sábado, 30 de junho de 2012

O verdadeiro paganismo

Ser sensato é a maior excelência, sabedoria é dizer a verdade e proceder de acordo com a natureza.
111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111jjjj111j1Heraclito, frg. 112.

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 O que distingue o paganismo greco-romano é o carácter firmemente objectivo que nele transparece, efeito de uma mentalidade que, embora diferente nos dois povos, tinha de comum a tendência para colocar na Natureza exterior, ou num princípio, embora abstracto, derivado dela, o critério da Realidade, a base para a especulação e para a interpretação da vida. (...) O ideal, a especulação, são extraídos da realidade pelos gregos, não lhe são impostos nem por dentro, como no sistema índio, nem por fora como no de Cristo.

 Mas mesmo que os vários pagãos à força da nossa civilização cristã tivessem tido a noção clara do que constitui a essência do paganismo, não quer isso dizer que imediatamente passariam a ser pagãos, neo-pagãos ou re-pagãos. Essas coisas, compreendidas só com a inteligência, nada são e nada valem. Tem o indivíduo que nascer com a inteligência para compreendê-las colocada no centro da sua sensibilidade. Tem o indivíduo que nascer pagão para ser pagão. Nascitur non fit, como o poeta, e, afinal, como tudo o que é estável neste mundo. 

Ricardo Reis, Prosa, Assírio & Alvim, 2003.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

A vida como um livro que se fechou

Apagámos todas as letras
E a afirmação mantém-se vagamente,
Como uma inscrição sobre a porta de um banco,
Com números romanos difíceis de decifrar,
E que, à sua maneira, talvez digam de mais.

Não estávamos a ser surrealistas? E porque é que
No bar estranhos observavam o teu cabelo
E as tuas unhas, como se o corpo
Não procurasse e encontrasse a posição mais confortável,
E a tua cabeça, essa coisa estranha,
Não ficasse cada vez mais problemática de cada vez que alguém fechava a porta?

Falámos um com o outro,
Levámos cada coisa só até onde podíamos,
Mas na ordem certa, e assim ela é música,
Ou qualquer coisa como música, falando da distância.
Temos apenas algum saber
E mais que a ambição necessária
Para o transformar num fruto feito de nuvem
Que nos protegerá até desaparecer.

Mas o seu sumo é amargo,
Não temos disso nos nossos jardins,
E tu devias subir até onde mora o saber
Com esse sarcasmo desprendido, para aí alguém
Te dizer de vez: não está aqui.
Só fica o fumo,
E o silêncio, e a velhice
Que fomos construindo como uma paisagem,
De alguma maneira, e a paz bate todos os recordes,
E o cantar no campo, um prazer
Que há-de vir e não nos conhece.


John Ashbery, Uma Onda e Outros Poemas, trad. colectiva revista, completada e apresentada por João Barrento, Quetzal Editores, 1992.

September Song

Be not too hard for life is short
And nothing is given to man.
Be not too hard when he is sold and bought
For he must manage as best as he can.
Be not too hard when he gladly dies
Defending things he does not own.
Be not too hard when he tells lies
And if his heart is sometimes like a stone,
Be not too hard, for soon he dies,
Often no wiser than he began.
Be not too hard for life is short
And nothing is given to man.

Christopher Logue, Selected Poems, Faber & Faber, 1996

Terms

The place put you at risk.
Stone buildings and a few bleak clumps of birch
ranged out along the low escarpments.
The house was still your territory though.
For a while I thought you'd be content
idling amid your grimcrack jewellery,
your ancient skills,
believing everything I said.

David Harsent, do livro After Dark in Selected Poems:1969-2005, Faber & Faber.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Two short poems about nature

You and I are in words.
We belong to the same book.
The ashes upon you are mine,
and in the shadows we are
the only two witnesses, victims,
two short poems about nature
waiting for the devastation to finish its feast.

Mahmud Darwish, de "The Raven's Ink", in Unfortunately it was Paradise: Selected Poems, Munir Akash et al. (trad.), Frienses Corporation (Printer), s.d.

A brief history of John Baldessari

terça-feira, 26 de junho de 2012

On fire

(Chorus) Nothing vast enters the lives of mortals without ruin
But of course there is hope Look here comes hope
Wandering in
To tickle your feet
Then you notice the soles are on fire

Antigonick (Sophokles), "translated" by Anne Carson, illustrated by Bianca Stone (Bloodaxe Books, 2012).

segunda-feira, 25 de junho de 2012

but I resemble nothing

but I resemble nothing
As if there were no room on earth
for those pitiful, sick lyricists, descendants of demons, who
when they dream their beautiful dreams,
breach all borders and teach love poetry to parrots.

Mahmud Darwish, de "Mural", in Unfortunately it was Paradise: Selected Poems, Munir Akash et al. (trad.), Frienses Corporation (Printer), s.d.

domingo, 24 de junho de 2012

Diz Zeus a Hera

'First Heart,' God said, 'do not forget
I am at least a thousand times
Raised to that power a thousand times
Stronger than you, and your companion gods.
What I have said will be, will be,
Whether you know of it, or whether not.
Sit down. Sit still. Ad no more mouth.
Or I will kick the breath out of your bones.'

And Hera did as she was told.

It was so quiet in Heaven that you could hear
The north wind pluck a chicken in Australia.

Christopher LogueKings in Logue's Homer: War Music, Faber & Faber, 2001

sábado, 23 de junho de 2012

let's dance

































Algures em 1948.

of love not

Kreon: Enemy is always enemy Alive or dead
Antigone: I am born of love not hartred

Antigonick (Sophokles), "translated" by Anne Carson, illustrated by Bianca Stone (Bloodaxe Books, 2012).

P.S. Este livro é simplesmente brilhante. Everything about it.
'I love you, child. But we are caught.
You will die soon. As promised. And alone.
While I shall live for ever with my tears.
Keep your hate warm. God will agree', his mother said

And walked into the waves.    
As he went up the beach towards his ship.
Towards the two great armies. All asleep.

Christopher Logue, Kings in Logue's Homer: War Music, Faber & Faber, 2001

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Mais logo

























Às 21.30 na Cossoul de Santos vai ser lançado o mais recente livro de Nuno Dempster.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Lembra-me um sonho lindo

O mal da poesia, Catarina

O poeta tem o direito de dever o que lhe apetecer, com quem lhe apetecer, quando lhe apetecer, sem que alguém devesse pensar poder policiá-lo por isso, mas não temos tido essa sorte, ou talvez as barreiras estejam só na nossa cabeça e por isso valham muito pouco, são afinal ultrapassáveis (é dar-lhes uns pontapés). Premissas do género de «o poeta deve» deviam aplicar-se só em caso de saldo negativo na conta do banco do mencionado poeta. O poeta deve o que deve àquilo que ele sabe que deve fazer e, nesse sentido, «faz o que deves aconteça o que acontecer» é a disciplina do poeta. Para isso tens de ter uma consciência. A sinceridade poética no seu sentido mais estreito é uma grande treta (ainda hei-de ouvir quem diga «era um bom poeta, porque era um gajo muito sincero», como se não houvesse valor nenhum naquilo que temos de agarrar às vezes com um esforço da nossa inteligência, cobarde é querer dizer que há errado e certo para uma coisa que não tem uma fórmula, um poema é uma arte de caminhar sobre o abismo, hoje acredito mesmo que os melhores poemas são isto, coisas que te ensinam a respirar, que alargam o horizonte em que vives, como é que pode haver um dever e um não dever para isto, caramba?). O poeta deve ser fiel à sua consciência literária (coisas não fixas, que são afinal aquilo que lhe apeteça dever), à sua ética, às coisas por que tem paixão, essa coisa indefinível que quando real (luz acesa dentro) está ligada por um fio vital a um amor à arte e a um amor ao mundo (o que quer que esse mundo seja), que é o primeiro impulso para escrever o primeiro verso, acho que é desse lugar que vem o primeiro verso. Isto pode parecer ingénuo, nostálgico. Mas aí talvez o poeta possa pensar que pôs os pés no lugar certo. Mas não se deve sentir muito contente consigo próprio por isso. Para mim, hoje, este é o modo como isto funciona.
Estou tão zangado com o mundo, disse Pamuk uma vez e tinha razão. 
O mal da poesia não existe, Catarina. O inferno somos nós. 

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Um verso

Antigone: And when my strength is gone I'll stop

Antigonick (Sophokles), "translated" by Anne Carson, illustrated by Bianca Stone (Bloodaxe Books, 2012).

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Water binds me to your name

Water binds me to your name.
Nothing is left of me except you.
Nothing is left of you except me -
a stranger caressing the thighs of a stranger.
O stranger, what will we do with what's left
of the stillness and the brief sleep between two myths?
Nothing carries us: neither path nor home.
Was this the same path from the beginning?

Mahmud Darwish, "Who am I, without Exile?", Unfortunately it was Paradise: Selected Poems, Munir Akash et al. (trad.), Frienses Corporation (Printer), s.d.

And here's to the few who forgive what you do



domingo, 17 de junho de 2012

wo man nicht mehr lieben kann, da soll man - vorübergehn!

    Ad ascoltarli er' io del tutto fisso,
quando 'l maestro mi disse: «Or pur mira,
che per poco che teco non mi risso!».
     Quand' io 'l senti' a me parlar con ira,
volsimi verso lui con tal vergogna,
ch'ancor per la memoria mi si gira.
     Qual è colui che suo dannaggio sogna,
che sognando desidera sognare,
sí che quel ch'è, come non fosse, agogna,
     tal mi fec' io, non possendo parlare,
che disïava scusarmi, e scusava
me tuttavia, e nol mi credea fare.
     «Maggior difetto men vergogna lava»,
disse 'l maestro, «che 'l tuo non è stato;
però d'ogne trestizia ti disgrava.
     E fa ragion che fortuna t'accoglia
dove sien genti in simigliante piato:
     ché voler ciò udire è bassa voglia.»

Dante. Comedìa. Inferno, XXX 130-148.

sábado, 16 de junho de 2012

Como descubrir que ese poema que te hizo llorar a la noche, al día siguiente apenas te interesa



Nunca veas a una puta con luz de día, es como mirar una película con la luz encendida. Como el cabaret a las diez de la mañana, con los rayos de sol atravesando el polvo que se levanta cuando barres. Como descubrir que ese poema que te hizo llorar a la noche, al día siguiente apenas te interesa. Es como sería este puto mundo si hubiera que soportar las cosas tal y como son. Como descubrir al actor que viste haciendo Hamlet en la cola del pan. Como el vacío cuando te pagan y no sentís ni siquiera un poquito. Como la tristeza cuando te pagan y sentiste por lo menos un poquito. Como abrir un cajón y descubrir una foto de cuando la puta tenía nueve años. Como dejarte venir conmigo sabiendo que cuando se acabe la magia vas a estar con una mujer como yo, en Montevideo.

"Elegias de Cronos" de Nuno Dempster



O lançamento do próximo livro da Artefacto, Elegias de Cronos de Nuno Dempster, é no próximo dia 22 de Junho, na Sociedade de Instrucção Guilherme Cossoul. Mais informações aqui.
O vídeo de apresentação foi feito por Paulo Tavares. 

A nossa escola de liberdade

Por razões estéticas, mas não só, não posso aceitar a concepção da morte assumida pela maioria das pessoas e que também adoptei durante quase toda a minha vida; por razões estéticas, portanto, sou obrigado a negar que uma coisa tão extraordinária como a alma humana possa apagar-se para sempre. Não, os mortos estão à nossa volta, excluídos do mundo pela nossa denegação metafísica da sua existência. Quando os milhares de milhões que somos dormem à noite nos nossos respectivos hemisférios, os mortos aproximam-se de nós. As nossas ideias devem servir-lhes de alimento. Somos os seus campos de cereais. Mas somos estéreis e eles morrem de fome. Contudo, não se enganem. Os mortos observam-nos, observam-nos nesta Terra, que é a nossa escola de liberdade. No próximo reino, onde as coisas são mais claras, a clareza carcome a liberdade. Na Terra somos livres precisamente devido à confusão, ao erro, às admiráveis libertações, e também devido à beleza, à maldade e à cegueira. Tudo isto vem sempre acompanhado pela benção da liberdade.

Saul Bellow, O Legado de Humboldt, Salvato Telles de Menezes (trad.), Quetzal, 2012.

Bloomsday 2012


My name is absurd too: Malachi Mulligan, two dactyls. But it has a Hellenic ring, hasn't it? Tripping and sunny like the buck himself. We must go to Athens. Will you come if I can get the aunt to fork out twenty quid? 
James Joyce, Ulysses 

Bloomsday; ou, A Itália é um país estranho.


James Joyce, Finnegans Wake. Testo inglese a fronte.
O M.S. Lourenço também traduziu umas partes, mas estou certo de que não chegou a este ponto. 

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Of the dancing causes (I)

Usemos um símile em estilo homérico para esclarecer a questão: sinto-me como se uma picareta tivesse acertado num veio de água e agora fosse a única coisa entre a água lá em baixo e a inundação. Há uma tensão imensa e nada que se possa fazer até avaliar concretamente se o lugar em que a picareta bateu é mesmo tão interessante quanto parece. Há, de repente, também esta adrelina brutal da tensão que é finalmente essa curiosidade humana e viva pelas coisas, pela nossa percepção das coisas, pela expectativa de iluminar um mundo. O modo como a nossa inteligência pode dançar com as coisas, como aquilo em que aplicamos o nosso entendimento é quase por vezes um modo de respirar. Uma vez li um verso de um poeta que dizia que o corpo era a dança do espírito, não me lembro já nem quem era o poeta nem em que poema estava o verso. Mas o contrário é igualmente e com alguma dose de justiça verdade. Que o espírito seja para o corpo causa de dança.

De "I see what I want to See"

We believed in what we learned from words.
Poetry was exhaled from the fruit of our nights,
and from herding our goats on their way to pasture.
Dawn was blue, tender and dewy,
and our dreams were modest, the size of our houses:
we see honey in the carobs and gather it.
We dream that the sesame seeds on the terraces
are heaped up, and we swift them.
We see in the dream what we then face at dawn.
The lover's scarf was the dream.
Yet we did not raise our fig tree
so the southern invaders could hang us upon it. 

Mahmud Darwish, Unfortunately it was Paradise: Selected Poems, Munir Akash et al. (trad.), Frienses Corporation (Printer), s.d.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Grapefruit Moon

My Shit's Fucked Up

Humildemente


(…) o pior foi quando eu, no mês de Março, subi a casa do humilde Súrikov para ver como eles tinham deixado “enregelar”, segundo a expressão dele, a criança, e sem querer soltei uma risada sobre o cadáver do seu bebé e voltei a explicar a Súrikov que “a culpa era dele próprio”. Aí, os seus lábios de joão-ninguém tremeram e, agarrando-me com uma mão pelo ombro, apontou-me a porta e disse-me em voz baixa “Saia!” Saí e gostei de sair, de ter sido expulso, naquele mesmo momento em que ele me expulsava adorei, imediatamente; mas, mais tarde, as palavras dele ao expulsar-me, quando as recordava, produziam em mim ainda durante muito tempo, a impressão grave de uma estranha e desdenhosa piedade por ele, uma piedade que não me apetecia nada sentir. Mesmo no momento de ele ser insultado daquela maneira (sei que o insultei, o ofendi, mesmo sem ter essa intenção), mesmo nesse momento o homenzinho foi incapaz de zangar-se! Não foi por zanga que lhe tremeram então os lábios, juro: agarrou-me no braço e pronunciou o seu magnífico “saia!” sem qualquer zanga. Havia nele dignidade, mesmo muita dignidade (o que até nem dizia muito bem com ele, pelo que havia também muita comicidade na situação), mas não havia zanga. Acho que começou então, de repente, a desprezar-me. Desde então, por duas ou três vezes, quando o encontrava nas escadas, tirava-me o chapéu, o que nunca fizera dantes, mas não parava ao pé de mim, como era seu hábito, antes me passava ao lado, todo confuso. Mesmo que me desprezasse, fazia-o à sua maneira: “desprezava humildemente”.

Fiódor Dostoiévski, O Idiota. Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Editorial Presença, 2001.

domingo, 10 de junho de 2012

Uma coisa de espécie ameaçada


Um poeta da minha geração escreveu num dos seus primeiros livros que um poema é um palco para gestos simples. Pensar no poema enquanto palco para gestos simples remete, no meu caso, colateralmente para outra ideia, a do poema como algo que se instaura a si próprio, enquanto uma realidade sobre a realidade e, por extensão, coisa que está destinada a fazer-se acontecer perante um leitor e a desviar quem lê do ponto em que estava antes de ler (isto depois tem toda uma outra série de implicações, que não importa debater aqui), se o leitor estiver disposto a emprestar ao poema sua atenção. Charles Simic talvez tenha dito isto que estou a tentar dizer com muito mais estilo, economia e eficácia (New York Review of Books, 7 de Junho de 2012): 

“Poetry dwells in a perpetual utopia of its own,” wrote William Hazlitt, the great British essayist of the Romantic Period. Despite everything I’ve been saying, I think he has a point. In relation to the future, a poem is like a note sealed in a bottle and thrown into the sea. Writing one is an act of immense, near-irrational hope that an image, a metaphor, some lines of verse and the voice embodied in them will have a long, posthumous life. “The poem wants to reach an Other, it needs this Other,” Paul Celan has said. 

And it happens sometimes. A young man in a small town in Patagonia or in Kansas reads an ancient Chinese poet in a book he borrowed from the library and falls in love with a poem, which he reads to himself over and over again as the summer night is falling. With each reading he brings the voice of the dead poet to life. For one unforgettable moment, he steps out of his own cramped self and enters the lives of unknown men and women, seeing the world through their eyes, feeling what they once felt and thinking what they once thought. If poetry is not the most utopian project ever devised by human beings, I don’t know what is. 

 A imagem que me importa reter desta citação é a de que o poema é como uma garrafa lançada ao mar, que um poema é sempre um acto de imensa, quase irracional esperança de que uma imagem, uma metáfora venham a ter uma vida póstuma. Mais do que esta ideia de o poema ter uma vida póstuma, importa-me a segunda noção, o efeito que o poema tem sobre o leitor, a ideia de Celan de que o poema precisa do outro e que isso permite a esse outro passar para fora de si próprio, passar para outras cores, sentir e ver o que outros viram ou sentiram (até que ponto é que só é isto - o que já não seria pouco - o que se passa com os poemas que mais amamos é ainda outra questão). Simic escreveu isto num texto acerca do futuro da poesia e a posição dele é fundamentalmente a minha. 
A poesia é uma coisa que se tem feito no Ocidente há cerca de trinta séculos, não é num século que mudará radicalmente, não é um século que trará a sua extinção. É um discurso hipócrita aquele que postula que a poesia está ameaçada pela barbárie (e por barbárie não entendo aqui meramente os que não lêem poesia, mas a definição o mais larga possível do termo) e que há uma meia dúzia de últimos que tomarão nas suas mãos defendê-la. Mas defendê-la de quê ao certo? Em que século é que foi verdadeiramente fácil escrever poesia a sério? Em que século é que a poesia não se escreveu contra a barbárie, essa pequena luz de que falava Sena? No princípio de tudo? Na Grécia de Homero? 
Um amigo em tempos disse-me que um poeta tem sempre de estar à espera que o mundo o fira. Há uma pequena correcção a fazer sobre isto, um poeta tem de escrever como se acreditasse que o mundo não o pode ferir, tem de se entregar, de se encontrar completamente com aquilo que é a sua arte como se esta possibilidade não existisse. Mesmo quando está a escrever sobre a sua experiência mais privada, mesmo quando se torna mais exposto. Digo que é cobarde todo o poeta que diz que está a escrever ou a lutar pela poesia enquanto a barbárie não vem. Não existe outra coisa em redor da poesia que não a barbárie, estou em crer que o primeiro tipo que pensou em afinar um par hexâmetros devia estar também a debater-se com isso. A poesia é uma das formas pelas quais combatemos a barbárie, não é uma coitadinha que esteja passivamente à espera que ela venha. 
É também por isso que Hazlitt estava tão certo quando escreveu que a poesia habita a sua própria utopia. Não porque esteja desligada do mundo, num não-lugar, mas porque a poesia tem de ser o trespasse do mundo. Ou então não interessa. É só uma merda presa do interesse de meia dúzia de egos e de posições interesseiras. É com isto que a poesia precisa de romper primeiro, é disto que a poesia precisa de ser o não-lugar. O futuro da poesia não interessa porque o futuro da poesia não existe. Esta é talvez mais uma das especificidades da poesia em relação às outras artes. É que é a mais improvável de todas. Não há dinheiro para fazer na poesia, ela não contém uma utilidade prática, não é uma coisa regida por princípios e objectivos. Não são estas as suas leis. E isto é do mais estranho que existe sobretudo para um tempo como o nosso, mas também em tempos que nos precederam (para que raio haveriam Celan, Ritsos de assinar versos num campo de concentração, será que garantir o futuro da poesia era o que eles tinham em mente?). A poesia é esse outro princípio. O palco para gestos simples. O não-lugar que na Patagónia ou no Arcansas há-de encontrar o young man que a leia contra as condições confortáveis, contra o ruído, o tédio ou a barbárie constantes do quotidiano. 
Píndaro escreveu numa ode que nunca me recordo qual é que atravessava toda a beleza sem poder arrebatar alguma para si. Se não foi exactamente isto que ele disse e se não foi deste modo foi algo parecido. Sempre achei que com isto ele estivesse a falar dessa condição incompleta que há na poesia, que a torna na sua génese e inevitavelmente coisa de espécie ameaçada.

The future of poetry

In 1972, I found myself on a panel whose subject was the poetry of the future. It was at the Struga Poetry Festival in Macedonia. I wasn’t scheduled to participate, but the American poet who was supposed to, W.S. Merwin, begged me to take his place, since he wanted to visit some monastery with his girlfriend. Being older, much more famous, and immensely admired by me, he couldn’t be refused and I went to the morning panel without any idea of what I was going to say. To my horror, the other panelists had come well-prepared, reading either from copious notes or as in the case of a poet from the Soviet Union, from a lengthy typewritten text that confidently predicted a golden age of poetry in a world turned Communist and living in harmony for the first time in human history.

My turn came next, though I was in near-comatose condition from uninterrupted drinking, smoking and talking since my arrival to the festival after a twenty-hour long journey from San Francisco with barely any sleep. Nevertheless, roused back to life by the drivel of the previous speaker, I said that predicting the future of poetry is a total waste of time, because poetry has not changed fundamentally in the last twenty-five centuries and I doubted it would do so in the next hundred years. Since that was all the energy I had, I fell silent and didn’t open my mouth again for the rest of the session. As for my fellow-panelists, I have no memory of any of them responding to anything I said as they continued arguing with each other about the future of poetry.

a noite pede música

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sexta-feira, 8 de junho de 2012

The last train has stopped

The last train has stopped at the last platform. No one is there
to save the roses, no doves to alight on a woman made of words.
Time has ended. The ode fares no better than the foam.
Don't put faith in our trains, love. Don't wait for anyone in the crowd.
The last train has stopped at the last platform. But no one 
can cast the reflection of Narcissus back on the mirrors of night.
Where can I write my latest account of the body's incarnation?
It's the end of what was bound to end! Where is that which ends?
Where can I free myself of the homeland in my body?
Don't put faith in our trains love. The last dove flew away.
The last train has stopped at the last platform. And no one was there.

Mahmud Darwish, Unfortunately it was Paradise: Selected Poems, Munir Akash et al. (trad.), Frienses Corporation (Printer), s.d.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

"Se quiseres, podes purificar-me"

Mostra-lhe, como uma coisa pode ser feliz, inocente e nossa,
como até a própria dor lamentosa se abre, pura, à forma,
serve como coisa, ou morre transformando-se em coisa -, além
ela afasta-se, com júbilo, do violino. Estas coisas que vivem do declínio
compreendem que tu as louves; efémeras,
confiam-se-nos como coisas salvando-se, a nós os mais efémeros.
Querem que as transformemos por completo no coração invisível,
em - oh, infinitamente - em nós! Sejamos nós quem formos, afinal.

Rainer Maria Rilke, in  "Nona Elegia", As Elegias de Duíno, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Assírio & Alvim, 2002.

Uma história de cama

Ontem estava a ler um poema de Luis García Montero (em tradução de Nuno Dempster) que se fixava no contraste entre um grupo de velhotas num café - diz-se que associadas na ordem da má língua, e do té con limón - e que de repente se calam e param a olhar, porque na mesa ao lado está uma rapariga a contar uma história de cama, com pormenores hábeis e no contar dessa história, diz García Montero, há uma «maneira de sentir a vida/ que penetra e dissolve a luz de igreja,/ a humilhação do frio nos joelhos». Não podia de verdade dizer em quantos níveis de sentido este poema me é caro, é uma coisa que começa no seu sentido mais literal e mais óbvio e vai avançando por outros sentidos que lhe vou pondo ou vendo. Um deles é uma coisa engraçada e prende-se, não só mas também, com o facto de, basicamente, estar há dois meses fechada numa biblioteca (ah, então a minha identificação está ligada ao poema enquanto génio libertador, cujo único horizonte de referência é na verdade a minha vidinha, o aspecto idiossincraticamente biográfico - errado, é verdade é isso, mas não é só isso). 
Uma das maneiras de ler este poema poderia ser ver aqui o contraste entre um saber meramente livresco e a vida, o enredo da vida, sendo que as velhotas são o saber livresco e a rapariga é essa habilidade para acima de tudo estar vivo. Um modo de viver os livros que não se ligue e não parta para encontrar ou ferir ou criar um eco naquilo que para nós é mais vital - o sentido encontrado ou a procurar, o acumular de meras referências, digamos, para massacrar os outros com a nossa erudição ou com a nossa inteligência hipertrofiada,  é equivalente a ser uma velhinha a quem, percorrida uma vida inteira, tudo o que restou foi a ordem do chá com limão e da má língua. Não estou, por outro lado, a dizer que só aquilo que se liga aos nossos horizontes mais imediatos, aquilo que estabelece uma relação connosco é o que devemos perseguir, não é também isso, porque não podemos viver sem a possibilidade de nos espantarmos com as coisas (é por isso que não podemos querer saber tudo - tudo seria previsível, a vida seria brutalmente chata). A rapariga que conta a história de cama está também ligada ao acto de contar alguma coisa. Mas há uma harmonia entre os dois equilíbrios que as velhas falham. Essa coisa que a expressão «uma maneira de sentir a vida» sintetiza. Para quê encher livros ou cadernos de palavras, bibliotecas de livros se não por isto, o que quer isto possa ser, para apontar para a vida? Quanto mais penso nestas questões, mais me inclino para pensar que este é o aspecto mais básico (e, note-se bem, não o mais utilitário) da nossa relação com a literatura (um burocrata da literatura - a.k.a. tão burocrata de merda como todos burocratas - talvez lhe chamasse «a especificidade do literário» ou alguma treta deste género). Não o prescritivo - deve ser o aspecto mais básico mas o idiossincrático - para mim é e para já não vejo outra maneira que me dê mais jeito para me relacionar com a literatura. 
A melhor coisa acerca do Legado de Humboldt do Bellow é que não é a vida que toma existência pela literatura (estamos todos a gritar por um deusinho alado que não virá mas que nos torna uma espécie de sociedade secreta tão fixe - na verdade, a maior parte do tempo o deus mais evidente é aquele bastante visível do poema de Kavafis, o que abandona António, o deus como mediador e símbolo da perda, da morte, da destruição e do modo como lidamos com estas coisas), é que em Bellow é pela literatura que se vai chegando à vida, a way to make amends with it.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A vontade hesita no desdém
da descrição, demora
além do que vai narrar. Farrapos
no gancho pronto a recolher
ossos esboroados, a infecção
que doía na trincheira
dessa vala comum da noite diária
sobre a auto-estrada urbana.
Põe no mais alto esses cantares que do passado
descem digitalizados nos discos compactos
e ocupam a fermentação do tráfico.

A sinceridade despedaçada não é
uma ética da devastação
para o que de mim permanece de pé.
Mas uma rugosa ruína nos é comum,
um lixo de onde tem de erguer-se
o que nos faz viver. Como cantava
Lucho Gatica na canção de Briz,
Mi suerte necesita de tu suerte.
Olhos cinzentos que ninguém já diz
quando eu os procurava.

Joaquim Manuel Magalhães, in «A Cal e Canto», Alta Noite em Alta Fraga, Relógio d'Água,  2001.

terça-feira, 5 de junho de 2012

'Hölderlin'

('Hölderlin' was the code name used by an East
German poet when she spied for the Stasi.)

Why? Because after you, what you had said,
What you had put about among humankind,
Even bigger lies were possible and on your highs
That deep came disappointment. After you

We lived like foreigners in our mother country
Among the trades and functions, among the shells
Not one inhabited by a living kind
Of human. There was always a word for us

Because of you, more than a word, the thing,
Your doing, that want, that powerless power
When faces lifted from the text and whispered 'Come
Into the open, friend, oh come, oh make

It true, the spirit quickening through all the veins
Of a republic's life, this very earth,
Ours here - if not now, when?' All that
In a mother country of old men, always

Men and old, the same old men and their
'Not now, not yet'. I sided with the liars
Against the disappointed, I wear your name
Emptily, like grief, like vain revolt.

David Constantine. Collected Poems. Bloodaxe Books (2004)

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Don Birman e o álcool

"It shrinks my liver, doesn't it, Nat? It pickles my kidneys, yeah. But what it does to the mind? It tosses the sandbags overboard so the balloon can soar. Suddenly I'm above the ordinary. I'm competent. I'm walking a tightrope over Niagara Falls. I'm one of the great ones. I'm Michaelangelo, molding the beard of Moses. I'm Van Gogh painting pure sunlight. I'm Horowitz, playing the Emperor Concerto. I'm John Barrymore before movies got him by the throat. I'm Jesse James and his two brothers, all three of them. I'm W. Shakespeare. And out there it's not Third Avenue any longer, it's the Nile. Nat, it's the Nile and down it moves the barge of Cleopatra." 

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The Lost Weekend (1945), Billy Wilder

domingo, 3 de junho de 2012

le tout est de ne pas se faire pincer en flagrant délit d'ignorance


- Es-tu bachelier?
- Non. J'ai échoué deux fois.
- Ça ne fait rien, du moment que tu as poussé tes études jusqu'au bout. Si on parle de Cicéron ou de Tibère, tu sais à peu près ce que c'est?
- Oui, à peu près.
- Bon, personne n'en sait davantage, à l'exception d'une vingtaine d'imbéciles qui ne sont fichus de se tirer d'affaire. Ça n'est pas difficile de passer pour fort, va; le tout est de ne pas se faire pincer en flagrant délit d'ignorance. On manoeuvre, on esquive la difficulté, on tourne l'obstacle, et on colle les autres au moyen d'un dictionnaire. Tous les hommes sont bêtes comme des oies et ignorants comme des carpes.

Guy de Maupassant, Bel-Ami

Deborah's Theme

sábado, 2 de junho de 2012

the machine

The dark ate you. And the fear
Of being crushed. 'A huge dark machine',
'The grinding indifferent
Millstone of circumstance'. After
Watching the orange sunset, these were the words
You put on a page. They had come to you
When I did not. When you tried
To will me up the stair, this terror
Arrived instead. While I
Most likely was just sitting,
Maybe with Lucas, no more purpose in me
Than in my own dog
That I did not have. A real dog
Might have stared at nothing
Hair on end
While the grotesque mask of your Mummy-Daddy
Half-quarry, Half-hospital, whole
Juggernaut, stuffed with your unwritten poems,
Ground invisibly without a ripple
Towards me through the unstirred willows,
Through the wall of The Anchor,
Drained my Guinness at a gulp,
Blackly yawned me
Into its otherworld interior
Where I would find my home. My children. And my life
Forever trying to climb the steps now stone
Towards the door now red
Which you, in your own likeness, would open
With still time to talk.

Ted Hughes, Birthday Letters.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

all the time

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Durnwald

- Grande coisa vai fazer por ti esse Durnwald. É o professor dos professores. Não mostra interesse por ninguém. Só sabe o que leu ou ouviu dizer. Quando tento conversar com ele é como se estivesse a jogar pingue-pongue com o campeão chinês. Sirvo, ele rebate e acabou tudo! Tenho de servir outra vez e não tardo a ficar sem bolas.
Atacava sempre Durnwald com dureza. Havia uma certa rivalidade. Sabia até que eu me encontrava ligado a Dick Durnwald. Na brutal Chicago, Durnwald, a quem admirava e chegava a adorar, era o único homem com quem trocava ideias. Mas ele estivera durante seis meses na Universidade de Edimburgo a dar aulas sobre Comte, Durkheim, Tonnies, Weber e gente que tal.

Saul BellowO Legado de Humboldt, Salvato Telles de Menezes (trad.), Quetzal, 2012.