sábado, 29 de agosto de 2009

«Inglourious Basterds» de Quentin Tarantino, 2009
















Se ainda não viu o filme, não leia este post (spoilers).

Aqui há uns dias ouvi Quentin Tarantino afirmar (em peça da Sic Notícias, salvo o erro) que tinha aprendido tudo sobre cinema no cinema. Nessa reportagem mostravam-no a filmar a famosa cena de dança entre Uma Thurman e John Travolta em Pulp Fiction. Tarantino dançava ao mesmo tempo que dirigia os seus actores. Depois de ver isso, e de ter visto filmes como Death Proof, não ficamos com muitos motivos para duvidar da afirmação de Tarantino.
Também a mim, como à maior parte das pessoas que já o viu, o filme me pareceu extraordinariamente bem filmado, a primeira cena, em que a personagem de Pierre LaPadite aparece a cortar lenha, um tipo grande, forte, bruto, aparentemente destemido, em contraste com a cena em que Tarantino o filma adiante, com o pormenor dos olhos marejados de lágrimas,é verdadeiramente bonita.
Parece-me ainda que esta cena joga com o horizonte de expectativa do espectador regular de filmes de Tarantino. Numa cena dirigida por este realizador em que sucessivamente se filma um homem com um machado, um homem com uma caneta, um homem a beber um copo de leite (em vez de um copo de vinho) e um homem com um cachimbo altamente suspeito, fico sempre à espera de ver algo de brutalmente violento acontecer.
O mesmo sucede na cena em que o tenente Aldo Raine e o soldado que leva a alcunha de Shortie são presos por Hans Lada: nessa cena não consegui evitar recordar-me de uma outra, de Pulp Fiction, em que as personagens de Bruce Willis e Ving Rhames são presos numa cave.
Deste ponto de vista, Tarantino «brinca» com aquilo que é o nosso conhecimento dos seus filmes e o nosso horizonte de expectativa em relação a estes, e já fizera algo parecido em Death Proof, quando numa das cenas um telemóvel toca e o toque é a música (creio que) do Kill Bill.
Para quem estava à espera de um filme altamente violento, em que seguiríamos os basterds de massacre em massacre (as possibilidades parecem-nos infinitas quando um deles é apresentado como tendo por especialidade esmagar cabeças de Nazis com um taco de basebol), o filme rapidamente nos faz mudar de ideias, e os basterds dividem o papel principal (para não dizer que têm um papel quase secundário) com outras personagens, nomeadamente Soshanna e o coronel Hans Lada, que sim, tem um desempenho que é isso tudo que dizem e ainda fala fluentemente quatro línguas no filme. Uma das melhores personagens de Tarantino, de todos os tempos, sem dúvida. Bem como o tenente Aldo Raine.
A primeira cena em que eles contracenam (o diálogo em italiano) conta-se entre as coisas mais divertidas que tenho visto numa sala de cinema. Valia a pena pagar o bilhete nem que fosse para ouvir o sotaque de Aldo Raine (que se identifica como sendo do Tennessee, talvez uma private joke de Tarantino, que é originário de Knoxville) e a cena em que ele alude às suas actividades de bootlegger.
Muita coisa fica ainda por ser dita. Este é também um filme sobre cinema, literalmente e metaforicamente. É-o literalmente por causa das bobines de nitrato (com tempo de Tarantino passar uma cena do À 1 e 45 de Hitchcock, filme em que um autocarro explode também por causa de um rapazinho que transportava uma bobine de nitrato, mais um elemento que parece corroborar a afirmação do realizador a que acima aludimos). Metaforicamente porque acho que, embora concorde que o filme também seja um exercício de história alternativa, história ficcional, como afirmam alguns críticos, tendo a ver o seu final (a modos que) quase como uma mise-en-abyme em que creio que é o espectador quem se torna uma narrativa dentro da narrativa: a dada altura estamos dentro de um cinema a ver o estado-maior alemão a ser trancado e incendiado dentro de um cinema durante o visionamento de um filme que também nós estivemos a ver.
E neste ponto que, mais do que um exercício de reescrita da história, mais do que criar uma realidade alternativa, etc., Inglorious Basterds se converte num filme sobre a liberdade total de um cineasta: de contar a sua história do ângulo que quiser, que lhe apetecer, e divertir-nos durante cento e cinquenta e três minutos no processo.
P.S. Neste filme há ainda tempo para um diálogo excelente sobre whisky, seguido de uma alusão não menos excelente à forma como os alemães representam o número três. E , ainda, para ver o actor de Rex, o Cão Polícia (Gedeon Burkhard) e ainda o de Goodbye Lenin (Daniel Brühl) em cena.
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