segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Pouca gente

O homem que, um dia, em tribunal, entre o enfadado e o colérico, exclamou "Emma Bovary c'est moi", escreveu também, numa carta a uma senhora chamada Louise Coulet: "Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage". Flaubert fala nesta citação do seu romance realista e, o que é aparentemente paradoxal, histórico, Salammbô. Ao falar desta uma tristeza colocada ao serviço da tarefa de ressuscitar uma cidade inteira, não a imaginação, Flaubert fala de uma coisa vital. 
Conta-nos talvez Políbio, que caminhou por quase tudo o que foi destruição no seu tempo e esteve com Cipião, o Africano, no cerco desta cidade, que (depois de conquistada, mortos os homens e as crianças, violadas as mulheres, tudo lançado ao fogo) o exército romano salgou toda a terra em redor das muralhas, para que nada voltasse a crescer. É um gesto de tanto ódio. 
Do sal, do ódio, da cinza ergue Flaubert o espectáculo feérico de uma cidade inteira, apenas para que esta torne a perecer, a ser arrasada, como se convocar a cidade convocasse de novo o tempo da sua destruição, daí talvez essa precisa tristeza de que ele falava.

2 comentários:

  1. A leitura desse romance foi das experiências mais inefáveis que tive em frente a um livro. Evito falar dele e penso não voltar a lê-lo: há certas coisas, certos momentos que desdenham a conspurcação da reincidência.

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  2. Não sei. Eu gostava de lá voltar. Acho que é melhor «obra de arte» o que quer que isso seja, que ele nos deixou. É tão excessivo, é quase romanticamente excessivo, mas é tão bonito, tudo, todas as descrições.

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