segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

The Blessings of Madness

Professor Oesterreich once chewed a large quantity of laurel leaves in the interest of science, and was disappointed to find himself no more inspired than usual.

E.R. Dodds, The Greeks and the Irrational, «The Blessings of Madness», University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1951

'Mondscheinsonate' (Beethoven/ Daniel Barenboim)

Berlim




































Daqui.

Livro

O livro de Robert Duncan sobre H. D.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Ponte de Spoleto

Sob os claros arcos da ponte romana
Onde ressoa ainda o passo das legiões imperiosas
Lá em baixo o leito do rio
Selvático e penumbroso
Interior às memórias insondáveis da alma

Maio de 1994

Sophia, Musa, Caminho, 2004

Elegia

Aprende
A não esperar por ti pois não te encontrarás

No instante de dizer sim ao destino
Incerta paraste emudecida
E os oceanos depois devagar te rodearam

A isso chamaste Orpheu Eurydice -
Incessante intensa lira vibrava ao lado
Do desfilar real dos teus dias
Nunca se distingue bem o vivido do não vivido
O encontra do fracasso -
Quem se lembra do fino escorrer da areia na ampulheta
Quando se ergue o canto
Por isso a memória sequiosa quer vir à tona
Em procura da parte que não deste
No rouco instante da noite mais calada
Ou no secreto jardim à beira-rio
Em Junho

1994
Sophia, Musa, Caminho, 2004

sábado, 29 de janeiro de 2011

Uma questão geracional

No primeiro diálogo entre Electra e Orestes, quando ela ainda não sabe quem ele é, Electra diz, ao recordar Clitemnestra, que as mulheres amam os seus homens, não os seus filhos. É um verso que nomeia a motivação para a crueldade  e para o pragmatismo que Clitemnestra exibe para com os dois filhos depois de lhes ter morto o pai e ao mesmo tempo fala da condição desgraçada a que foram condenados os dois irmãos (um tem de abandonar, ainda muito jovem, a cidade para escapar à morte, a outra é unida a um camponês, na versão de Eurípides pobre mas honesto, muito abaixo da sua condição para que a sua linhagem não venha a ameaçar os futuros filhos de Clitemnestra e Egisto). Este único verso é toda uma explicação. 
O que importa notar, contudo, é que na explicação encontrada por Electra  não  se alude à maldição que pesava sobre a casa dos Tantálidas, a uma força maior que tenha condenado Clitemnestra a agir, isto é, a  matar Agamémnon porque este antes tinha sacrificado a sua filha Ifigénia. Sucede, contudo, que quando Agamémnon sacrifica Ifigénia, para que em Áulis soprem vento favoráveis que permitam à armada partir para Tróia, há um momento em que Agamémnon hesita e conclui que «sorte pesada é não obedecer» aos deuses. A visão que Electra tem do acto da mãe é de outra índole. Pode-se argumentar que não podia ser outra, porque qualquer outra poderia ser uma forma de justificar ou desculpar Clitemnestra, despir o crime praticado da sua forma de crime, torná-lo outra coisa, que, consequentemente, tornaria também Clitemnestra outra coisa
A forma como Electra vê Clitemnestra é apenas lúcida e pragmática. Nenhum deus a determinou, ela, como todas as mulheres, amou mais a um homem do que aos seus filhos. E sublinhe-se ainda que Egisto não vale metade da sombra de Clitemnestra, dos dois ela é mais complexa, mais inteligente, mais desafiante (parece-me que isto é válido tanto em Ésquilo quanto em Eurípides). Mas entre estas palavras de Electra e quem Electra é para Eurípides há o espaço para o sorriso de amarga, e ao mesmo tempo quase terna, ironia do dramaturgo. Electra, proporcionalmente, é uma filha que ama mais os seus homens (primeiro o pai, Agamémnon, e depois o irmão, Orestes, morto o pai garante da perpetuação da linhagem) do que ama a mãe. A medida com que ela julga Clitemnestra teria servido para a julgar a ela própria. O motivo pelo qual ela condena a outra mulher serviria para condená-la a ela. Mas há este desfazamento no tempo, Clitemnestra teve o seu tempo e agora é o tempo de Electra.

Aquelas cujos ombros se extinguiram

Aquelas cujos ombros se extinguiram
Contra os muros dum quarto misterioso
Onde há uma janela voltada para longe

Aquelas em cujos olhos não há cor
À força de fitarem o vazio
Que vai e vem entre o horizonte e elas

Aquelas cujo desespero cai
De todo o céu a pique sobre a terra,
Imutável e completo, igual
Ao silêncio do mar sobre os naufrágios.

Elas são aquelas que esperaram
Que todas as promessas se cumprissem
E nos deuses cegos confiaram.

Sophia, Dia do Mar, Caminho, 2005

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Tarde

O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas.

Sophia, No Tempo Dividido, Caminho, 2005

V Inverno

Parece que eternamente sobre a terra
Choverá desolação e frio
A mesma neve de horror desencarnada
A mesma solidão dentro das casas

Sophia, No Tempo Dividido, Caminho, 2005

IV

Na minha vida há sempre um silêncio morto
Uma parte de mim que não se pode
Nem desligar nem partir nem regressar
Aonde as coisas eram uma intimamente
Como no seio morno de uma noite

Sophia, No Tempo Dividido, Caminho, 2005

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Leonard Cohen, Entrevista

Não pode recordar-se

Pensei naqueles versos no Hino Homérico a Dioniso ...οἱ δέ σ᾽ ἀοιδοὶ/ ᾁδομεν ἀρχόμενοι λήγοντές τ᾽: οὐδέ πῃ ἔστι/ σεῖ᾽ ἐπιληθομένῳ ἱερῆς μεμνῆσθαι ἀοιδῆς... em que se diz «que nós os poetas, começando e terminando todos te cantamos, quem quer que te esqueça não pode recordar-se de um canto sagrado (a tradução é mais ou menos esta, com uma ou outra pequena variação)». Homero diz que um poeta não pode recordar o caminho do canto se se esquecer do deus das colheitas, do vinho, da loucura, da dança, da origem do teatro. As coisas concretas (o vinho, as colheitas) de que Dioniso era o deus tutelar eram coisas rituais, ligadas à passagem das estações na terra. Também a dança, a loucura ritual eram coisas investidas de um carácter tão sagrado e inexplicável como o tempo que passa e consigo traz de novo o momento das colheitas, a força que brota da terra quando ela caminha para o ocaso, para o tempo do outono. Mas esta é uma força ambígua, porque ambíguo é Dioniso, deus estrangeiro, duas vezes nascido, filho secreto de Zeus e de Sémele. Uma força que tem uma parte de destruição e morte e ao mesmo tempo uma infinita sedução, uma promessa de belo, renovação, gestos rituais, por vezes nem saberíamos dizer porquê, coisas que nos afastam um pouco dos nossos lugares no mundo para que com ele infalivelmente nos tornemos a encontrar. Homero quando escreveu aqueles versos, pensei que falava também desta força de atracção.

Caderno I

Quando me perco de novo neste antigo
Caderno de capa preta de oleado -
Que um dia rasguei com fúria e que um amigo
Folha a folhar recolou com vagar e paciência -

Tudo me dói ainda como faca e me corta
Pois diante de mim estão como sussurro e floresta
As longas tardes as misturadas noites
Onde divago e divagam incessantemente
Os venenosos perfumes mortais da juventude

E dói-me a luz como um jardim perdido

Sophia, O Nome das Coisas, Caminho, 2004

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Regressarei

Eu regressarei ao poema como à pátria à casa
Como à antiga infância que perdi por descuido
Para buscar obstinada a substância de tudo
E gritar de paixão sob mil luzes acesas

Sophia, O Nome das Coisas, Caminho, 2004

"Penny Lane"

Esteira e cesto

No entrançar de cestos ou de esteira
Há um saber que vive e não desterra
Como se o tecedor a si próprio se tecesse
E não entrançasse unicamente esteira e cesto

Mas seu humano casamento com a terra

Sophia, O Nome das Coisas, Caminho, 2004

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011


An object

This thing, that hath a code and note a core,
Hath set acquaitance where might been affections,
And nothing now
Disturbed his reflections.

Ezra Pound, Personae: The Collected Shorter Poems, Faber & Faber, 1990.

domingo, 23 de janeiro de 2011

«E penso que deixarei de ver-te»

Há uma imagem no Hino Homérico a Apolo, que já aqui mencionei de resto, em que se fala do espectáculo que era a visão dos Jónios em Delos. Durante o tempo do festival em honra do deus Apolo eles desciam à ilha, vindos de um lugar que hoje é  na Turquia (a Jónia é hoje a Anatólia), e durante dias cantavam, dançavam, organizavam concursos de pugilato nas avenidas principais da ilha. Era um espectáculo vê-los com as suas mulheres e filhos, de tal forma que o poeta os compara aos deuses. Um apontamento à margem da música, feito com uma enorme concisão. Homero não diz mas quer dizer: estes homens na sua alegria são absolutos, ficam fora do tempo no modo como honram um deus, na sua encantatória celebração de Febo, deus dos oráculos, da música e das setas. 
Lembra-me agora outra coisa isto, esta imagem do espectáculo que era ver os Jónios em Delos.  Lembra-me duas linhas numa música de Leonard Cohen: "New York is cold but I like where I'm living, there's music on Clinton Street all through the evening". Podiam ser só duas imagens diferentes de duas avenidas onde houve música, em dois lugares e em dois tempos do mundo muito distantes e muitos diferentes. O único paralelo a estabelecer, nem esse sequer suficientemente sólido, seria o de que Leonard Cohen e Homero são dois tipos de perfomers parecidos, ambos story-tellers e song-writers. Mas parece-me que  os dois excertos falam ambos do mesmo, este fascínio do homem perdido na música, a afinidade que podemos sentir por uma imagem de canto e dança, uma coisa tão distante, tão arredada da nossa finitude, a música como intervalo de tudo onde o tempo se suspende sob as nossas cabeças e somos espectaculares, íntegros, inteiros, como os deuses sem morte, disse Homero ao ver os Jónios, melhores no nosso melhor instante do que a  própria passagem do tempo. E isto fez-me pensar noutra coisa. 
Fez-me pensar naqueles versos de Ruy Belo em «Muriel», quando ele diz qualquer coisa como «eu aprendi a ver na minha infância/ vim mais tarde a saber a importância desse verbo para os gregos», e um ou dois versos antes, penso, ele tinha escrito «e penso que deixarei de ver-te». Ruy Belo fala aqui do verbo oráo. Para os gregos, o tempo perfeito de oráo, ver, que se diz oida, não significa só eu vi, significa eu sei. Ruy Belo evoca esta dupla certeza, esta tristeza dupla, o homem em absoluto como em Homero, que é o homem inebriado na música em Leonard Cohen, são em Ruy Belo este que se quebra, o que sabe que deixará de te ver. A alusão a um verbo que tem de estar no passado para significar saber e para apontar a inexorabilidade do futuro é, ainda assim, um uso do tempo que o transgride. 
Pensei  então que estas três coisas falavam todas da mesma, parece que há um momento algures no tempo em que o tempo não nos pode esmagar. E tirando como conclusão uma premissa que sei falsa, enquanto fazias sinal a um táxi para que nos trouxesse de novo de volta a casa, noite fria e desagradável, peça de merda no CCB (Mãe Coragem e Seus Filhos de Brecht, Brecht não merecia aquilo), lembrei-me do carpe diem de Horácio. Penso que nunca nos deixaremos de ver enquanto entre nós houver esta vaga, incerta, tão gasta e sem vergonha, máxima do Augustano, a música em Clinton Street, a Madrid de Ruy Belo, os Jónios em Delos. Todas as coisas em que nos podemos sentir gratos sem saber muito bem a quê e não importar, isso que é outra coisa maior, a generosidade necessária à vida que Homero tão bem explanou no mais cruel dos poemas, a Ilíada, claro, pensei então que nenhum deus seria melhor par de Homero, melhor metáfora dos homens, do que esse tão cruel quanto belo Apolo. Podemos deixar de ver e saber, mas não nos pode ser tirado o ter vivido já.

José Saramago

Entrevista à Paris Review (1998).

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

I suppose, when poetry comes down to facts,
When our souls are returned to the gods
and the spheres they belong in,
Here in the every-day where our acts
Rise up and judge us;


I suppose there are a few dozen verities
That no shift of mood can shake from us:

Ezra Pound, in "Au Salon", Personae: The Collected Shorter Poems, Faber & Faber, 1990.

um espectáculo que não pedimos

I
como aqueles jogadores de sabre
que horas a fio se debatem por um fio presos
tão austeros nas suas roupagens brancas
os seus rostos escondidos por negras máscaras de rede
uma vez por outra em esforço algum grita
uma maneira de dança só ritmo e movimento
nada mais quase

II
o entardecer desce à terra vermelha
detendo-se no vermelho barro dos tijolos na manhã
no porto junto ao canal está o que resta do último sol do dia deixar
para trás o quarto de namorados pequeno desarrumado agora vazio
paredes amarelecidas quantas horas por sobre o ombro nos fitam

III
que espécie de horas por sobre o ombro nos fitam
pedia-te uma descrição cheia de pormenores vividos
recordarias por exemplo os candeeiros acesos
por entre o nevoeiro na avenida das dez da manhã
o rapaz ruivo e sardento chutando uma bola contra a ventania
o pavio ainda aceso o que restava do álcool ardendo
debaixo do balão de café um cheiro de alfazema e madeira velha
os dias decantados as bancadas brancas da cozinha

IV
o atleta que corre na noite das seis da tarde
todo vestido de negro vigiando a cada volta
o relógio mágico que lhe mede a pulsação
a distância percorrida em torno dos campos de rugby
onde um desajeitado coro encena um espectáculo
de sangue e lama um inútil espectáculo que não pedimos
que não saberíamos dizer que função cumpre no poema

V
com uma faca romba a mulher do andar de cima
arranjava o peixe deixava-o dentro de uma taça
de água salgada as escamas eram lançadas como cinza
pela janela eu ligava o rádio a que faltavam botões
trabalhava durante a manhã dançava tardes inteiras
estúpida súbita energia um presságio favorável
os anzóis das tardes onde nunca se enredaram os peixes
vermelhos que outros pescaram a alegria faz-se de pouco
às vezes basta um bilhete de cinema a hora marcada para sair

VI
pacientemente falhámos os encontros
combinados à boca do metro por túneis
subterrâneos cinzentos entrávamos
atrasados no labirinto da cidade uma respiração
que se acelera uma alegria de não sei porquê
efémera como flores que o tempo trespassa
todas as alegrias penso agora são efémeras
um deus que não sabemos se é generoso as distribui
acreditemos que sabiamente com alguma justiça
também as tempera de alguma tristeza como
a mulher no andar de cima funcho sal limão
o toque negro e vermelho de alguma pimenta

VII
para efeitos de sequência lógica do argumento
podias dizer agora que te  perdes em lojas
de especiarias esta indecisão que a espaços
visitas podias perguntar-te que procuras
mas é um lugar comum demasiado
comum para que lhe sobreviva qualquer poema
e até neste aristóteles reprovaria esse topos
mas penso que poderia sorrir a esta imitação desajeitada
feita com bonecos de papel e cera já o deus
que se apieda dos nossos dias nada sabe de ironia
podia até rir-se fingir que percebeu a graça
mas  na verdade a ironia é apenas nossa

VIII

como se nenhum fio nos prendesse pelas costas
somos como aqueles jogadores de sabre que por vezes
sentem ao avançarem contra o adversário que podem
tropeçar nas próprias sapatilhas escutam por isso
o roçar da borracha no chão esperam que seja o adversário
não eles a tropeçar ao fim do dia regressam
nos barcos da noite pelo canal aos quartos pequenos
onde tomam banhos de água tépida e se vestem para sair
não sem antes terem cuidadosamente reservado o bilhete de cinema
enquanto dançam de pés descalços no soalho de madeira a descolar
a encenação dos gestos é sempre repetida mas eles não diriam
(demasiado ingrato e impertinente) o peso exacto
do cobre nos dias  e outra coisa não podem sentir
que uma gratidão tão incerta planando na luz artificial

Tatiana Faia

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Com esta grata indignação que devo aos homens

Enquanto esperávamos para entregar os ensaios naquele dia, ordenados em fila, cada um com o seu trabalho enfiado dentro de um envelope branco, tudo gente mais velha que eu naquela turma, e tudo com um ar tão circunspecto, eu não estava a pensar no que tinha acabado de escrever, nem no romance sobre que versavam as oito páginas de todos e cada um (não era o mesmo para todos o romance), saí da fila, foi sentar-me no bar, vazio àquela hora da manhã, lembrei-me de um parêntesis n' A Invenção de Morel em que a personagem diz «(com esta grata indignação que devo aos homens)», esta coisa quase paradoxal, como dizer a uma pessoa que a detestamos cordialmente, olha a minha «grata indignação», mas depois percebi, que há um espaço entre «grata» e «indignação» onde está o meu orgulho, essa parcela de uma coisa invisível que é intocável e de pedra, irredutível, mas que é alimentada a partir de um assíduo convívio com as coisas que detestamos ou podemos detestar nos outros, sem que isso afecte a nossa cordialidade (penso que isto devia ser a «peçonha» de que falava Garrett, embora na verdade não o seja), ser «grata» não significa que seja monótona. É «grata» porque nela nos definimos, definimos traços fundamentais do nosso carácter, de o ter. Assim Ezra Pound quando mais ou menos escreveu (penso que num poema chamado "Praise of Ysolt", deste mesmo livro que por estes dias ando a ler), "In vain have I striven,/ to teach my heart to bow", porque nessa altura pensei que ele podia ter dito "In vain have I tried/ to teach...", mas não, o verbo é "striven", é uma coisa de arco e seta, nele se contém (imagino) o esforço dos sucessivos pretendentes para curvar e armar o arco de Ulisses dentro da sua própria casa, onde ele bebeu até à última gota do amargo cálice (a expressão não é minha, é de um homem chamado Pietro Citati) da vergonha, dentro da sua própria casa, por ele construída, em nenhum outro sítio, não em vão curvou Ulisses o arco do seu coração, pensava eu a essa hora da manhã, não sei se a indignação dele era grata, ao contrário dos outros, ele estava ali para a sua vingança (tão excessiva que há filólogos que dizem que é apócrifa, que há versões do mito que contam de como o deus Pan nasceu dos amores de Penélope e de todos os pretendentes), portanto a sua indignação devia ser amarga, plena de revolta, como Ezra Pound, em vão se debatendo para curvar o seu coração, o que sucede no entanto, é que as duas indignações são possíveis. Tão vastas como as teias dos nossos pensamentos, em que, mais frequentemente do que aquilo que gostaríamos, enredamos os dedos, truncamos os fios contínuos com que estávamos a tecer essa tapeçaria, onde acabamos afundados um pouco.

Erat hora

"Thank you, whatever comes." And then she turned
And, as the ray of sun on hanging flowers
Fades when the wind hath lifted them aside,
Went swiftly from me. Nay, whatever comes
One hour was sunlit and the most high gods
May not make boast of any better thing
Than to have watched that hour as it passed.

Ezra Pound, Personae: The Collected Shorter Poems, Faber & Faber, 1990.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Trailers de 2011 - I

As lesser man

but that I
Am here a Poet, that doth drink of life
As lesser man drink wine

Ezra Pound, in "And thus in Nineveh", Personae: The Collected Shorter Poems, Faber & Faber, 1990.

A Memória

A memória foi um género literário
quando ainda não tinha nascido a escrita.
Veio a ser depois crónica e tradição
mas já fedia como um cadáver.
A memória vivente é imemorial,
não surge da mente, não se enraiza nela.
Junta-se ao existente como uma auréola
de névoa na cabeça. Está já esfumada, é duvidoso
que regresse. Nem sempre tem memória
de si.

Eugenio Montale, Caderno de Quatro Anos, in Poesia, trad. de José Manuel de Vasconcelos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

Um ciclista em Dublin


segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

"Tsubaki Sanjuro" de Akira Kurosawa, 1962

I'm homesick after mine own kind

Por um efeito de redundância fazer descair todo o peso de uma emoção para um verso, deixá-lo em desequilíbrio, para que saibamos que foi escrito em suspenso, como Ezra Pound, quando escreveu "I'm homesick after mine own kind." (In "In durance" [1907], Personae: Collected Shorter Poems).

Cedo ou Tarde

Desde criança acreditei que não é o homem
que se move mas o cenário, a paisagem.
Foi quando, imóvel, vi desenrolar-se
o lago de Lugano no vaudeville
de um tal Dall'Argine que provavelmente
em homenagem a si mesmo, nomen omen,
não deixou nunca a margem. Depois dei-me conta
do meu pueril engano e agora sei
que volante ou pedestre, estase ou movimento
em nada diferem. Há quem goste de
beber a vida gota a gota ou a jorros;
mas a garrafa é a mesma, não se pode
enchê-la quando se esvazia.

Eugenio Montale, Diário de 72, in Poesia, tradução de José Manuel de Vasconcelos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

Xenia II.5

Desci, dando-te o braço, pelo menos um milhão de escadas
e agora que já cá não estás é o vazio em cada degrau.
Mesmo assim a nossa longa viagem foi breve.
A minha ainda dura, mas já não me acontecem
as coincidências, as reservas,
as ciladas, os dissabores de quem crê
que a realidade é aquilo que se vê.

Desci milhões de escadas dando-te o braço
e não porque com quatro olhos talvez se veja mais.
Contigo desci-as porque sabia que de nós os dois
as únicas verdadeiras pupilas, ainda que ofuscadas,
eram as tuas.

Eugenio Montale, Satura, in Poesia, tradução de José Manuel de Vasconcelos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

Istambul ilustrada
























Aqui.

domingo, 16 de janeiro de 2011

A Poesia

1
A angustiante questão
se é a frio ou a quente a inspiração
não pertence à ciência térmica.
O raptus não produz, o vazio não conduz,
não há poesia no sorvete ou no espeto.
Tratar-se-á antes de palavras
muito importunas
que têm pressa de sair
do forno ou do congelador.
O facto não tem valor. Mal estejam fora
olham em volta e têm ar de dizer:
que estou aqui a fazer?

2
Com horror
a poesia recusa
as glosas dos escoliastas.
Mas não é certo que demasiado muda
se baste a si mesma
ou ao aderecista que tropeça nela
sem saber que é
o seu autor.

Eugenio Montale, Satura I, in Poesia, trad. de José Manuel de Vasconcelos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

"Blue Valentines"

Xenia II.1

1
A morte não te dizia respeito.
Também os teus cães estavam mortos, morto estava
o médico dos loucos a quem chamavam o tio demente,
morta a tua mãe e a sua «especialidade»
de arroz de rã, triunfo milanês;
e também o teu pai que de um pequeno medalhão
me vigia da parede noite e dia.
Mas apesar disso a morte não te dizia respeito.

Aos funerais era eu que tinha de ir,
escondido num táxi ficando à distância
para evitar lágrimas e incómodos. A própria
vida não te importava com as suas feiras
de vaidades e cobiças e muito menos os
cancros universais que transformam
os homens em lobos.

Uma tábua rasa; se não se desse o caso
de um ponto existir, para mim incompreensível,
e esse ponto dizia-te respeito.

Eugenio Montale, Satura, in Poesia, tradução de José Manuel de Vasconcelos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004

Marguerite Yourcenar, «Memórias de Adriano»

É estranho, a minha primeira imagem deste livro pertence a outro autor: é a do princípio do poema de Pessoa (sobre Antínoo): «era em Adriano fria a chuva fora», este verso é assim ou é parecido. Imagino o imperador encanecido, fora do seu palácio de mármore, no meio de nevoeiro e da chuva torrencial, a toga enlameada a roçar o chão, os pretorianos aos berros com ele, eh, volte para dentro imperador, ele ombros descaídos,  absorto, uma mão a tentar segurar parte do pano, da outra roendo as unhas, um homem como se fosse um naufrágio. A minha coisa com o livro de Yourcenar: Adriano, se não me falha a memória nisto, esperemos que não, penso que não, era um sábio, era um sofista, um animal político (para efeitos práticos inverta-se aqui a máxima de Aristóteles). O tipo mais poderoso do mundo, este mestre de marionetas que sabe quando está a puxar o fio e quando está a ser puxado, quanto deve condescender ou deixar que sejam com ele condescendente. Tudo calculado: o que ele sabe, o que ele pode saber, a sua vantagem sobre outros. E depois o que acontece é que este homem infinitamente sábio e hábil não se pode defender da vida. Antínoo é a sua terrível lição. A sua prova no labirinto. E Yourcenar conta-nos de como a vida o esmaga, que coisas se lhe escapam por entre os dedos, preciosa areia correndo, nada a pode deter, e de como ainda assim, há qualquer coisa nele que se escapa incólume. Não um ofício de memória, o que pode recordar e reclamar para si como tendo sido ele algures no tempo, é outra coisa, é por isso que o livro de Yourcenar é tão bom. Adriano. Há esta categoria de homens que guardam memórias, para quem a dada altura tudo o que podem recordar está destinado a tornar-se um veneno, o que foi bom e o que foi mau indiferentemente, porque para tudo eles conseguem calcular uma forma de posse. E Adriano até podia ter sido isso. Mas Adriano não é destes, é por isso que Yourcenar lhe escreveu as memórias. Adriano viveu, não para que pudesse guardar uma relação de tudo isso, memórias que a princípio alimentassem o seu desespero e depois a sua mesquinhez, mas viveu, isto é, foi inteiro em tudo quanto foi (Ricardo Reis) e compreendeu que havia uma parte em que apenas podia abdicar. Por isso uma das epígrafes (se não me falha a memória) do livro é: natura deficit, fortuna mutatur, deus omnia cernit, o que numa tradução eventualmente tosca quer dizer: a natureza falha-nos, a sorte muda, do alto um deus tudo observa. Isto que pertence ao deus, Adriano não reclama para si. Grava em mármore a imagem do que pôde amar, do que mais amou e era uma beleza tão terna tão efémera, como quem pudesse disputar com um deus o direito que lhe sobra, o de dizer: «isto é uma imagem de vida, eu sei quanto num corredor qualquer do tempo isto é belo, com uma parte da minha teimosia e arrebatamento nisto contida, e continuará sendo». Quando discutimos sobre o imperecível, o possivelmente imperecível, lembro-me de Marguerite Yourcenar e lembro-me de Adriano.

sábado, 15 de janeiro de 2011

É toda a gente açaimada ficar em suspenso

A nossa língua não possui palavras que permitam dosear o grau de realidade, definir-lhe o peso. Digamo-lo sem nenhum véu: a fatalidade deste bairro é nada haver nele que se realize, é toda a gente açaimada ficar em suspenso, esgotar-se prematuramente sem conseguir ultrapassar certos limites. Tivemos ocasião de referir a exuberância e a prodigalidade das intenções, dos projectos e das antecipações. Não passavam de uma fermentação precoce, e portanto estéril, de desejos.
(...) Vamos envolver-nos em confusões intermináveis até a nossa febre e a nossa emoção se esgotarem, gastas por esforços inúteis, por uma vã procura.

Bruno Schulz, As Lojas de Canela*, Tradução de Aníbal Fernandes, Assírio & Alvim, 1987.

*Este livro foi-me recomendado por um futuro grande escritor (impressão que, dizem fontes não identificadas, terá experimentado António Lobo Antunes ao apertar-lhe a mão -- o grande escritor ainda não terá conseguido livrar-se dessa impressão), André Rodrigues. É um belo livro. Sobretudo dois contos, «As Lojas de Canela» e «A Rua dos Crocodilos». Não me apetece explicar agora o porquê de destacar estes dois contos e não outros quaisquer. Fica para outro dia.

Dois versos de "De Aegypto"

I, even I, am he who knoweth the roads/ Through the sky, and the wind thereof is my body.

Ezra Pound, Personae: Collected Shorter Poems, Faber & Faber, 1990.

Praia de Sanur


sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Uma nota sobre José Saramago

Uma vez, falando sobre Beckett, disse-me um professor que no fim de lidos aqueles textos o que ficava era a respiração. Como depois de uma longa corrida, não sobra mais nada, só o arquejar, a noção de um ritmo vital. Com Saramago penso que é um pouco ao contrário, a respiração não é o que fica depois do texto, o que em teoria não se chama mas é chegar ao horizonte de expectativa (ora aqui uma terminologia teórica com a qual poderia compactuar), a respiração contém-se no texto.  
O meu teórico da literatura favorito dizia que o romance era a épica de um mundo sem deus, daí a maior parte dos romances assumirem a forma da biografia ou neles serem relatados factos biográficos. Isto nem sempre é linear, obviamente. Argumenta ele que o objectivo disto é produzir uma imitação de vida, numa busca por uma totalidade entre homem e universo que ficara perdida para sempre, desde que a filosofia viera fazer umas quantas perguntas à poesia (passagem da épica para a tragédia). Saramago subverte isto, porque nos seus textos constantemente se diz «o divino não está fora de nós, não está numa forma fora da vida, o divino somos nós». É maravilhoso isto. Essa é uma coisa de que gosto muito em Saramago, o antropocentrismo. Há romances dele que são muito «renascentistas», descaradamente à Pico della Mirandola: magnum miraculum est homo (De Hominis Dignitate Oratio, tinha 23 anos quando escreveu esta frase Pico). E gosto da maneira como às vezes ele trava a respiração dos seus próprios textos porque há uma intuição que ele vê de relance e que o força a deter-se, como acontece numa conversa que ele encena no Memorial do Convento, vão duas personagens a falar sobre música (Domenico Scarlatti à conversa com Bartolomeu Lourenço de Gusmão?), a música o silêncio o silêncio a música, às tantas o italiano diz: «Disse o italiano, encolhendo os ombros, Fica o silêncio depois da música e depois do sermão, que importa que se louve o sermão e aplauda a música, talvez só o silêncio exista verdadeiramente.» É uma intuição perfeita, entretecida no tecido do texto, quase que nem damos por ela, atravessa-nos como se estivéssemos a respirar, como quem pusesse pé numa música. Isto faz parte da poesia. As melhores coisas em literatura são sempre poesia.

Eu ainda não li

E já estou a dizer: não façam isso.

Praias minimalistas


























Mais aqui.

October 5 (um excerto)

I was young here. Riding
the subway with my small book
as though to defend myself against

this same world:

you are not alone,
the poem said,
in the dark tunnel.

Louise Glück, Averno, Farrar, Straus and Giroux, New York, 2006

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A mulher mais bonita da Dinamarca

É uma cena passada num bar em Copenhaga. Marido e mulher entram nesse bar mas não vão juntos. Há uns meses tinham-se separado, ele arranja outra, ela arranja outro. O verbo é este «arranjar». Estranho que sem grande passionalidade à mistura. Não naquela onda do «tu traíste-me, eu agora vou trair-te de volta». Ela de facto resolve traí-lo de volta, mas porque sabe que é preciso, imagina que pode ser uma maneira de conquistar o seu próprio respeito de volta, sem que deixe de prever que pelo meio o há-de encontrar de novo. Achava na altura que é um filme sobre os golpes que recebemos de coração leve, para os quais conservamos uma dor a que concedemos o nosso riso, como quando rimos de cabeça descoberta no meio da multidão
 [como Ulisses que primeiro chora de cabeça coberta entre os Feaces, mas quando começa a falar de si descobre a cabeça e também nós o vamos descobrindo].
 Pensar que nesse filme vi pela primeira vez isto, representado de uma maneira tão suave: uma dor que não nos humilhasse, uma pequena dor de viver com, aquela que é esse teu modo de franzir o rosto, um baixar de cabeça e seguir em frente, um instante em que ela te detém, puxa-te por um braço, mas tu continuas.
Como estava a dizer, quando descobre que o marido a trai, ela não se lança de joelhos no chão, não arranca os anéis dos dedos ou os cabelos da cabeça. Entra muito suavemente por aquele bar em Copenhaga, em que há-de ouvir o marido dizer que quer beijar a mulher mais bonita da Dinamarca, que é ela, a mulher dele (a Eva Dahlbeck, depois deste filme será para sempre a mulher mais bonita da Dinamarca), mas só para a chatear e porque está bêbedo ele resolve ir beijar outra moça qualquer. E há este segundo que é maravilhoso, porque é onde Bergman a filma com uma ruga a sulcar-lhe o rosto, Eva Dahlbeck na meia idade, tão bonita que nem dá para acreditar, a usar um ar triste de todos os dias, o ar triste que podia ter enquanto de manhã no silêncio da casa arranja as torradas e o café, como quem diz: já estava mesmo à espera que me fizesses isso.
Se isto não acontece assim nesta cena, se não te estou a contar isto como deve de ser,  também não me interessa, já vi o filme há tanto tempo que juro que podia ter acontecido. Isto é, entrámos juntos naquele bar em Copenhaga,  foi já há tanto tempo que tudo podia ter acontecido ou não ter acontecido. Eu não guardei quase nada, só um plano do teu rosto a três quartos ou o pormenor de que és um homem narigudo.  Que dividimos uma tosta e que o barulho de fundo era Jazz, talvez Coltrane de certeza que não era Miles. Hoje não saberia o caminho de volta a esse bar. Mas há esta outra coisa, impressão de uma luz muito silenciosa dentro de uma caixa de música, um sentimento delicado no rosto da Eva Dahlbeck, ela naquele instante é como um daqueles tipos que quotidianamente bebessem café sem açúcar e fossem ao longo dos anos guardando as embalagens de açúcar com que não o adoçam. Guardam de tudo isto um sabor amargo, envolto numa vaga doçura. Assim caminham as personagens de Bergman para concretizarem em coisa uma expressão que sempre me fez rir, porque a acho demasiado pesada, demasiado marcada pelo uso, que quase me soa a falso, caminham para o amor à séria [sic, não a sério], o amor para o resto das suas vidas, até porque estes dois já estão na meia idade. Mas antes, no meio da constância, é preciso que se tenham ferido de morte, é preciso partir tudo para poder caminhar de cabeça descoberta na manhã que se segue (o tipo que filmou isto da maneira mais literal, talvez não da melhor, foi Antonioni, no ano de 1961, em La Notte). Como acontece com aqueles dois, estilhaçados a meio de uma noite de Inverno, num bar em Copenhaga, sem que os tentasse nenhum deus (isso fica para outro filme, um filme com um nome lindo, Nattvardsgästerna), nenhuma palavra melosa, nenhuma indulgência, só um cair de cansaço no fim, é só quando se chega a esse abandono que podemos ver de certeza absoluta se ficámos ou não sós, mais do que isso, se ainda estão juntos. E eles ficam juntos no fim, porque aquele filme é uma comédia, mas Bergman estava a falar a sério. Sempre achei que sim, sabes. Muito honestamente e muito a sério.

Da categoria «nomes para pôr em livros de que me roo de inveja»




















Se lhe quiserem dar uma vista de olhos é aqui.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Meia dúzia de versos

Ontem li meia dúzia de versos de que queria falar. Até queria ter falado deles mais cedo, mas quando estava a ler fiquei sem post-its

[que é uma coisa que compro em lojas de chineses, às pilhas, como caixas de fósforos, e que semeio por toda a parte, o fundo da minha mochila costuma ser um depósito deles, mas ontem, nada, nem um, o depósito estava vazio, há ainda o pormenor de, na loja onde geralmente os compro, ser invariavelmente atendida por dois miúdos chineses gémeos, que até ao ano passado me falavam em coro, mas este ano pararam  de o fazer, e que regra geral aparecem os dois invariavelmente vestidos com camisolas do Sporting],

e como fiquei sem post-its, levou-me mais tempo a encontrar estes versos de que queria falar. Anyway. É um par de versos que podiam ser aparentemente teóricos, mas acabam por chegar onde querem. Por vezes penso que há certa divisão, não rigidamente imposta e nem sempre existente, entre um tipo de poemas que são mágicos, nós estamos a lê-los e de repente repete-se aquela imagem que, se não foi o que valeu o nobel ao Salvatore Quasimodo, devia ter sido, como dizia, estamos a lê-los e parece que somos trespassados por um raio de sol e de súbito é sera, pelo seu fio de Ariadne somos levados à respiração de uma súbita noite, num movimento que acaba por sabotar o primeiro e mais imediato significado dos versos de Quasimodo (o de que é muito efémera a vida), isto é, somos levados a um lugar em que ficamos mais atentos e alerta, porque acabamos de ver algo que apenas tínhamos entrevisto e agora é posto debaixo dos nossos olhos com toda a nitidez, sem nenhuma palavra a mais (a última vez que me aconteceu isso foi quando li o primeiro poema que abre os Poemas de Juan Luis Panero). Mas estes versos não são deste tipo, a sua índole é outra.
São versos de Louise Glück, em que ela diz "But ignorance/ cannot will knowledge./ Ignorance wills something imagined, which it believes exists.", estes versos, por sua vez, tanto quanto me parece, ligam-se a outros da mesma Louise Glück, "The characters/ are not people./ They are aspects of a dilemma or conflict." Acho que estes dois excertos se ligam porque onde há dilema ou conflito

[coisas que seres de ficção podem projectar, no sentido em que são feitos da matéria da vida mas também do que deles queira fazer quem os imaginou, daí talvez Louise Glück (a.k.a. sujeito poético, mas sempre achei esta terminologia tão da treta) acertar quando diz que as personagens não são pessoas mas aspectos de um dilema ou conflito]

há sempre e também a instintiva, vital pulsação de uma ignorância, de uma impossibilidade de impor uma certeza absoluta, é onde não podemos ter a certeza sobre que cabeça se poderá abater a espada de Dâmocles, se sobre a tua ou sobre a minha. Das muitas forças que levam à poesia, penso que estes versos descrevem, sem chegarem a ser mágicos, aquela que pode ser uma delas, porque há neles um eco da primeira ignorância espantada que nos deixa um dilema ou conflito, que temos de seguir inevitavelmente por definição de nós próprios, dos nossos passos. Por isso alguém já disse, ou poderia dizer, que a poesia é irmã da filosofia (tresanda-me a Aristóteles isto, mas não tenho a certeza), mas numa coisa talvez essencialmente se afaste dela, enquanto uma tendencialmente se inclina para uma racionalização, o que nem sempre sucede mas tendencialmente sim, ou pelo menos é este o seu ponto de partida, a outra pode caminhar por um rasto de cacos e pode nunca sair do caos, e mesmo assim ser tão assertiva como a outra, porque são dois tipos de discurso possíveis do mundo.
Tudo isto para finalmente concluir que muitos dos poemas deste livro de Louise Glück, Averno, me desiludiram tremendamente. Louise Glück tinha um tema excelente em mãos, o rapto de Perséfone e, embora alguns dos poemas sejam muito bons, a maior parte deles morre na praia, desfaz-se em soluções muito fáceis.

Ruas de Tóquio

Aqui.

Um cão no Vietname


terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Uma ténue força

«Entre as mais notáveis características do espírito humano», diz Lotze, «conta-se…, no meio de tantas formas particulares de egoísmo, a ausência generalizada de inveja de cada presente em relação ao seu futuro». Esta reflexão leva a que a imagem da felicidade a que aspiramos esteja totalmente repassada do tempo que nos coube para o decurso da nossa própria existência. Uma felicidade que fosse capaz de despertar em nós inveja só existe no ar que respiramos, com pessoas com quem pudéssemos ter falado, com mulheres que se nos pudessem ter entregado. Por outras palavras: na ideia que fazemos da felicidade vibra também inevitavelmente a da redenção. O mesmo se passa com a ideia do passado de que a história se apropriou. O passado traz consigo um index secreto que remete para a redenção. Não passa por nós um sopro daquele ar que envolveram os que vieram antes de nós? Não é a voz a que damos ouvidos um eco de outras já silenciadas? As mulheres que cortejamos não têm irmãs que já não conheceram? A ser assim, então existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a nossa. Então, fomos esperados sobre esta Terra. Então, foi-nos dada, como a todas as gerações que nos antecederam, uma ténue força messiânica a que o passado tem direito.

Walter Benjamin, O Anjo da História: Obras Escolhidas de Walter Benjamin, João Barrento (ed. & trad.), Assírio & Alvim, Lisboa, 2010

Pitonisa de bolso













Depois de me forçar a persegui-lo por oito lances de escadas e duas janelas abertas, o gato estaca. É evidente que não pára de cansado ou porque tenha chegado exactamente ao lugar onde queria. Pára para amigavelmente me oferecer a pequena humilhação de uma trégua. Insondáveis são os desígnios do gato, conformemo-nos a eles. Rebola-se a ronronar de contente no chão de mármore, pela janela entram uma ou duas folhas secas que ele se entretém a espanejar com as patas durante um bocado e, quando estou quase no limite da paciência, vem enrolar-se nas minhas pernas. Pessoanamente falando, qualquer coisa no gato é um sinal de que num lugar recôndito de Janeiro estão escondidas as primícias da Primavera, qualquer coisa nele que guardasse por instinto a memória disso, um lento resgatar dos primeiros frutos na sua corrida pelas escadas (mais certamente sinal de que estaríamos a chegar à época do «se te armas em esperto, mijo-te o Herberto»). Agora senta-se para ali, à janela, como se nada fosse com ele, pitonisa de bolso,  insondavelmente abana a cauda em cima dos livros. Adoro o sacana do gato, desde o momento em que, ainda com dois ou três meses, enfiado dentro de um saco com mais três ou quatro gatinhos me estendeu as patas e começou a morder-me furiosamente, mas cheio de método, as mãos. Com se dissesse: «I think this is the beginning of a beautiful friendship.»

Tempo de vindimas (algures na Grécia), II

Mais aqui.

Tempo de vindimas (algures na Grécia)







Lembrem-se das palavras do poeta

Já Joaquim Manuel Magalhães dizia: esse homem é um livreiro a sério.

para começar bem o dia (antes de ir para a merda do trabalho)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Pouca gente

O homem que, um dia, em tribunal, entre o enfadado e o colérico, exclamou "Emma Bovary c'est moi", escreveu também, numa carta a uma senhora chamada Louise Coulet: "Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage". Flaubert fala nesta citação do seu romance realista e, o que é aparentemente paradoxal, histórico, Salammbô. Ao falar desta uma tristeza colocada ao serviço da tarefa de ressuscitar uma cidade inteira, não a imaginação, Flaubert fala de uma coisa vital. 
Conta-nos talvez Políbio, que caminhou por quase tudo o que foi destruição no seu tempo e esteve com Cipião, o Africano, no cerco desta cidade, que (depois de conquistada, mortos os homens e as crianças, violadas as mulheres, tudo lançado ao fogo) o exército romano salgou toda a terra em redor das muralhas, para que nada voltasse a crescer. É um gesto de tanto ódio. 
Do sal, do ódio, da cinza ergue Flaubert o espectáculo feérico de uma cidade inteira, apenas para que esta torne a perecer, a ser arrasada, como se convocar a cidade convocasse de novo o tempo da sua destruição, daí talvez essa precisa tristeza de que ele falava.

Isto para um tipo bater a bota é do melhor



Tirado daqui.

Rising

domingo, 9 de janeiro de 2011


Por vezes, muito raramente

Quando pouco na vida nos consola
do tempo, esse verdugo indiferente,
por vezes, muito raramente, na monotonia da noite,
entre repetidos sonhos, surge uma imagem
que reflecte o desejo que deixamos aí
e um rosto - a sua remota aparência - reconstrói
um intenso instantâneo da felicidade.
Quando tão misterioso privilégio nos chega,
acordar em seguida é viver o inferno:
não aquele jogo grotesco de chamas e demónios,
mas o demónio da luz de novo,
o fogo do primeiro cigarro.

Juan Luis Panero, Poemas, Joaquim Manuel Magalhães (tradução e prefácio), Relógio d'Água, 2003.

sábado, 8 de janeiro de 2011

O comboio do esquecimento

(Homenagem a Max Ophüls)

Eu que fui quase uma rainha, sim, fui uma rainha!,
e tive a Baviera e o seu rei a meus pés.
Eu, a condessa de Lansfeld, Lola Montes para outros,
por quem Franz Liszt havia sonhado no seu piano,
como haviam sonhado tantos e esse sonho os redime,
avanço agora, será que avanço?, neste comboio,
por paragens inóspitas, lamaçais e pós.
Não soam aos meus ouvidos os violinos de Munique,
nem os pássaros do entardecer nas folhagens romanas,
apenas portas que rangem, vidros que estremecem
e as pesadas rodas que fustigam o metal.
Chegaremos a um povoado - todos são iguais -
sujidade e ruído, bêbados e bastardos
são a essência e o símbolo desta nova fronteira.
Mineiros e camponeses, pistoleiros e jogadores de profissão
beijarão as minhas mãos, hão-de querer tocar-me,
por um mínimo preço, aproximar-me dos deuses.
Neste comboio de madeira e miséria
que vem do nada e para lado nenhum vai,
entre campos monótonos e aldeias de barracas,
eu, Lola Montes, condessa de Lansfeld,
ensaio a única expressão que aprendi na vida:
um ricto de desprezo e uns olhos sem tempo,
que se perdem na noite, no comboio do esquecimento.

Juan Luis Panero, Poemas, Joaquim Manuel Magalhães (tradução e prefácio), Relógio d'Água, 2003.

Kagemusha (1980)


Se eu tivesse de dar nota daria, hmm, digamos, um 9/10.

Também as capas são perfeitas







sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Arte poética

A longa, lenta língua da morte
lambeu a mão daquele que escreve,
lucidez ou loucura, ninguém sabe:
só restam palavras, palavras que se desfazem.

Juan Luis Panero, Poemas, Joaquim Manuel Magalhães (tradução e prefácio), Relógio d'Água, 2003.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

To return again

Ela passava - cerimoniosamente - as páginas de um jornal
- um jornal em espanhol, comprado em Victoria Station -.
Ele olhava pela janela para os últimos bairros,
a cidade apagando-se por detrás, a precária luz de outono.
Ela lia - minuciosamente - a página da necrologia,
ele olhava agora o campo: cavalos e ovelhas,
o vento nos ramos, paisagens de Constable.
Ela comentava histórias de imprensa, os casos do dia,
ele recordava uma criança atónita, em silêncio,
- havia séculos, numa casa de Eaton Square.
Noutro tempo, com outra mulher,
a passagem do Tamisa na margem cinzenta.
Passavam as páginas do jornal
e passavam corpos e camas,
uma mulher despida que se ria
com hálito de vodka e tabaco.
O comboio chegava ao seu destino e ela acabou a leitura.
Debaixo do assento daquele comboio
- entre Londres e Dover - ficaram abandonados
um amarrotado jornal em desordem
e cinquenta anos da vida de um homem.

Juan Luis Panero, Poemas, Joaquim Manuel Magalhães (tradução e prefácio), Relógio d'Água, 2003.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Onde dormitavam tardes

Em manhãs de muita luz, Adélia voltava abrasada como Pomona, regressava do esplendor do dia e despejava o cesto com todas as belezas coloridas do sol. Começava pelas cerejas brilhantes, inchadas de água por baixo da pele fina e transparente, as misteriosas ginjas negras com um sabor que não cumpria todas as promessas do cheiro, os damascos de polpa amarela onde dormitavam tardes longas e abrasadoras (...)
Bruno Schulz, As Lojas de Canela, Aníbal Fernandes (trad.), Assírio & Alvim, 1987.

Antes que chegue a noite

Antes que chegue a noite sobre o mar
e atire o vento da nortada
as minhas húmidas cinzas para o nada.
Antes que os gastos gestos se dissolvam,
tal como um sorriso que se transforma em esgar
ou os cansados espasmos de um amor extinto.
Antes, ainda, como este sol sobre as ilhas,
tenaz ponto de luz, cor intensa,
que minhas palavras desenhem meu fantasma,
salvo e perdido, na pura intensidade da vida.

Juan Luis Panero, Poemas, Joaquim Manuel Magalhães (tradução e prefácio), Relógio d'Água, 2003.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O que tu tens da andorinha (II)


«O que tu tens da andorinha/ é a errância pouco austera;/ o que para mim, que me sentia e era/ velho, anunciava uma outra primavera.» Umberto Saba

O que há para amar nestes versos é a maneira como neles se insinuam, sem se anularem, três formas de movimento, o facto de ser tua a errância pouco austera da andorinha, o que com tanta concisão fala da forma leve e quase leviana como te moves e é uma evocação de juventude mas também de inconstância, a forma como isso contrasta comigo, que me «sentia e era velho», eu com a minha imobilidade de pedra de velho, e, afinal e por remate, como deste contraste se ergue a visão inteira e intacta da primavera. Por meio desta densa concisão se demonstra que era Umberto Saba grande poeta. Mas, na verdade, tudo isto serve apenas para dizer que nunca mais é Março.

Apesar dos contínuos avisos

«a resistência da poesia em desaparecer, apesar dos contínuos avisos de morte próxima que se repetem há dois mil anos. Quem sabe se nesta longa agonia, que já dura tanto quanto o nosso mundo e a nossa civilização, não está a chave da sua existência e do interesse que alguns poetas despertam.»
Juan Luis Panero, excerto de Los Mitos e las Máscaras, in Poemas, Joaquim Manuel Magalhães (tradução e prefácio), Relógio d'Água, 2003.

domingo, 2 de janeiro de 2011

os pensamentos traduzidos

entreguemo-nos à aparente clareza dos actos, que são os pensamentos traduzidos, ainda que na passagem destes para aqueles sempre algumas coisas se tirem e se acrescentem, o que finalmente virá a significar que sabemos tão pouco do que fazemos como do que pensamos.
José Saramago, História do Cerco de Lisboa, Caminho, 2008 (8ª edição).

"Six feet under", série 3, episódio 4














Russel: But what is success? Is it just money or fame? Or is it the critics loving you? Or is it you knowing that you've done good work...

Capella Strozzi

Analfabetos, entendiam
sem esforço os bonequinhos
na parede, os episódios
aludidos nas vinhetas,
seus ditados e sinais.
Tudo claro, para eles,
tudo íntimo e solene,
nutritivo como pão.

Nós,letrados, percebemos
só depois de compulsar
o Amador Hagiográfico
ou catálogos de símbolos.
Para nós é tudo vago,
duvidoso. Só as formas
nos consolam, e as cores,
a impostura da beleza.

José Miguel Silva, Erros Individuais, Relógio d'Água, 2010.