Ontem estava a ler um poema de Luis García Montero (em tradução de Nuno Dempster) que se fixava no contraste entre um grupo de velhotas num café - diz-se que associadas na ordem da má língua, e do té con limón - e que de repente se calam e param a olhar, porque na mesa ao lado está uma rapariga a contar uma história de cama, com pormenores hábeis e no contar dessa história, diz García Montero, há uma «maneira de sentir a vida/ que penetra e dissolve a luz de igreja,/ a humilhação do frio nos joelhos». Não podia de verdade dizer em quantos níveis de sentido este poema me é caro, é uma coisa que começa no seu sentido mais literal e mais óbvio e vai avançando por outros sentidos que lhe vou pondo ou vendo. Um deles é uma coisa engraçada e prende-se, não só mas também, com o facto de, basicamente, estar há dois meses fechada numa biblioteca (ah, então a minha identificação está ligada ao poema enquanto génio libertador, cujo único horizonte de referência é na verdade a minha vidinha, o aspecto idiossincraticamente biográfico - errado, é verdade é isso, mas não é só isso).
Uma das maneiras de ler este poema poderia ser ver aqui o contraste entre um saber meramente livresco e a vida, o enredo da vida, sendo que as velhotas são o saber livresco e a rapariga é essa habilidade para acima de tudo estar vivo. Um modo de viver os livros que não se ligue e não parta para encontrar ou ferir ou criar um eco naquilo que para nós é mais vital - o sentido encontrado ou a procurar, o acumular de meras referências, digamos, para massacrar os outros com a nossa erudição ou com a nossa inteligência hipertrofiada, é equivalente a ser uma velhinha a quem, percorrida uma vida inteira, tudo o que restou foi a ordem do chá com limão e da má língua. Não estou, por outro lado, a dizer que só aquilo que se liga aos nossos horizontes mais imediatos, aquilo que estabelece uma relação connosco é o que devemos perseguir, não é também isso, porque não podemos viver sem a possibilidade de nos espantarmos com as coisas (é por isso que não podemos querer saber tudo - tudo seria previsível, a vida seria brutalmente chata). A rapariga que conta a história de cama está também ligada ao acto de contar alguma coisa. Mas há uma harmonia entre os dois equilíbrios que as velhas falham. Essa coisa que a expressão «uma maneira de sentir a vida» sintetiza. Para quê encher livros ou cadernos de palavras, bibliotecas de livros se não por isto, o que quer isto possa ser, para apontar para a vida? Quanto mais penso nestas questões, mais me inclino para pensar que este é o aspecto mais básico (e, note-se bem, não o mais utilitário) da nossa relação com a literatura (um burocrata da literatura - a.k.a. tão burocrata de merda como todos burocratas - talvez lhe chamasse «a especificidade do literário» ou alguma treta deste género). Não o prescritivo - deve ser o aspecto mais básico mas o idiossincrático - para mim é e para já não vejo outra maneira que me dê mais jeito para me relacionar com a literatura.
A melhor coisa acerca do Legado de Humboldt do Bellow é que não é a vida que toma existência pela literatura (estamos todos a gritar por um deusinho alado que não virá mas que nos torna uma espécie de sociedade secreta tão fixe - na verdade, a maior parte do tempo o deus mais evidente é aquele bastante visível do poema de Kavafis, o que abandona António, o deus como mediador e símbolo da perda, da morte, da destruição e do modo como lidamos com estas coisas), é que em Bellow é pela literatura que se vai chegando à vida, a way to make amends with it.
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