quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Meia dúzia de versos

Ontem li meia dúzia de versos de que queria falar. Até queria ter falado deles mais cedo, mas quando estava a ler fiquei sem post-its

[que é uma coisa que compro em lojas de chineses, às pilhas, como caixas de fósforos, e que semeio por toda a parte, o fundo da minha mochila costuma ser um depósito deles, mas ontem, nada, nem um, o depósito estava vazio, há ainda o pormenor de, na loja onde geralmente os compro, ser invariavelmente atendida por dois miúdos chineses gémeos, que até ao ano passado me falavam em coro, mas este ano pararam  de o fazer, e que regra geral aparecem os dois invariavelmente vestidos com camisolas do Sporting],

e como fiquei sem post-its, levou-me mais tempo a encontrar estes versos de que queria falar. Anyway. É um par de versos que podiam ser aparentemente teóricos, mas acabam por chegar onde querem. Por vezes penso que há certa divisão, não rigidamente imposta e nem sempre existente, entre um tipo de poemas que são mágicos, nós estamos a lê-los e de repente repete-se aquela imagem que, se não foi o que valeu o nobel ao Salvatore Quasimodo, devia ter sido, como dizia, estamos a lê-los e parece que somos trespassados por um raio de sol e de súbito é sera, pelo seu fio de Ariadne somos levados à respiração de uma súbita noite, num movimento que acaba por sabotar o primeiro e mais imediato significado dos versos de Quasimodo (o de que é muito efémera a vida), isto é, somos levados a um lugar em que ficamos mais atentos e alerta, porque acabamos de ver algo que apenas tínhamos entrevisto e agora é posto debaixo dos nossos olhos com toda a nitidez, sem nenhuma palavra a mais (a última vez que me aconteceu isso foi quando li o primeiro poema que abre os Poemas de Juan Luis Panero). Mas estes versos não são deste tipo, a sua índole é outra.
São versos de Louise Glück, em que ela diz "But ignorance/ cannot will knowledge./ Ignorance wills something imagined, which it believes exists.", estes versos, por sua vez, tanto quanto me parece, ligam-se a outros da mesma Louise Glück, "The characters/ are not people./ They are aspects of a dilemma or conflict." Acho que estes dois excertos se ligam porque onde há dilema ou conflito

[coisas que seres de ficção podem projectar, no sentido em que são feitos da matéria da vida mas também do que deles queira fazer quem os imaginou, daí talvez Louise Glück (a.k.a. sujeito poético, mas sempre achei esta terminologia tão da treta) acertar quando diz que as personagens não são pessoas mas aspectos de um dilema ou conflito]

há sempre e também a instintiva, vital pulsação de uma ignorância, de uma impossibilidade de impor uma certeza absoluta, é onde não podemos ter a certeza sobre que cabeça se poderá abater a espada de Dâmocles, se sobre a tua ou sobre a minha. Das muitas forças que levam à poesia, penso que estes versos descrevem, sem chegarem a ser mágicos, aquela que pode ser uma delas, porque há neles um eco da primeira ignorância espantada que nos deixa um dilema ou conflito, que temos de seguir inevitavelmente por definição de nós próprios, dos nossos passos. Por isso alguém já disse, ou poderia dizer, que a poesia é irmã da filosofia (tresanda-me a Aristóteles isto, mas não tenho a certeza), mas numa coisa talvez essencialmente se afaste dela, enquanto uma tendencialmente se inclina para uma racionalização, o que nem sempre sucede mas tendencialmente sim, ou pelo menos é este o seu ponto de partida, a outra pode caminhar por um rasto de cacos e pode nunca sair do caos, e mesmo assim ser tão assertiva como a outra, porque são dois tipos de discurso possíveis do mundo.
Tudo isto para finalmente concluir que muitos dos poemas deste livro de Louise Glück, Averno, me desiludiram tremendamente. Louise Glück tinha um tema excelente em mãos, o rapto de Perséfone e, embora alguns dos poemas sejam muito bons, a maior parte deles morre na praia, desfaz-se em soluções muito fáceis.

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