É uma cena passada num bar em Copenhaga. Marido e mulher entram nesse bar mas não vão juntos. Há uns meses tinham-se separado, ele arranja outra, ela arranja outro. O verbo é este «arranjar». Estranho que sem grande passionalidade à mistura. Não naquela onda do «tu traíste-me, eu agora vou trair-te de volta». Ela de facto resolve traí-lo de volta, mas porque sabe que é preciso, imagina que pode ser uma maneira de conquistar o seu próprio respeito de volta, sem que deixe de prever que pelo meio o há-de encontrar de novo. Achava na altura que é um filme sobre os golpes que recebemos de coração leve, para os quais conservamos uma dor a que concedemos o nosso riso, como quando rimos de cabeça descoberta no meio da multidão
[como Ulisses que primeiro chora de cabeça coberta entre os Feaces, mas quando começa a falar de si descobre a cabeça e também nós o vamos descobrindo].
Pensar que nesse filme vi pela primeira vez isto, representado de uma maneira tão suave: uma dor que não nos humilhasse, uma pequena dor de viver com, aquela que é esse teu modo de franzir o rosto, um baixar de cabeça e seguir em frente, um instante em que ela te detém, puxa-te por um braço, mas tu continuas.
Como estava a dizer, quando descobre que o marido a trai, ela não se lança de joelhos no chão, não arranca os anéis dos dedos ou os cabelos da cabeça. Entra muito suavemente por aquele bar em Copenhaga, em que há-de ouvir o marido dizer que quer beijar a mulher mais bonita da Dinamarca, que é ela, a mulher dele (a Eva Dahlbeck, depois deste filme será para sempre a mulher mais bonita da Dinamarca), mas só para a chatear e porque está bêbedo ele resolve ir beijar outra moça qualquer. E há este segundo que é maravilhoso, porque é onde Bergman a filma com uma ruga a sulcar-lhe o rosto, Eva Dahlbeck na meia idade, tão bonita que nem dá para acreditar, a usar um ar triste de todos os dias, o ar triste que podia ter enquanto de manhã no silêncio da casa arranja as torradas e o café, como quem diz: já estava mesmo à espera que me fizesses isso.
Se isto não acontece assim nesta cena, se não te estou a contar isto como deve de ser, também não me interessa, já vi o filme há tanto tempo que juro que podia ter acontecido. Isto é, entrámos juntos naquele bar em Copenhaga, foi já há tanto tempo que tudo podia ter acontecido ou não ter acontecido. Eu não guardei quase nada, só um plano do teu rosto a três quartos ou o pormenor de que és um homem narigudo. Que dividimos uma tosta e que o barulho de fundo era Jazz, talvez Coltrane de certeza que não era Miles. Hoje não saberia o caminho de volta a esse bar. Mas há esta outra coisa, impressão de uma luz muito silenciosa dentro de uma caixa de música, um sentimento delicado no rosto da Eva Dahlbeck, ela naquele instante é como um daqueles tipos que quotidianamente bebessem café sem açúcar e fossem ao longo dos anos guardando as embalagens de açúcar com que não o adoçam. Guardam de tudo isto um sabor amargo, envolto numa vaga doçura. Assim caminham as personagens de Bergman para concretizarem em coisa uma expressão que sempre me fez rir, porque a acho demasiado pesada, demasiado marcada pelo uso, que quase me soa a falso, caminham para o amor à séria [sic, não a sério], o amor para o resto das suas vidas, até porque estes dois já estão na meia idade. Mas antes, no meio da constância, é preciso que se tenham ferido de morte, é preciso partir tudo para poder caminhar de cabeça descoberta na manhã que se segue (o tipo que filmou isto da maneira mais literal, talvez não da melhor, foi Antonioni, no ano de 1961, em La Notte). Como acontece com aqueles dois, estilhaçados a meio de uma noite de Inverno, num bar em Copenhaga, sem que os tentasse nenhum deus (isso fica para outro filme, um filme com um nome lindo, Nattvardsgästerna), nenhuma palavra melosa, nenhuma indulgência, só um cair de cansaço no fim, é só quando se chega a esse abandono que podemos ver de certeza absoluta se ficámos ou não sós, mais do que isso, se ainda estão juntos. E eles ficam juntos no fim, porque aquele filme é uma comédia, mas Bergman estava a falar a sério. Sempre achei que sim, sabes. Muito honestamente e muito a sério.
[como Ulisses que primeiro chora de cabeça coberta entre os Feaces, mas quando começa a falar de si descobre a cabeça e também nós o vamos descobrindo].
Pensar que nesse filme vi pela primeira vez isto, representado de uma maneira tão suave: uma dor que não nos humilhasse, uma pequena dor de viver com, aquela que é esse teu modo de franzir o rosto, um baixar de cabeça e seguir em frente, um instante em que ela te detém, puxa-te por um braço, mas tu continuas.
Como estava a dizer, quando descobre que o marido a trai, ela não se lança de joelhos no chão, não arranca os anéis dos dedos ou os cabelos da cabeça. Entra muito suavemente por aquele bar em Copenhaga, em que há-de ouvir o marido dizer que quer beijar a mulher mais bonita da Dinamarca, que é ela, a mulher dele (a Eva Dahlbeck, depois deste filme será para sempre a mulher mais bonita da Dinamarca), mas só para a chatear e porque está bêbedo ele resolve ir beijar outra moça qualquer. E há este segundo que é maravilhoso, porque é onde Bergman a filma com uma ruga a sulcar-lhe o rosto, Eva Dahlbeck na meia idade, tão bonita que nem dá para acreditar, a usar um ar triste de todos os dias, o ar triste que podia ter enquanto de manhã no silêncio da casa arranja as torradas e o café, como quem diz: já estava mesmo à espera que me fizesses isso.
Se isto não acontece assim nesta cena, se não te estou a contar isto como deve de ser, também não me interessa, já vi o filme há tanto tempo que juro que podia ter acontecido. Isto é, entrámos juntos naquele bar em Copenhaga, foi já há tanto tempo que tudo podia ter acontecido ou não ter acontecido. Eu não guardei quase nada, só um plano do teu rosto a três quartos ou o pormenor de que és um homem narigudo. Que dividimos uma tosta e que o barulho de fundo era Jazz, talvez Coltrane de certeza que não era Miles. Hoje não saberia o caminho de volta a esse bar. Mas há esta outra coisa, impressão de uma luz muito silenciosa dentro de uma caixa de música, um sentimento delicado no rosto da Eva Dahlbeck, ela naquele instante é como um daqueles tipos que quotidianamente bebessem café sem açúcar e fossem ao longo dos anos guardando as embalagens de açúcar com que não o adoçam. Guardam de tudo isto um sabor amargo, envolto numa vaga doçura. Assim caminham as personagens de Bergman para concretizarem em coisa uma expressão que sempre me fez rir, porque a acho demasiado pesada, demasiado marcada pelo uso, que quase me soa a falso, caminham para o amor à séria [sic, não a sério], o amor para o resto das suas vidas, até porque estes dois já estão na meia idade. Mas antes, no meio da constância, é preciso que se tenham ferido de morte, é preciso partir tudo para poder caminhar de cabeça descoberta na manhã que se segue (o tipo que filmou isto da maneira mais literal, talvez não da melhor, foi Antonioni, no ano de 1961, em La Notte). Como acontece com aqueles dois, estilhaçados a meio de uma noite de Inverno, num bar em Copenhaga, sem que os tentasse nenhum deus (isso fica para outro filme, um filme com um nome lindo, Nattvardsgästerna), nenhuma palavra melosa, nenhuma indulgência, só um cair de cansaço no fim, é só quando se chega a esse abandono que podemos ver de certeza absoluta se ficámos ou não sós, mais do que isso, se ainda estão juntos. E eles ficam juntos no fim, porque aquele filme é uma comédia, mas Bergman estava a falar a sério. Sempre achei que sim, sabes. Muito honestamente e muito a sério.
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