domingo, 10 de junho de 2012

Uma coisa de espécie ameaçada


Um poeta da minha geração escreveu num dos seus primeiros livros que um poema é um palco para gestos simples. Pensar no poema enquanto palco para gestos simples remete, no meu caso, colateralmente para outra ideia, a do poema como algo que se instaura a si próprio, enquanto uma realidade sobre a realidade e, por extensão, coisa que está destinada a fazer-se acontecer perante um leitor e a desviar quem lê do ponto em que estava antes de ler (isto depois tem toda uma outra série de implicações, que não importa debater aqui), se o leitor estiver disposto a emprestar ao poema sua atenção. Charles Simic talvez tenha dito isto que estou a tentar dizer com muito mais estilo, economia e eficácia (New York Review of Books, 7 de Junho de 2012): 

“Poetry dwells in a perpetual utopia of its own,” wrote William Hazlitt, the great British essayist of the Romantic Period. Despite everything I’ve been saying, I think he has a point. In relation to the future, a poem is like a note sealed in a bottle and thrown into the sea. Writing one is an act of immense, near-irrational hope that an image, a metaphor, some lines of verse and the voice embodied in them will have a long, posthumous life. “The poem wants to reach an Other, it needs this Other,” Paul Celan has said. 

And it happens sometimes. A young man in a small town in Patagonia or in Kansas reads an ancient Chinese poet in a book he borrowed from the library and falls in love with a poem, which he reads to himself over and over again as the summer night is falling. With each reading he brings the voice of the dead poet to life. For one unforgettable moment, he steps out of his own cramped self and enters the lives of unknown men and women, seeing the world through their eyes, feeling what they once felt and thinking what they once thought. If poetry is not the most utopian project ever devised by human beings, I don’t know what is. 

 A imagem que me importa reter desta citação é a de que o poema é como uma garrafa lançada ao mar, que um poema é sempre um acto de imensa, quase irracional esperança de que uma imagem, uma metáfora venham a ter uma vida póstuma. Mais do que esta ideia de o poema ter uma vida póstuma, importa-me a segunda noção, o efeito que o poema tem sobre o leitor, a ideia de Celan de que o poema precisa do outro e que isso permite a esse outro passar para fora de si próprio, passar para outras cores, sentir e ver o que outros viram ou sentiram (até que ponto é que só é isto - o que já não seria pouco - o que se passa com os poemas que mais amamos é ainda outra questão). Simic escreveu isto num texto acerca do futuro da poesia e a posição dele é fundamentalmente a minha. 
A poesia é uma coisa que se tem feito no Ocidente há cerca de trinta séculos, não é num século que mudará radicalmente, não é um século que trará a sua extinção. É um discurso hipócrita aquele que postula que a poesia está ameaçada pela barbárie (e por barbárie não entendo aqui meramente os que não lêem poesia, mas a definição o mais larga possível do termo) e que há uma meia dúzia de últimos que tomarão nas suas mãos defendê-la. Mas defendê-la de quê ao certo? Em que século é que foi verdadeiramente fácil escrever poesia a sério? Em que século é que a poesia não se escreveu contra a barbárie, essa pequena luz de que falava Sena? No princípio de tudo? Na Grécia de Homero? 
Um amigo em tempos disse-me que um poeta tem sempre de estar à espera que o mundo o fira. Há uma pequena correcção a fazer sobre isto, um poeta tem de escrever como se acreditasse que o mundo não o pode ferir, tem de se entregar, de se encontrar completamente com aquilo que é a sua arte como se esta possibilidade não existisse. Mesmo quando está a escrever sobre a sua experiência mais privada, mesmo quando se torna mais exposto. Digo que é cobarde todo o poeta que diz que está a escrever ou a lutar pela poesia enquanto a barbárie não vem. Não existe outra coisa em redor da poesia que não a barbárie, estou em crer que o primeiro tipo que pensou em afinar um par hexâmetros devia estar também a debater-se com isso. A poesia é uma das formas pelas quais combatemos a barbárie, não é uma coitadinha que esteja passivamente à espera que ela venha. 
É também por isso que Hazlitt estava tão certo quando escreveu que a poesia habita a sua própria utopia. Não porque esteja desligada do mundo, num não-lugar, mas porque a poesia tem de ser o trespasse do mundo. Ou então não interessa. É só uma merda presa do interesse de meia dúzia de egos e de posições interesseiras. É com isto que a poesia precisa de romper primeiro, é disto que a poesia precisa de ser o não-lugar. O futuro da poesia não interessa porque o futuro da poesia não existe. Esta é talvez mais uma das especificidades da poesia em relação às outras artes. É que é a mais improvável de todas. Não há dinheiro para fazer na poesia, ela não contém uma utilidade prática, não é uma coisa regida por princípios e objectivos. Não são estas as suas leis. E isto é do mais estranho que existe sobretudo para um tempo como o nosso, mas também em tempos que nos precederam (para que raio haveriam Celan, Ritsos de assinar versos num campo de concentração, será que garantir o futuro da poesia era o que eles tinham em mente?). A poesia é esse outro princípio. O palco para gestos simples. O não-lugar que na Patagónia ou no Arcansas há-de encontrar o young man que a leia contra as condições confortáveis, contra o ruído, o tédio ou a barbárie constantes do quotidiano. 
Píndaro escreveu numa ode que nunca me recordo qual é que atravessava toda a beleza sem poder arrebatar alguma para si. Se não foi exactamente isto que ele disse e se não foi deste modo foi algo parecido. Sempre achei que com isto ele estivesse a falar dessa condição incompleta que há na poesia, que a torna na sua génese e inevitavelmente coisa de espécie ameaçada.

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