dentro da narrativa: a dada altura estamos dentro de um cinema a ver o estado-maior alemão a ser trancado e incendiado dentro de um cinema durante o visionamento de um filme que também nós estivemos a ver.
E neste ponto que, mais do que um exercício de reescrita da história, mais do que criar uma realidade alternativa, etc., Inglorious Basterds se converte num filme sobre a liberdade total de um cineasta: de contar a sua história do ângulo que quiser, que lhe apetecer, e divertir-nos durante cento e cinquenta e três minutos no processo.
P.S. Neste filme há ainda tempo para um diálogo excelente sobre whisky, seguido de uma alusão não menos excelente à forma como os alemães representam o número três. E , ainda, para ver o actor de Rex, o Cão Polícia (Gedeon Burkhard) e ainda o de Goodbye Lenin (Daniel Brühl) em cena.
save

Já não se vê o trigo

Já não se vê o trigo,
a vagarosa ondulação dos montes.
Não se pode dizer que fossem contigo,
tu só levaste esse modo

infantil de saltar o muro,
de levar à boca
um punhado de cerejas pretas,
de esconder o sorriso no bolso,

certa maneira de assobiar às rolas
ou então pedir um copo de água,
e dormir em novelo,
como só os gatos dormem.

Tudo isso eras tu, sujo de amoras.

Eugénio de Andrade, in Ao Longe os Barcos de Flores, Poesia Escolhida por Gastão Cruz, Dita por José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luís Lucas, Luísa Cruz, Natália Luiza, Gastão Cruz (org.), Assírio & Alvim/ Sons, 2004.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

«Chunking Express» (1994) de Wong Kar Wai, por Quentin Tarantino

Uma fala de «Chungking Express» de Wong Kar Wai, 1994















[He Zhiwu] On May 1, 1994... a woman wishes me a happy birthday. Now I'll remember her all my life. If memories could be canned... would they also have expiry dates? If so, I hope they last for centuries.

48

1.
na quietude subterrânea das raízes abandonas-te sem metáforas
tu sabes isto e sabes o movimento que cresce do tempo para lá dos relógios de pulso
e não dizes o termo sem inquietude as mãos ensaiando a forma silenciosa da ânfora
que viaja que se afasta que não contém a luz lenta do azeite que se consome nas candeias
nas artérias as moedas a cinza com que apagas a forma das mãos na travessia oriental dos dias

a forma como despes como deixas a saque o que resta e também a memória
de um rosto amado passa sem que te aflijas sem que passes para além da ferida
apenas a retórica a resistência dos gestos nos quartos mais esquivos da memória
pequenas escadas de cantaria por onde sobem música e sombras repetidas na cal
há na palavra a posição fetal para servir o esquecimento antes e depois das metáforas

Um artigo de Paulo Rodrigues Ferreira, «Ramalho Ortigão, Um Amigo Pouco Fiável»

Paulo Rodrigues Ferreira, colaborador neste blogue, que publicou este ano o seu primeiro livro (crítica aqui), publicou na corrente edição do Jornal de Letras o segundo artigo da sua colaboração com este periódico, tendo o primeiro incidido sobre o livro de Luís Reis Torgal, Estados Novos, Estado Novo.
Este segundo artigo de Paulo Rodrigues Ferreira versa sobre a mais recente obra de A. Campos Matos, incansável queirosiano e talvez o herdeiro de Guerra da Cal neste campo de estudos, intitulada Eça de Queiroz - Ramalho Ortigão - Retrato da Ramalhal Figura (Livros Horizonte), livro em que Campos Matos traça uma imagem bastante diferente daquela que eu tinha de Ortigão, que para mim era o amigalhaço de Eça n' As Farpas e seu colaborador na concepção de O Mistério da Estrada de Sintra. O artigo de Paulo Rodrigues Ferreira chama-nos a atenção para essa outra faceta de Ramalho Ortigão tal como delineada por A. Campos Matos:

De todos os companheiros de Eça, Ramalho Ortigão é descrito por A. Campos Matos como o mais incerto nas convicções e o mais oportunista. A sua dedicação a Eça de Queiroz era discutível. No dia em que soube da morte do amigo, queixava-se de dores. Em vez de tratar cuidadosamente do espólio deixado por Eça, desprezou-o. A revisão que fez dos capítulos de A Cidade e as Serras quase desviou o texto do sentido original. Queria ficar com os louros em O Mistério da Estrada de Sintra, obras nas quais o grosso do trabalho não fora feito por ele. Conclui A. Campos Matos: «Admirável descritor de paisagens humanas (...) mas pobre de imaginação, jamais lhe deve ter ocorrido que a sua ligação a Eça de Queiroz lhe assegurava por si só, um lugar perene na memória literária portuguesa.»

O espólio de Eça tem sido, tanto quanto sei, um espólio problemático de reunir. Só há muito pouco tempo surgiram os manuscritos d' A Ilustre Casa de Ramires e d' A Cidade e as Serras, ambos descobertos num cofre da sede do Millenium BCP, quando a INCM já tinha edições críticas publicadas creio que de ambas as obras. Talvez se Ramalho Ortigão, ou outro, tivesse zelado devidamente pelo espólio de Eça, hoje esta área dos estudos queirosianos seria consideravelmente menos problemática. E Eça nem é o caso mais dramático em termos de espólio, basta que nos recordemos, por exemplo, de Mário de Sá-Carneiro...

Assassinato de Simoneta Vespucci

Homens
No perfil agudo dos quartos,
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.

Vê como as espadas nascem evidentes
Sem que ninguém as erguesse - de repente.

Vê como os gestos se esculpem
Em geometrias exactas de destino.

Vê como os homens se tornam animais
E como os animais se tornam anjos
E um só irrompe e faz um lírio de si mesmo.

Vê como pairam longamente os olhos
Cheios de liquidez, cheios de mágoa
Uma mulher nos seus cabelos estrangulada.

E todo o quarto jaz abandonado,
Cheio de horror e cheio de desordem.
E as portas ficam abertas,

Abertas para os caminhos
Por onde os homens fogem,
No silêncio agudo dos espaços,
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Ao Longe os Barcos de Flores, Poesia Escolhida por Gastão Cruz, Dita por José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luís Lucas, Luísa Cruz, Natália Luiza, Gastão Cruz (org.), Assírio & Alvim/ Sons, 2004.

MAR (I)

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

*

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

*

Eis que morreste. Mortalmente triste
Divaga a flor da aurora entre os teus dedos
E o teu rosto ficou entre as estátuas
Velado até que o novo dia nasça.

Se nenhum amor pode ser perdido
Tu renascerás - mas quando?
Pode ser que o primeiro tempo gaste
A frágil substância do meu sono.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Ao Longe os Barcos de Flores, Poesia Escolhida por Gastão Cruz, Dita por José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luís Lucas, Luísa Cruz, Natália Luiza, Gastão Cruz (org.), Assírio & Alvim/ Sons, 2004.

Primeiras leituras, outras leituras

A primeira vez que li Montale foi no meu primeiro ano de Faculdade, no ano em que saiu a primeira edição da Assírio, em 2004, no mês de Dezembro, enquanto fazia a minha primeira cadeira de literatura, na altura Introdução ao Estudo da Literatura I, que já nem existe. Enumero aqui estes pormenores todos para fazer uma reflexão sobre a diferença entre uma primeira leitura e leituras seguintes.
A minha primeira leitura de Montale foi a leitura de alguém que não sabia muito de literatura italiana, que não tinha ainda lido autores da mesma geração, como Pavese ou Quasimodo, nem sequer autores de quem Montale se confessa devedor, como Dante. O que admirei em Montale numa primeira leitura foi a beleza evidente dos poemas, a beleza que entra pelos olhos e que nos ajuda a perceber que estamos perante um grande poeta. Poemas que incluo nesta categoria são poemas como «I limoni», «Vento e Bandieri», «Portami il Girasole», entre outros.
Numa segunda leitura, filtrada pela experiência de já ter lido outros autores próximos literariamente de Montale, como Pavese e Cernuda (que é um poeta que instintivamente agrupo na mesma categoria destes dois, embora não saiba porquê), entre outros, eu era já, digamos, uma leitora mais apta.
Para começar, numa segunda leitura, dei-me ao trabalho de ler a introdução de José Manuel Vasconcelos, que é excelente, e nos deixa melhor preparados para ler a selecção antológica por ele feita.
A sensibilidade de um leitor numa segunda leitura, parece-me, tende a ser mais paciente, mais atenta, e, ao mesmo tempo, mais descontraída. Nada nos pode devolver o encanto de ler um livro pela primeira vez, isso é certo. Mas tornamo-nos atentos a aspectos mais delicados, em que a forma como se trata a beleza ou o efeito estético ou a emoção que subjaz a determinado poema não é tão evidente.
Foi na minha segunda leitura de Montale que vi a beleza de poemas como «Lo sai: debbo riperderti e non posso», «Lontano, ero con te quando tuo padre», «Cigola la carrucola del pozzo», entre outros.
A minha experiência de vida permitiu-me ver melhor estes poemas, e não apenas a minha experiência de leitora. O que se aprende, à medida que se repete a leitura de determinado livro, é que os livros mesmo muito bons, aqueles que fazem do seu autor um grande autor, são aqueles que melhor admitem e resistem à nossa convivência, ao nosso olhar nem sempre educado para o que eles têm a oferecer, ao nosso escrutínio, às vezes não muito interessado na intensidade da emoção captada pelo sujeito poético de determinado poema, mas, cruelmente, apenas em efeitos de construção retórica, o que também é necessário, para averiguar da qualidade do fabbro que temos diante de nós. Montale sobrevive a tudo isso. A minha terceira leitura de Montale? Um dia conto-vos.
Há livros que nunca chegamos a ver completamente. Que nunca ficam revelados. Isso acontece por vezes apenas com grandes escritores, outras basta apenas que se trate de um grande livro. Há sempre algo que podemos tentar bargain (falta-me uma palavra melhor) com eles ou em relação a eles, eles superam-se e superam-nos sempre. É uma espécie de amor e uma espécie de eternidade, essa é uma das «utilidades» da literatura (já que vivemos num tempo em que nem ela pode ser inútil): ela desdobra o tempo e desdobra-se no tempo. É como a intuição maravilhosa de Maria Zambrano (em A Metáfora do Coração e Outros Escritos) nos explica: a palavra pára o tempo.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Artigo meu no Jornal de Letras

Na última edição do Jornal de Letras (26 Ag.-8 Set.), saiu um texto meu intitulado «Ramalho Ortigão - Um amigo pouco fiável».

WE TWO, HOW LONG WE WERE FOOLED

We two, how long we were fool'd,
Now transmuted, we swiftly escape as Nature escapes,
We are Nature, long have we been absent, but now we return,
We become plants, trunks, foliage, roots, bark,
We are bedded in the ground, we are rocks,
We are oaks, we grow in the openings side by side,
We browse, we are two among the wild herds spontaneous as any,
We are two fishes swimming in the sea together,
We are what the locust blossoms are, we drop scent around the lanes,
.....................mornings and evenings,
We are also the coarse smut of beasts, vegetables, minerals,
We are two predatory hawks, we soar above and look down,
We are two resplendent suns, we it is who balances ourselves orbic and
.....................stellar, we are as two comets,
We prowl fang'd and four footed in the woods, we spring on prey,
We are two clouds forenoons and afternoons driving overhead,
We are seas mingling, we are two of those cheerful waves rolling over
......................each other and interwetting each other,
We are what the atmosphere is, transparent, receptive, pervious, imper-
......................vious,
We are snow, rain, cold, darkness, we are each product and influence of
.......................the globe,
We have circled and circled till we have arrived home again, we two
We have voided all but freedom and all but our own joy.

Walt Whitman, Folhas de Erva:Leaves of Grass, vol. I, Maria de Lourdes Guimarães (Trad.), Relógio d'Água, 2002.
A hora inclina-me e toca-me
com golpe claro, metálico:
Tremem-me os sentidos. Sinto: eu posso -
e agarro o dia plástico.

Nenhuma coisa era perfeita antes de eu a olhar,
todo o devir parava.
A cada um dos meus olhares, agora já maduros,
vem, como noiva, a coisa apetecida.

Nada é pequeno para mim, e amo-o apesar de tudo
e pinto-o em fundo de ouro, e grande,
e ergo-o ao alto, e não sei a quem
libertará a alma...

Rainer Maria Rilke, Livro das Horas, Livro Primeiro: O Livro da Vida Monástica (in Poemas, As Elegias de Duíno, Sonetos a Orfeu, Editorial Asa, Porto, 2003⁵, trad. Paulo Quintela)

Bazárov

A primeira vez que peguei em Turguéniev foi para ler Pais e Filhos na tradução de António Pescada, publicada pela Relógio d'Água e saída em Maio de 2007. Sei que a li em Agosto desse mesmo ano porque tenho a mania de escrever nos livros a data em que os li. Olho para o livro na estante e lembro-me vagamente do argumento, que não é o mais importante. Do que eu me lembro bem é da personagem de Bazárov. Quando comprei o livro, o que mais me impressionou foi a citação do posfácio que vem na contracapa.
Em Agosto de 2007 creio que queria ler um livro em que existisse isso mesmo que Nabokov lá apregoa: uma personagem que pudesse ser o que quisesse, livre de introspecção mas que não fosse uma marioneta. É muito difícil criar uma personagem que não se torne um joguete das restantes se o narrador não nos der de alguma forma acesso aos seus pensamentos. Lembro-me bem desse aspecto do livro, só muito vagamente me recordo de ter tido acesso ao que Bazárov pensa ou sente.
Bazárov: um jovem com um potencial infinito, que podia ter sido o que quisesse. Um médico famoso, um revolucionário, um agitador social, um pensador, qualquer coisa. Tudo isso fica em suspenso. Bazárov podia ter sido tudo isto mas estanca no vazio. (Se ainda não leu livro, não leia a partir daqui, eu conto o final.)
Turguéniev inventou um homem com um potencial infinito, para ele morrer antes de chegar aos vinte. Corta-se ao tratar um doente com tifo e não tem como cauterizar a ferida. Deste ponto de vista, a obra encerra de certa forma uma metáfora: não podes ser tudo se não tiveres como te disciplinar, não te podes deixar ferir pela vida se não souberes como cauterizar a ferida. Sempre achei que era isso que passava pela cabeça de Bazárov durante a sua lenta agonia.

Novidades Editoriais para Outubro

Há novos livros de Saramago e Lobo Antunes a sair em Outubro, ler aqui. Tal como outros colegas, vejo-me forçada a discordar dos críticos que falam em crise no panorama literário português.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Istambul, 1965, Ara Güller

























Esta fotografia foi tirada em Istambul, em 1965, por Ara Güler. Dois rapazes brincam, junta-se-lhes um gato, ao fim do dia, num bairro velho da cidade, com a luz a escapar-se por entre os prédios, e temos o enredo para uma bela fotografia. Aquilo que me agrada nesta fotografia é a forma como o movimento do miúdo de camisola às riscas, correndo em direcção ao gato, ficou em suspenso: a posição do seu braço, mais recuado, o pé levantado. É um fim de dia suburbano, numa fotografia a preto e branco, mas há nela uma energia suspensa: até onde são capazes os miúdos de correr atrás do gato? Pobre gato...
Em 1958, Güler foi o primeiro correspondente da revista Time-Life no próximo-oriente. Colaborou ainda com outras revistas e em 1961 tornou-se responsável pelo departamento fotográfico da revista turca Hayat. Por volta desta altura, Cartier-Bresson e Marc Riboud encorajaram-no a integrar a Magnum Photos, o que ele acabou por fazer. Na década de 70, Ara Güller fotografou personalidades como Gandhi, Chagall, Churchill, Hitchcock, Dali, entre outros. Contudo, as suas melhores fotografias são as que ele tirou em Istambul na década de 50 e 60. Fotografias a preto e branco, captadas com uma Leica.É a esta época da carreira de Güller que a imagem acima pertence.
insularmente os corpos variegados
precipitam-se sob as abas do relógio
em arcos concêntricos iluminam no céu
o sonho voraz de uma criança
as cordas da lira retinem de corpos
o chão fica cinzento uma mulher
asceticamente voraz de prenhez
e quando o som rebenta a criança
chora e sói pensar na vida
e tomar chá gravemente

e um punhal espera poisando sobre as casas
ameaça o sossego dos mínimos pecadores
a boca peçonhenta do punhal abre ninhos
nas vidraças dos sótãos convida a que
desembarquem os falecidos de doenças sazonais
como a gripe a cólera a solidão as mulheres
ficam à sombra quando partem os pais
os velhos o pedagogo francês da pueril
embarcação ainda não travessia um humilde
ensaio do corpo nu não homem ainda não
mulher mas já havia algo familiar ao desejo
quando as mãos despediram a barca a das
exportações mais comuns uma mão cheia
de cinza três moedas e lá vai terra adentro
direita ao outro sul.

tente-se explicar a natureza
dos corpos às crianças eternas até mesmo nas suas
pequenas mortes: elas simplesmente não querem saber.

Hadji-Murat

A Relógio d'Água publicou recentemente uma tradução de Hadji-Murat (sim, a famigerada, com a foto de Turguéniev em vez da de Tolstói na orelha do livro, russos barbudos, sabem como é, isto pode pensar-se que é tudo igual). Já existia uma tradução da Cavalo de Ferro, mas aí o herói chama-se Khadji-Murat, creio que as diferenças no título se explicam meramente por questões de transliteração. O New York Times traçou um perfil desta última obra de Tolstói.
Para quem se interesse pelo autor, vale a pena ler. Aqui fica um excerto (link incluído):

Tolstoy stubbornly records details inside Russian camps and, transcendentally (for he was as isolated as any soldier in a foreign land), inside Chechen homes. He opens the novel with the smell of the dung-fed fire in a mud hut, where Hadji Murad is preparing his defection. The conversation has nothing to do with money or grand theories of progress. Instead, quick sparks of sentiment and honor flicker out of the rituals of greeting, eating and prayers.
This empathy allows Tolstoy to catch the generosity and joy in battle of a young Russian officer attacking a village, but also the burned house and the bayoneted boy. Tolstoy shows how, in the fine texture of the local resistance, self-interest can blend with honor, fury and religion in “a natural instinct akin to the instinct of self-preservation.”

É já amanhã


Estreia amanhã o filme de Tarantido mais lucrativo de sempre nos primeiros dias de exibição.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

The Making of Beckett

Em Abril de 2009, Coetzee comentou o primeiro volume do epistolário de Beckett, publicado pela Cambridge University Press. Embora o ensaio já tenha uns meses, vale a pena ler «The Making of Beckett», aqui.

Umbral, Manuel Alvarez Bravo





























Esta fotografia foi tirada por Manuel Alvarez Bravo, em 1947 e chama-se Umbral. Foi pela primeira vez publicada em 1977, salvo o erro, pela Acorn Editions, num volume intitulado Photographs by Manuel Alvarez Bravo.
Manuel Alvarez Bravo era de nacionalidade mexicana e viveu cem anos (1902 - 2002). Pertencia a uma família de artistas e escritores, que incentivaram o seu trabalho enquanto fotógrafo. O seu avô era fotógrafo, o seu pai um patrono da fotografia.
Ao longo da sua carreira, Manuel Alvarez Bravo trabalhou com realizadores como Eisenstein e Buñuel. Expôs com André Cartier-Bresson na década de 30, o que permitiu que o escritor André Breton tivesse contacto com o seu trabalho e se tornasse um admirador, em parte porque há uma forte componente surrealista no trabalho de Manuel Alvarez Bravo, o que é sinal de uma coisa que já anteriormente acontecia: fotografia e escrita desenvolveram uma complementaridade e podem, nalguns casos, influenciar-se mutuamente.
Bravo frequentava os mesmos círculos que Diego Rivera, Frida Kahlo, Tina Modotti e Pablo O'Higgins. Foi casado por três vezes, duas delas com fotógrafas (Lola Alvarez Bravo e Colette Alvarez Bravo). Durante muito tempo resistiu a fotografar com a Leica, na altura em que esta começava a tornar-se popular, e recorria a câmaras mais antigas, tal como outro fotógrafo com quem ele tem muita coisa em comum, Clarence John Laughlin.
Escolhi esta fotografia porque, para mim, ela prefigura um momento de indecisão, os pés que se contraem diante da água no chão parecem dizer: passo ou não passo?

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Things That Might Have Been

Penso nas coisas que poderiam existir e não existiram.
O tratado de mitologia saxónica que Beda não escreveu.
A obra inconcebível que talvez a Dante fosse dado entrever,
Depois de corrigir o último verso da Comédia.
A história sem a tarde da Cruz e a tarde da cicuta.
A história sem o rosto de Helena.
O homem sem os olhos, que nos ofereceram a lua.
Nas três jornadas de Gettysburg a vitória do Sul.
O amor que não partilhámos.
O dilatado império que os Viquingues não quiseram fundar.
O orbe sem a roda ou sem a rosa.
O juízo de John Donne sobre Shakespeare.
O outro corno do Unicórnio.
A ave fabulosa da Irlanda, que está em dois lugares ao mesmo tempo.
O filho que não tive.

Jorge Luís Borges, in História da Noite, Obras Completas: 1975 - 1985, Fernando Pinto do Amaral (trad.) Editorial Teorema, 1998.

Borges, se fosse vivo, faria hoje 110 anos, nasceu a 24 de Agosto de 1899. Transcrevi este poema porque é um poema dele de que gosto muito, e que permite ver alguns dos aspectos que são muito próprios da poesia de Borges: a sua imensa erudição, que era , em minha opinião, sempre apoiada e alimentada pela sua imaginação.
É preciso ter imaginação para aludir a outras possibilidades da história: a história sem o rosto de Helena, sem a tarde da cicuta, sem a obra que Dante podia ter escrito e não escreveu porque é surpreendido pela morte... Há uma beleza melancólica nas possibilidades que Borges sugere. Nomear o que não foi é olhar para trás e ver a outra face da moeda, há uma beleza grave em tudo isso. O que podia ter sido é a impossibilidade, e o poema termina com o verso «O filho que não tive», há um lamento pessoal que torna este poema comum a toda a gente, para o sujeito-poético (como nos ensinam na escola que se chama quem fala no poema, se bem que às vezes discordo desta terminologia) foi o filho que ele não teve. O leitor lê o último verso e pensa no que para ele poderia ter sido, o que já se perdeu e é hoje impossível. E depois sente-se um certo alento, há muitas coisas importantes que podiam ter sido e não foram.
É isso que eu gosto em Borges, ele nomeia sempre e demonstra algo de belo e precioso ao seu leitor, regra geral de uma forma inesperada. Sempre achei Borges não um Homero, mas uma espécie de Vergílio. Ele era mesmo muito parecido com Vergílio, na erudição, na imensa consciência da arte que subjaz à escrita, no perfeccionismo, no enredo intricado e colorido das suas histórias. Se eu não tivesse aprendido com Vergílio que haec sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt, tinha lido, por exemplo «O outro», conto de O Livro de Areia, e tinha ficado a saber. «O Outro», de resto, é à sua maneira uma espécie de «Things That Might Have Been», e um dos melhores contos de Borges.

All All and All the Dry World's Lever (II)

Fear not the working world, my mortal,
Fear not the flat, synthetic blood,
Nor the heart in the ribbing metal.
Fear not the tread, the seeded milling,
The trigger and scythe, the bridal blade,
Nor the flint in the lover's mauling.

Man of my flesh, the jawbone riven,
Know now the flesh's lock and vice,
And the cage for the scyte-eyed raver
Know, O my bone, the jointed lever,
Fear not the screws that turn the voice,
And the face to the driven lover.

Dylan Thomas, The Collected Poems of Dylan Thomas: 1934 - 1952, New Directions Books, 1971.

Chegou-me a casa na sexta-feira este livro, fedorento, pegajoso e ligeiramente rasgado na lombada. Porém, sem apontamentos à margem (que é coisa que muitas vezes me diverte, tenho uma edição do T.S. Eliot apontada por alguém que penso ter sido actor e declamado aquilo, está cheio de indicações do tipo cénico - subir a voz, baixar a voz, dar um passo em frente, etc.) e com uma letra larga, com algum espaçamento entre versos, o que o torna bastante legível. Veio da América, de S. Francisco, por avião.

domingo, 23 de agosto de 2009

Raindrops
























Esta fotografia foi tirada em 1903, por Clarence Hudson White (1871 - 1925). Chama-se Raindrops. Há qualquer coisa de embevecido e espantado na expressão da criança a olhar para a bola transparente (é isso que me leva a gostar desta fotografia, o espanto divertido que imagino no miúdo diverte-me), que prefigura uma grande gota de chuva estável, coisa que possivelmente o rapazinho nunca mais volta a ver na vida, quanto mais a segurar nas mãos. Há qualquer coisa que nos transmite a noção de um equilíbrio frágil: as mãos do miúdo, a forma como envolve a bola, a transparência da janela em frente e a transparência e tamanho da bola (ou gota).
Podia dizer-se que não há nada na imagem que se assemelhe à vida, que o efeito que se procura é puramente estético: efeito de duplicação (chuva estável dentro e instável fora) ou de representação dentro da representação (chuva dentro da chuva), mas no meio disso creio que há qualquer coisa que «mina» o efeito puramente estético, e penso que é miúdo, a vida desta fotografia está nele, embora ele não seja o centro da imagem.
Clarence Hudson White pertence à geração de fotógrafos (de Stieglitz entre outros) que contribuíram para elevar a fotografia a um estatuto de arte. White era não só um excelente fotógrafo mas também um notável professor de fotografia. Ensinou na Universidade de Columbia em 1907. Embora o trabalho como professor não fosse muito rentável, permitiu a White trabalhar como fotógrafo a tempo inteiro, e parece que ele adorava ensinar. Em 1914 fundou a Clarence H. White School of Modern Photography e nela se formaram fotógrafos como Anne Brigman, Karl Struss ou Dorothea Lange. Um dia mostro-vos a minha fotografia favorita de Struss.
save

Europa Europa, de A. Holland, 1990

















Em 1990, Agnieszka Holland, filmou Europa Europa, um filme baseado na história verídica da sobrevivência de um rapaz, Salomon Perek (protagonizado por Marco Hofschneider), que na Alemanha Nazi escapa ao Holocausto ingressando num colégio da juventude hitleriana.
Um dos aspectos mais bem conseguidos deste filme, para mim, não é tanto a forma como se deixa entrever ao espectador a violência da guerra mas mais a forma como se retrata a crueldade de um mundo em que subitamente tudo muda: numa das cenas iniciais do filme o jovem Salomon está em casa, sossegadinho, a tomar banho na banheira e, de repente, dão-lhe uma pedrada na janela, ele levanta-se e só tem tempo de se atirar pela janela, correr nu pela rua e enfiar-se no barril mais próximo. Algumas horas depois, já de noite, quando consegue finalmente sair do barril, coberto pelo capote de um oficial nazi que uma amiga consegue roubar, e regressar a casa, encontra o pai a bater com a cabeça na mesa. Em cima da mesa estava a sua irmã mais velha, morta. A partir deste momento, Europa Europa demonstra-nos intimamente, de uma maneira simples, eficaz, e profundamente perturbadora, sem nunca se tornar pretensioso, como foi a violência do Holocausto. Um filme muito bom. Se alguma vez se cruzarem com ele, vejam-no.

sábado, 22 de agosto de 2009

Homem Inteligente

Apelidavam-no de homem inteligente. Assim se denomina em determinados círculos aquele tipo especial de homens que engordaram por conta alheia, que não fazem nem querem fazer absolutamente nada e que, por preguiça e ócio eternos, têm um naco de gordura no lugar do coração. Da boca deles ouvimos constantemente que nada têm que fazer por causa de sabe-se lá que circunstâncias emaranhadíssimas e hostis que lhes «exaurem o génio» e, por isso, provocam «a pena de olhar para eles». Usam esta frase empolada, é o seu mot d'ordre, a sua senha, a frase que estes meus gordos cevados espalham por todo o lado a cada passo, e que já começa a aborrecer como uma tartufice, uma conversa oca. Aliás, alguns destes mandriões que não adregam arranjar ocupação para si - sem nunca a terem procurado, aliás - pretendem precisamente que toda a gente pense que eles não têm um naco de gordura no lugar do coração mas, pelo contrário, qualquer coisa muito profunda; mas o quê, exactamente, isso não poderia dizê-lo o melhor dos cirurgiões - por delicadeza, é claro.

Fiódor Dostoiévsky, "O Pequeno Herói: de umas Memórias Inéditas", in O Ladrão Honesto e Outras Histórias, Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Editorial Presença, 2006.

Como acima se tenta ilustrar, Dostoiévsky é um dos homens que mais percebia de pessoas que eu alguma vez encontrei. À medida que se vai lendo a sua obra há sempre este assombro, provocado pela sua agudeza de espírito, que, para o bem e para o mal, dota as suas personagens de uma imensa profundidade, de vida, mesmo quando ele está apenas a criar uma personagem-tipo.

Grande biblioteca (online)

A Microsoft, a Yahoo e a Amazon querem juntar-se para impedir a criação da maior biblioteca online do mundo, afecta ao Google, o qual pretende assinar um contracto com autores e editores dos Estados Unidos de modo a expandir a sua biblioteca digital. O Google tem digitalizado e disponibilizado (sete) milhões de obras, ainda que a maior parte parcialmente, no Google Books. Esta ferramenta de pesquisa permite encontrar obras e pesquisar directamente nos seus conteúdos. Se Microsoft, Yahoo e Amazon não conseguirem travar o Google, este muito certamente irá converter o Google Books na única biblioteca online relevante. A Universidade de Coimbra tem seiscentas obras disponíveis neste catálogo. Por outro lado, Microsoft e Yahoo querem travar o motor de busca porque lhe fazem concorrência directa. Ler aqui.

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Now I tell what I know in Texas in my early youth,
(I tell not the fall of Alamo,
the hundred and fifty are dumb yet at Alamo,)
'Tis the tale of the murder in could blood of four hundred and twelve
...........................young men.

Retreating they had form'd in a hollow square with their baggage for
.........................brbreastworks,
Nine hundred lives out of the surrounding enemy's, nine times their
.........................number, was the price they took in advance,
Their colonel was wounded and their amunition gone,
They threated for an honorable capitulation, receiv'd writing and seal,
..........................gave up their arms and march'd back prisoners of war.

They were the glory of the race of rangers,
Matchless with horse, rifle, song, supper, courtship,
Large, turbulent, generous, handsome, proud, and affectionate,
Bearded, sunburnt, drest in the free costume of hunters,
Not a single one over thirty years of age.

The second First-day morning they were brought out in squads and mas-
...............................sacred, it was beautiful early summer,
The work commenced about five o'clock and was over by eight.

None obey'd the command to kneel,
Some made a mad and helpless rush, some stood stark and straight,
A few fell at once, shot in the temple or heart, the living and dead lay
.........................together,
The maim'd and mangled dug in the dirt, the new-comers saw them there,
Some half-kill'd attempted to crawl away,
These were despatch'd with bayonets or batter'd with the blunts of
.............................muskets.

A youth not seventeen years old seiz'd his assassin till two more came
..........................to release him,
The three were all torn and cover'd with the boy's blood.

At eleven o'clock began the burning of bodies;
That is the tale of the murder of the four hundred and twelve young men.

Walt Whitman, Folhas de Erva:Leaves of Grass, vol. I, Maria de Lourdes Guimarães (Trad.), Relógio d'Água, 2002.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A Bit of Venice
























Parece uma aguarela, mas é uma fotografia tirada em 1894 (e produzida em 1897) dos canais de Veneza, intitulada A Bit of Venice. O seu fotógrafo foi Alfred Stieglitz, um dos pioneiros que contribuíram para fazer da fotografia uma arte. Stieglitz foi o primeiro fotógrafo dos Estados Unidos e o primeiro a enviar o seu trabalho para o Metropolitan Museum of Art (em 1924, vinte sete fotografias). Uma vez li um artigo sobre ele em que se dizia que mesmo que ele nunca tivesse disparado uma câmara na vida, ainda assim, continuaria a contar-se entre as personalidades mais influentes da vida cultural americana antes da Segunda Guerra Mundial. O seu trabalho influenciou outros fotógrafos, como Anne Brigman.

Um académico de Oxford

O meu trabalho dá-me frequentemente a oportunidade de ler textos de académicos e investigadores que escreveram sobre o tema que estou a trabalhar ou sobre conteúdos afins. No último ano li de tudo, desde ensaios sobre demografia na Alexandria do séc. I (há um artigo muito interessante de uma senhora chamada Diana Delia), até livros absolutamente brilhantes e extraordinários, como um tal Aidos, The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek Literature, de um tipo chamado Douglas L. Cairns, publicado pela Oxford.
Há académicos muito enfadonhos que nos demonstram como as nossas pálpebras podem pesar vinte e três toneladas mas que na maior parte das vezes produzem textos importantes e necessários, e há outros estudiosos absolutamente brilhantes (sim eu sei que é uma formulação a la Palisse), com uma capacidade de compreensão (e expressão) em relação às motivações, à forma de vida, às ambições de homens que estão cobertos pelo pó de vinte e um séculos, e às vezes mais, extremamente acutilantes. Como fica patente no seguinte excerto:

If the Alexandrines were unstable, flippant, frivolous, superficial, it was because there was nothing to them on which to exercise their brains except trade. Theirs was the tragedy of futility.

Herbert Box, Phillonis Alexandrini In Flaccum, Oxford, 1939.

Não consigo ler isto sem pensar que cada vez mais os homens do nosso tempo se (me) parecem extraordinariamente com os alexandrinos da época helenística. E este senhor fez uma nota extremamente curiosa às linhas acima transcritas: «We may perhaps see something like their tragedy shown in the Cherry Orchard of Tchekov, in its portrayal of the futile lives of some of the russian aristocracy towards the end of Tzarism absolutism.»

45

faço apontamentos sobre tardes
esboço-as em papel de esquissos
movimentos que antes me escaparam expressões
pequenos pássaros pequenas pedras
às vezes deixo no papel peixes
todos eles fugazes e coloridos
procuro no esboço a resistência de alguns gestos
que se repetem e perdem na pedra
na rispidez do fogo

o relâmpago não é de agora
é suspenso
um momento de entre antes e depois

«The Sting», 1973, George Roy Hill















Em 1973, o realizador George Roy Hill juntou Paul Newman e Robert Redford para filmar The Sting, uma história de gangsters passada nos anos 30. Para quem viu filmes desta década parece que a vibe está lá toda. O ambiente do filme, pode parecer disparate, mas recorda-me muitas vezes filmes de Frank Capra.
The Sting é a história de um miúdo inteligente (Redford), que é quase tão rápido a aprender como a perder dinheiro ao jogo e que se quer vingar por lhe terem morto o seu mestre na vida do crime. Neste filme, há ainda espaço para a história de um bandido (Newman) reformado mas cheio de potencial, que vive com a dona de um bar/casa de meninas, e que aceita juntar-se à personagem de Redford para levarem a cabo o golpe da vida deles, com Hooker (Redford) a conseguir pelo meio a sua vingança.
Hill dividiu o filme numa espécie de capítulos em que as transições entre as partes principais são assinaladas por um virar de página com uma ilustração alusiva à parte que se segue, às tantas parece que não estamos a ver um filme mas a assistir a um conto, a história ajuda-nos a criar esse distanciamento (se alguma vez o virem vão perceber porquê).
Neste filme há uma cena em que Henry Gondorff (Newman) e Lonnegan (Robert Shaw) estão a jogar às cartas, Newman vai fingindo estar podre de bêbado, mas entretanto são apostados quinze mil dólares, e no fim ganhou quem melhor fez batota. Redford passa a maior parte do filme a fugir de mafiosos que por ordem de Lonnegan o querem matar, pelo que (aposto) correu muitos quilómetros durante as filmagens. Há uma cena dele a correr em cima de um telhado com o tipo que o está a perseguir a correr de um lado para o outro à medida que lhe ouve os passos, espantosamente bem filmada. Há uma cena em que Hooker dá um passo em falso, avalia mal o carácter da miúda por quem se apaixona, e quase acaba morto. Há um polícia corrupto, e irritante como tudo, que no fim tem o que merece. A banda sonora é muito boa, e dá vontade de dançar, mesmo a pessoas muito pouco musicais, categoria em que me incluo.
A tensão entre Newman e Robert Shaw é constante, mas gerida de uma maneira que nos diverte. É um prazer ver o rosto de Redford enquadrado pela linha do chapéu que usa em quase todas as cenas e que o faz parecer uma daquelas estampas de figuras americanas desenhadas em caixas de chocolate antigas. Ficam abaixo umas linhas do filme (a tal cena em que Hooker se engana pela miúda).

[Loretta] You expect me to come out, just like that?
[Hooker] If I expected something, I wouldn't be standing in the hall.
[Loretta] I don't even know you.
[Hooker] You know me. I'm just like you. It's two in the morning and I don't know nobody.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Le Violon d'Ingres
























Em 1924, Man Ray (que soa melhor que Emmanuel Radnitzky) tirou uma fotografia intitulada Le Violon d'Ingres. Percebe-se o porquê do título quando se olha para a fotografia. Há alguns anos atrás li um poema (salvo o erro) de Manuel Gusmão em que ele falava do «corpo músico». Olho para a fotografia e lembro-me do poema. Um homem pode tirar uma fotografia e fazer poesia. É o caso de Man Ray. E há qualquer coisa de música no perfil desta senhora, no seu turbante enrolado em torno da cabeça, no movimento suspenso dos ombros.

Instruídos e com estudos

Entre outras coisas, descobrirás que não és a primeira pessoa a quem o comportamento humano alguma vez perturbou, assustou ou mesmo enojou. Não estás de modo nenhum sozinho nesse ponto, e isso deve servir-te de incitamento e de estímulo. Muitos, muitos homens se sentiram tão perturbados, moralmente e espiritualmente, como tu estás agora. Felizmente, alguns deles deixaram memórias dessa perturbação. Hás-de aprender com eles... se quiseres aprender. Tal como um dia, se tiveres alguma coisa para dar, alguém há-de aprender contigo. É um belo tratado de reciprocidade. É poesia. - Parou e bebeu um grande gole. Depois recomeçou. Ainda bem que não tentei interrompê-lo ou assim. - Não estou a tentar dizer-te - disse ele - que só os homens instruídos e com estudos estão preparados para dar alguma coisa ao mundo. Não é verdade. Mas afirmo que os homens instruídos e com estudos, se, para começar, forem inteligentes e criativos, o que infelizmente, raramente acontece, tendem a deixar atrás deles memórias mais valiosas do que os homens simplesmente brilhantes e criativos. Tendem a exprimir-se mais claramente, e normalmente, têm a paixão de seguir os seus próprios pensamentos até ao fim. E, o que é mais importante, nove em cada dez são mais humildes do que os pensadores sem estudos.

J. D. Salinger, À Espera no Centeio, José Lima (trad.), Difel, 2005.

(Gostei desbragadamente deste livro. A sua essência fica resumida naquilo que a banda amarela em torno da capa promete: um romance notável e absorvente.)

O povo mimoso de Deus . 02 . Idade de ouro

«E deuese fazer mençaõ, do que se escreue na chronica de S. Francisco, que o santo hauia profetizado, q hauia de hauer separaçam para sempre das Coroas de Portugal, & Castella, & de outra profecia de S. Frey Egidio da Ordem de S. Domingos, que diz o seguinte. Portugal priuado de seus Reys gemerà por algũs tempos, mas sendolhe Deus propicio, serà restaurádo, quando menos se espere, Africa serà vencida, cahirá o Imperio Othomano, a Terra santa se recuperará, renouarsehá a idade de ouro, & auera paz uniuersal.»

Manifesto do Reyno de Portugal, presẽtado a Santidade de Urbano VIII. N. S. pelas tres nações, portuguesa, francesa, catalan em que se mostra o direito com que el Rey Dom João IIII. Nosso Senhor possue seus Reynos, & Senhorios de Portugal, e as rezões, que ha para se receber por seu Embayxador o Illustrissimo Bispo de Lamego: dividido em doze demonstraçoẽs: traduzido de italiano em portuguez, Lisboa, 1643
(pp. 28)


O povo mimoso de Deus . 01 . O fundamento


«Com toda a verdade se conta que elRey de Portugal D. Affonso Henriquez no Campo de Ourique, estãdo para dar a batalha a innumerauel multidam de Mouros, hum Hermitam insigne em santidade, como precursor do proximo aparecimento de Cristo nosso senhor veyo ter com elle, & lhe disse estas palauras. Sois amado de Deus, porque sobre vòs tem posto os seus olhos de misericordia, & depois de vós em vossa descendencia, atè a decima sexta geraçam, na qual se adelgaçarà a descendencia, mas a esta adelgaçada voltarà os seus olhos, & verà.
[...]
Computandose bem a geraçam delRey Affonso Henriquez serà manifesto a todos, como esta profecia falaua da moderna restituiçam delRey Dom Ioam o IV se o mesmo Rey D. Affonso se incluir na primeira geraçam, em elRey D. Sebastiam se acha a descendencia adelgaçada, & se começa de seu filho elRey dom Sancho, quem negarà que ficou atenuadissima em elRey Dom Henrique, com que, ou na pessoa delRey D. Sebastiam, ou na delRey D. Henrique ficou a descendencia atenuada. E somente na restituiçam delRey Dom Ioam o IV se acha que Deus nosso senhor voltou os olhos, & vio, & constituio o nouo fundamento para a firmeza perpetua do Imperio Portugues.»

Manifesto do Reyno de Portugal, presẽtado a Santidade de Urbano VIII. N. S. pelas tres nações, portuguesa, francesa, catalan em que se mostra o direito com que el Rey Dom João IIII. Nosso Senhor possue seus Reynos, & Senhorios de Portugal, e as rezões, que ha para se receber por seu Embayxador o Illustrissimo Bispo de Lamego: dividido em doze demonstraçoẽs: traduzido de italiano em portuguez, Lisboa, 1643
(pp. 26-27)

Medalha de Honra da SPA para Jorge de Sena

A Sociedade Portuguesa de Autores, na qual Jorge de Sena se inscreveu em 1958 e da qual se tornou colaborador em 1978, resolveu atribuir a Medalha de Honra, a título póstumo, claro está, a Jorge de Sena.
De acordo com o Público: A SPA considera que "o regresso definitivo de Jorge de Sena a Portugal encerra um longo ciclo de desencontro e afastamento que tão profundamente marcou a sua vida e a sua obra, deixando também marcas profundas na cultura portuguesa do século XX".
Creio que o facto de o corpo do escritor estar prestes a ser trasladado (primeira quinzena de Setembro) para o cemitério dos Prazeres, em Lisboa, levou a SPA a recordar-se da sua existência e da sua importância na cultura e literatura portuguesas. Como disse um professor meu, possivelmente o escritor que mais vai influenciar esta nova geração que começa agora a escrever. Mais vale tarde que nunca. No caso de Jorge de Sena, parece que é sempre um pouco mais tarde.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Kind of Blue

Grandes livros, críticos completamente obtusos

Sobre o livro de F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby, escreveu em tempos um crítico do New York Herald Tribune: «o que nunca esteve vivo dificilmente poderá continuar a viver. Por isso, este é um livro de uma só estação.»
É tramado um tipo escrever um livro absolutamente genial e ser lido por um crítico deste calibre. Mais críticos brilhantes (ironicamente falando)aqui. Via Blogtailors.

Pergunto-me o que leva certos críticos a escrever este tipo de pérolas tendo em mãos um livro fantástico. Por vezes, pode ser por se tratar de uma obra de um autor jovem e desconhecido, que não distribuiu apertos de mão e simpatia pelos críticos responsáveis de secções de livros certos, porque não pôde, porque não quis ou porque achou que não precisava. O seu livro pode ser genial, ou pelo menos conter uma centelha de génio, mas um crítico estúpido (nem é necessário ser exigente ou pouco generoso) dirá: «é melhor esperar mais uns aninhos, ver para que lado cai a maçã.»
Pode tratar-se de um autor consagrado, e aí dar-se o (infeliz) caso de os complexos de inferioridade do escritor frustrado que habitam o crítico literário não lhe permitirem dar a mão à palmatória (indesculpável, improvável, mas possível).
O que faz um bom crítico literário, em minha opinião, em primeiro lugar, é ler muito, diacrónica e sincronicamente, ler literatura e (literatura) sobre literatura. Antes de ser crítico ser estudioso. Mas isto não basta. É necessário que tenha um estilo sólido e fluente, de quem nos leva pela mão. Informar-se sobre o que vai ler (antes ou depois de ter lido, é-me indiferente), mas seguramente antes de escrever a sua crítica: observar se existe uma estética vigente quando determinado autor produziu determinada obra, como foi recebida, se influenciou ou não os seus contemporâneos (se existirem dados que permitam esta pesquisa), este tipo de coisas. E, sobretudo, ter um bom sentido estético, que lhe permita avaliar com alguma objectividade (a possível) o texto que tem em mãos.
No fundo, acho que o crítico literário ideal é aquele que é crítico porque é leitor e não que é leitor por ser crítico. E não estou a dizer que existem autores intocáveis para a crítica e para os críticos, mas creio que quem lê Anna Karénina e diz que é lixo sentimental, bom... (grande besta).

Porcos voadores



Pigs on the Wing (Part One)

If you didn't care what happened to me,
And I didn't care for you,
We would zig zag our way through the boredom and pain
Occasionally glancing up through the rain.
Wondering which of the buggars to blame
And watching for pigs on the wing.

Pigs on the Wing (Part Two)

You know that I care what happens to you,
And I know that you care for me.
So I don't feel alone,
Or the weight of the stone,
Now that I've found somewhere safe
To bury my bone.
And any fool knows a dog needs a home,
A shelter from pigs on the wing.

Pink Floyd, Animals, 1977

Jogo de Xadrez


















Na fotografia: Man Ray e Marcel Duchamp a jogar xadrez (fotografia de Man Ray).

Deathless

(...)
I know I am deathless,
I know this orbit of mine cannot be swept by a carpenter's compass,
I know that I shall not pass like a child's carlacue cut with a burnt stick at
...................................night.
(...)

Walt Whitman, Folhas de Erva:Leaves of Grass, vol. I, Maria de Lourdes Guimarães (Trad.), Relógio d'Água, 2002.

Um copeque, não um rublo

Quem já nasceu com milhares e foi educado com milhares já não vai fazer mais dinheiro, já ganhou todos os caprichos e sabe-se lá que mais! É preciso começar do princípio e não do meio, é preciso começar com um copeque e não com um rublo, começar por baixo e não por cima. Só assim se fica a conhecer bem a vida e as pessoas, o ambiente em que depois será preciso desembaraçar-nos. Só quando sofrermos na pele todas as provações, quando soubermos o que nos custa cada copeque, quando passarmos por tudo, só então ficaremos tão temperados e experientes que não falharemos em empreendimento nenhum.

Nikolai Gógol, Almas Mortas: Aventuras de Tchítchikov: Poema, Nina Guerra e Felipe Guerra (trad.), Assírio & Alvim, 2002.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Uma livraria em Lisboa

Em Lisboa desenvolvi, ao longo dos anos (poucos) em que cá vivo, uma estranha predilecção por uma livraria com tendências de alfarrabista em que, sempre que o livreiro me pergunta o que procuro, tenho a impressão que, dependendo da resposta, ele vai sacar da caçadeira que (aposto) guarda debaixo do balcão e pedir-me não muito educadamente para sair.
Em tempos um colega levou lá um primo a quem, quando este se preparava para comprar determinado livro, o livreiro disse que aquilo não era para ele e que não lho vendia. Um vendedor zeloso em relação à sua mercadoria, portanto.
Pergunta-se o leitor deste post o que diabo pode haver de agradável num espaço em que o proprietário nem sempre é afável com estudantes de literatura parasitas e semi-adolescentes (tipo eu) que lá vão animar-lhe o negócio e eu respondo: lá sempre encontrei livros que raramente aparecem noutros sítios e não sei como vão lá parar, mas o facto é que se encontram ali, às vezes muito à mão de semear. A livraria não é meramente alfarrábio, pelo que também se vendem as novidades editoriais.
Para terem uma noção da categoria, foi nesta livraria que pela última vez tive notícia da tradução portuguesa de um livro chamado From Vergil to Milton, de C. M. Bowra (Sir Cecil Maurice Bowra, reputado classicista que neste livro dedica um brilhante ensaio aos Lusíadas). E não, o livreiro não olhou para mim e não me perguntou com um ar espantado: quer o quê? Limitou-se a responder-me: há um ano ou dois vendi o último, talvez volte a aparecer entretanto. O único defeito que aponto à livraria é que por vezes é um pouco lenta em termos de venda de novidades editoriais.
Não há um café ou um espaço para ficar na conversa, como (mais ou menos agradavelmente) se tem tornado prática em algumas das livrarias de Lisboa que considero que têm qualidade em termos dos seus catálogos, como por exemplo a Bulhosa de Entrecampos, a Barata de Roma, ou a Trama do Rato.
Esta livraria agrada-me porque não é (nem nunca será) um supermercado de livros e porque, creio, é das últimas livrarias em Lisboa que me parece pensada para estudantes de literatura (pelo sólido acervo de textos literários e sobre literatura que possui), coisa que, convenhamos, a livraria da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pelo menos para mim, nunca foi. Isto não só porque os seus responsáveis não percebem rigorosamente nada de literatura (ou se percebem disfarçam bem) e porque, espantem-se, a larga maioria dos estudantes de letras da capital lê muito pouco, o que não ajuda ao dinamismo comercial na livraria de Letras.

P.S.: A livraria é a Lácio (Campo Grande, 111, 1700-089 Lisboa).

Atget























A minha admiração por Eugéne Atget prende-se sobretudo com o facto de na sua fotografia ele alimentar uma certa preferência pela paisagem (e sobretudo a paisagem da cidade de Paris) ou objectos em detrimento do ser humano. Segundo consta iniciou a sua carreira de fotógrafo aos quarenta anos de idade, mas sempre teve o fascínio por artes relacionadas com a representação, com momentos representativos: desistiu de uma carreira de actor para se tornar pintor e daí "evoluiu" para a fotografia. Em 1926 a sua obra foi coligida num volume a cargo de Camille Recht.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

um recadinho

um recadinho

vou ao mercado
peço-te que me esperes aqui até eu voltar
podes lavar a tua roupa se te sentires aborrecida
e se a porta te perturbar
então arranca-a
e põe qualquer coisa no seu lugar
peço-te que não deixes a tua cara no espelho
e não saias pela janela
não te mates como é teu costume
mas
espera-me
aqui
até
eu voltar

Ahmed Barakat, traduzido do original por André Simões com revisão de Nádia Bentahar, aqui.

«Le Baiser de l'Hôtel de Ville» (A história de uma fotografia)

























Nas ruas movimentadas de Paris, junto ao Hôtel de Ville, o fotógrafo Robert Doisneau imortalizou, na década de 50, um casal que troca um beijo, (podemos apostar que) momentos antes de se separarem e desaparecerem na azáfama do dia.
Até 1993 a identidade do casal permaneceu incógnita, mas nesse ano Denise e Jean-Louis Lavergne levaram Doisneau a tribunal, acusando-o de ter tirado a fotografia sem o seu conhecimento e autorização...o que levou a que o fotógrafo imediatamente revelasse que encenara a foto com Françoise Bornet e Jacques Carteaud, ambos modelos e actores.
A história parece bastante decepcionante mas não para Françoise Bornet, que, em Abril de 2005, vendeu a cópia original que lhe coubera como parte do seu pagamento por cento e cinquenta e cinco mil euros. Apesar de saber que é uma encenação, continuo a achar que esta foto constitui um registo belíssimo de Doisneau.
Agora estou à beira do penhasco e não vou voar
como o sublime bicho estratosférico brilhante
de plumas esmeraldas tentativos braços
apenas eu baço de nenhuma asa debruçado
sobre o vidro de água e em baixo
os corredores dispostos à partida
em músculos compactos, e deles o mais jovem (vestido

de improváveis azagaias) exclama: é esta
a fonte do trovão!, e aponta
um buraco azul mudo nas paredes de pedra. por fora
de mim regresso ao som silencioso da cidade
onde todos os rostos são o papel com linhas de inventário
e as patas dos homens pousam na larga secretária
e ficam, em relevo caminhando no sangue.e eu queria
para ti, uma cidade sem mistério,

o gelo transparente onde mergulha a imagem
dos corredores, lançados no velocíssimo sossego sem repouso
das palavras trocadas, das bocas e dos braços misturados
pela luz, que é uma areia movediça,
este saber de nós sem ócio e sem negócio,
iguais às portas do trovão, onde o mais sábio
se lança nu compacto deus do fogo e ri.

António Franco Alexandre, Poemas, Assírio & Alvim, 1996.

domingo, 16 de agosto de 2009

A nova tradução de Pickwick Papers

A Tinta da China, de acordo com o Ípsilon, vai reeditar a obra de Charles Dickens Pickwick Papers, com tradução de Margarida Vale de Gato e prefácio de Ricardo Araújo Pereira, numa colecção dirigida pelo humorista. Trata-se da primeira edição integral de uma obra pela qual um dos nomes maiores da literatura portuguesa, Fernando Pessoa, tinha predilecção.
Os números que se seguem na colecção, de acordo com a mesma fonte, vão ser Jacques, o Fatalista de Diderot, em tradução de Pedro Tamen, e uma antologia de textos de Robert Benchley. Ler aqui.

sábado, 15 de agosto de 2009

12

OS falcões
sempre demasiado longe do teu olhar
raramente os vistes de perto.
Um em Étretat vigiava o voo
desajeitado dos seus filhotes.
Dois outros na Grécia, no caminho de Delfos,
uma briga de macias penas, dois bicos jovens
inofensivos e audazes.

Agradava-te a vida feita de pedaços
aquela que jorra da sua insuportável
trama.

Eugenio Montale, Poesia, Assírio e Alvim, José Manuel de Vasconcelos (trad.), 2004.

«On Reading», III
























André Kertész
, in On Reading, W. W. Norton and Company, New York and London, 2008.

«On Reading», II
























André Kertész
, in On Reading, W. W. Norton and Company, New York and London, 2008.

«On reading», André Kertész

A Norton tornou a publicar em 2008 um livro do fotógrafo André Kertész de 1971, onde se reúne uma série de fotografias tiradas por este fotógrafo entre 1915 e 1970.
André Kertész (1894 - 1985) foi um fotógrafo dos mais originais, inventivos e influentes do séc. XX. De origem húngara, mudou-se primeiro para Paris (em 1925) e depois para Nova Iorque (em 1936), onde não conseguiu assegurar imediatamente um posição de sucesso enquanto fotógrafo e só em meados da década de setenta é que o seu trabalho nesta área foi amplamente reconhecido, sendo-lhe reconhecido um lugar na história da fotografia.
A sua carreira enquanto fotógrafo durou setenta e três anos, começou o seu trabalho com uma câmaras tipo glass plate e terminou com uma Polaroid SX-70.
O que é curioso acerca do livro de que aqui queria falar, On reading, é que, como o título sugere, trata-se de fotografias de pessoas apanhadas pela objectiva de Kertész num momento extremamente pessoal e contudo bastante quotidiano: o momento de ler.
Neste livro encontramos gente a ler em cidades tão díspares como Tóquio, Paris, Veneza, Nova Iorque e em todo o tipo de sítios, desde cafés em avenidas, em casa, em parques, à janela de casa, em salas de aulas, recreios e até mesmo em telhados. Kertész tinha um interesse que o acompanhou ao longo da sua vida no acto da leitura, e o livro reúne sessenta e seis fotografias tiradas ao longo de um período de cinquenta e cinco anos.
A primeira fotografia deste livro foi tirada quando André Kertész tinha apenas vinte e um anos e representa três rapazes debruçados sobre um livro que está pousado nos joelhos de um deles. Todos têm um ar de curiosidade absorvida. É uma fotografia magnífica. E, tratando-se de um momento universal, ainda hoje, apesar de estarmos a avançar a passos largos para a era do e-book e do livro digital, continua a ser possível sair por aí com uma máquina fotográfica e captar um momento destes. Ainda que não com a mestria do genial André Kertész. As fotografias que temos na barra lateral deste blogue também estão inclusas neste livro.















André Kertész, in On Reading, W. W. Norton and Company, New York and London, 2008.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O Sujeito Incómodo, Slavoj Žižek

A ler, no Orgia Literária, o meu mais recente texto sobre O Sujeito Incómodo, de Slavoj Žižek.

Uma cena de «It's a Wonderful Life», de Frank Capra, 1946

Judeus alemães pretendem a reedição de «Mein Kampf»

Aqui dá-se conta que os judeus alemães pretendem que seja feita uma reedição do livro de Hitler, Mein Kampf. Estou de acordo, não se pode explicar as forças que no passado geram e moldam preconceitos e conflitos se não se alisarem todos os documentos que temos acerca da sua origem. Que mecanismos arrastam o homem ao mal? À barbárie? É preciso ver. Por outro lado, e como se explica abaixo:
The internet is also one of the reasons for the new stance taken by Germany's Central Council of Jews: "It is all the more important that young people should see the critical version when they click on to Mein Kampf on the web (...)

Cá fica um excerto da notícia, originalmente publicada aqui.

In an attempt to forestall any new legal ban on the book after 2015, Munich's Institute for Contemporary History applied this week for permission to reprint the work after that date. It aims to produce an edition containing scholarly footnotes challenging most of Hitler's assertions. "A scientific edition would help to dispel the peculiar myths surrounding this book," said Horst Möller, the institute's director.

The idea has also received firm backing from the British historian and acclaimed Hitler biographer Sir Ian Kershaw. "A grown up democracy like Germany does not need to fear that Hitler's damaging treatise would somehow constitute a threat to society," he said in an interview with Germany's Stern magazine. He pointed out that the internet meant that attempts to ban Mein Kampf were a waste of time.

The internet is also one of the reasons for the new stance taken by Germany's Central Council of Jews: "It is all the more important that young people should see the critical version when they click on to Mein Kampf on the web," Mr Kramer said.

LONTANO, ero con te quando tuo padre
entrò nell'ombra e ti lasciò il suo addio.
Che seppi fino allora? Il logorìo
di prima mi salvò solo per questo:

che t'ignoravo e non dovevo: ai colpi
d'oggi lo so, se di laggiù s'inflette
un'ora e mi riporta Cumerlotti
o Anghébeni - tra scoppi di spolette
e i lamenti e l'accorrer delle squadre.

Eugenio Montale, Poesia, Assírio e Alvim, José Manuel de Vasconcelos (trad.), 2004.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O «dandy» Português

Parece-me que em A Sibila Agustina Bessa-Luís cristalizou para a eternidade o tipo do dandy português:

Houve, em Morouços, um enviado daquela encantadora Adriana do Folgozinho que, na mocidade, tivera Estina na conta de prima dilecta. Era o seu único neto. Germa viu-se diante de um certo Bernardo Sanches, um dandy da intelectualidade, que citava Paul Éluard, fazendo retinir muito as sílabas, com exaltação mais dogmática do que poética. Usava lunetas, por birra pedante, do mesmo modo que usava o seu casaco aberto atrás, sob o cinto, no estilo que estivera em moda por volta de 1900 e que o povo, jocosamente, chamara «de aparta barulhos».

Agustina Bessa-Luís, A Sibila, Guimarães Editores, 1998 (23ª edição).

O Plano

Tudo o que não obedece a um plano, dura apenas o tempo da realização; e não tem glória, nem esse cunho das coisas humanas que trazem consigo um alento de superação e de eternidade.

Agustina Bessa-Luís, A Sibila, Guimarães Editores, 1998 (23ª edição).

Next Parlor

it occurred to me suddenly
when I was sitting by the fire
I thought you were standing there by the parlor
your body covered by a silent still light
no sounds no movements no games of shade and light
just your body
and then
then for the last time
a sudden irretrievable impulse
forced me to stay

I wanted to haunt you I guess one last time
I wanted to tell you some tale
words of kindness made not of fire nor ice
a green shadowed word where your shape
could grow and dance with no soil resistance
where it could pay me a visit from time to time

but I’ve grown impatient full of doubts and woes
no green god will grant me more time
just this dull silence
imposed by my body standing at the door
thinking you are neverthless standing there
naked in the next parlor

no thoughts no words no gesture
it figures
just your body
that kinship bond of your silent presence
(what in you makes me resemble to closeness)
no word can restore me to

De um texto intitulado «Relance sobre a Poesia de Edmundo de Bettencourt»

A ambiguidade de uma geração é algo que nasce não dela mesma, como entidade criadora, mas da resistência oferecida pelos seus elementos estáticos. A decifração de um tempo, isto é, a solução da sua ambiguidade, realiza-se mercê dos elementos criativos do tempo seguinte, acção esta que é nada mais nada menos do que a consecução da perspectiva histórica. O comum das pessoas não possui mais do que a aceitação (induzida) das significações. Elas aceitam, por espírito de convenção, o que a história garantiu. A seu respeito não se deve falar, por conseguinte, em conseguimento de uma perspectiva. A compreensão da massa é sempre formal, jamais atingindo a intimidade das forças que tornaram revolucionário certo momento.
Herberto Helder (1999), aqui.