terça-feira, 11 de agosto de 2009

A representação de três poetas na Antiguidade, ou como ir da Épica ao Romance

Na Odisseia encontramos representados dois aedos, Demódoco, o aedo cego que vivia na corte dos Feaces, e que alguns estudiosos defendem ser uma projecção de Homero, e Fémio, filho de Térpio, que cantara à força para os pretendentes e que acaba por ser poupado por Ulisses aquando da chacina dos restantes pretendentes de Penélope.
Quando Alcínoo pela primeira vez se refere ao aedo Demódoco, fá-lo nos seguintes termos:

(…) E chamai ainda o divino aedo,
Demódoco, pois a ele concedeu o deus o apanágio de nos
deleitar, quando aquilo canta que lhe inspira o coração.*

Demódoco, sendo cego, é conduzido pelo arauto e sentado num trono adornado de prata no meio dos convivas, junto dele é colocado um cesto e uma mesa e é-lhe servida uma taça de vinho, a lira é pendurada num prego, perto da sua cabeça.
O aedo ocupava um lugar próprio na corte dos Feaces, tem um arauto que o guia para junto dos convivas e que lhe mostra como pode chegar à sua lira. São-lhe servidas comida e bebida antes de executar a sua arte. Diz-se que os deuses lhe haviam concedido ao mesmo tempo o bem e o mal: privaram-no da vista, mas, em compensação, outorgaram-lhe o dom do canto. É possível inferir que todos na corte dos Feaces entendem que Démodoco possui um dom divino que, de certa forma, o torna um homem sagrado entre os restantes, um ser inspirado pelos deuses. O canto, diz-se, tal como o banquete, sacia o coração .
É nos mesmos moldes que Fémio suplica a Ulisses que o poupe. Diz-lhe:

Peço-te de joelhos, ó Ulisses, que me respeites e te apiedes de mim.
Para ti próprio virá a desventura, se matares o aedo:
eu mesmo, que canto para os deuses e para os homens.
Sou autodidacta e um deus me pôs no espírito cantos
de todos os géneros: sou a pessoa certa para cantar ao teu lado,
como se fosse um deus. Por isso não desejes degolar-me.

Dignas de nota são as palavras do v. 345, acima citado. Fémio prevê para Ulisses a desventura, caso o mate, pois ele canta para os deuses e para os homens e um deus [lhe] pôs no espírito cantos. Mais uma vez, o poeta surge como ser inspirado, é funesto (podemos inferi-lo) matá-lo pois possui um dom divino.
Por outro lado, nas palavras de Fémio (nos vv. 348 – 349) está implícita uma outra qualidade que era tida pelos aedos: o dom de, pela fama que o canto espalha, imortalizar os feitos de um homem, daí ser lícito Fémio comparar-se a um deus, visto que a imortalidade e a concessão da imortalidade eram um atributo e dádiva considerados divinos. O canto tinha o poder de eternizar um feito, daí os aedos serem tão respeitados. Praticar um gesto que merecesse ser imortalizado pelo canto era a ambição de qualquer herói homérico, porque lhes concedia o lugar de imortalidade possível: a memória dos homens.
Esta noção de que existem feitos que merecem ser imortalizados pelo canto e de que todo o herói deve ambicionar praticá-los é muito própria do mundo homérico. A estes heróis homéricos, Petrónio contrapõe, talvez até conscientemente, Encólpio, o seu anti-herói.
Também no Satyricon encontramos um poeta, Eumolpo, mas este surge numa situação bem diferente destes dois aedos. Também o seu comportamento é bastante distante do destes dois seres inspirados pelos deuses. Eumolpo pertence a um mundo em que já não é possível um poeta ser considerado divino. Tal é atestado no momento da sua primeira aparição. No §90, enquanto o poeta recita o poema sobre a tomada de Tróia, a Troiae halosis, alguns transeuntes que passeavam pelo pórtico atiraram pedras a Eumolpo, enquanto este recitava. E ele, que já conhecia o aplauso acolhido pelo seu engenho, cobriu a cabeça e tratou de fugir para fora do templo.
Um cenário bem diferente portanto daqueles em que se movimentavam Demódoco e Fémio, que possuíam um espaço próprio e eram acolhidos e respeitados pelos homens que se movimentavam nos mesmos espaços que eles, para usar as expressões de Lukács, toda e qualquer acção sua era a well-fitting garment for the world. Existia uma relação de adequação entre estas personagens e o mundo em que se movimentavam. O mesmo não se poderá dizer de Eumolpo, que é uma personagem que enquanto poeta não tem um espaço próprio no mundo em que se movimenta, correndo o risco de se tornar uma figura marginal. Repare-se palavras que Encólpio lhe dirige na sequência deste episódio:

– Ouve lá: onde pretendes tu chegar com essa tua mania? Andas comigo há menos de duas horas e já mais vezes falaste à maneira dos poetas que dos humanos! Por isso não admira que as pessoas te persigam à pedrada. Também eu deveria carregar os bolsos de calhaus, para te fazer saltar o sangue da cabeça, sempre que te desse para sair dos eixos.
(…)
– Muito bem; se deres hoje trégua à tua bílis, podemos jantar os dois.

O canto não é o bem que os deuses lhe concederam, é uma mania sua. A linguagem dos poetas não pertence à fala dos humanos e, certamente, tal afirmação da parte de Encólpio não vai no sentido de sublinhar o carácter divino do acto de cantar, uma vez que acrescenta que não o admira que as pessoas o persigam à pedrada e afirma que ele próprio devia fazer o mesmo. Repara-se que, neste ponto do romance, Eumolpo está a cantar um tema homérico, tarefa de que imediatamente abdica mediante a oferta de um jantar.
Ainda para demonstrar que já não estamos num tempo em que a forma de expressão adequada aos actos dos homens seja a épica homérica, da qual o aedo era um símbolo, uma vez que a narrava, é o facto de Eumolpo não atingir notoriedade como poeta mas como contador de histórias, como a atestam a narração do episódio autobiográfico do rapaz de Pérgamo e a história da matrona de Éfeso. Nenhuma das narrativas é acolhida com uma chuva de calhaus e ninguém diz ao poeta que ele esteja a sair dos eixos. Será correcto afirmar que o canto aqui surge evoluindo (ou decaindo, depende da perspectiva) para uma forma narrativa, que podemos considerar como no âmbito da linguagem dos humanos, e portanto tolerável.
Porque as condições do seu mundo não são já as da épica homérica (mundo fechado, de totalidade imanente), o acto de narrar em verso um facto homérico deixa de ser possível a Eumolpo, sob pena de ser apedrejado pelos seus contemporâneos, o que demonstra que este tempo já não é o da sensibilidade da épica. Porém, a narrativa de uma história, acto identificado com a linguagem quotidiana mas também forma própria do romance e da novela, é bem acolhida.

*As citações incluídas neste texto são retiradas das edições da Livros Cotovia da Odisseia e do Satyricon, traduções, respectivamente, de Frederico Lourenço e Delfim F. Leão

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