quinta-feira, 30 de setembro de 2010

"Scener ur ett äktenskap" de Ingmar Bergman, 1973
























Vai ver.

O que resta depois da flor

O que resta depois da flor
é uma coisa sem dentes,
recordando
o mistério da flor, a medonha agulha
para gravar na pele as sílabas
da dor: e a vida
é como uma irritação, ou uma incomodidade
de ser ainda nada,
.............................como uma recordação.

Leopoldo María Panero, Conversação, Pedro Serra (trad.), Moby Dick - Inimigo Rumor, 2003.

Coisas que me fazem querer parar de ler um texto

Lendo sobre um filme, dar com chavões da categoria de «em glorioso preto e branco».

Quem andou na sombra

Quem andou na sombra, como o vento
descalço como se não andasse
como se sob a noite andasse
contente com as estrelas
silencioso como o milagre
de existir ainda, em frente das estrelas
e contra o milagre do ar.

Leopoldo María Panero, Conversação, Pedro Serra (trad.), Moby Dick - Inimigo Rumor, 2003.

E resta

E resta
..............detrás do nada um ofegar tão-só
perseguido pelas árvores, perseguido pelos
..........................bosques
que sussurram ao ouvido palavras obscenas
dizendo que não és homem és
menos que um sussuro.

Leopoldo María Panero, Conversação, Pedro Serra (trad.), Moby Dick - Inimigo Rumor, 2003.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Ítaca n.º2

Já tem apresentador designado. Mas aceita-se apostas.

Pensamentos dramáticos

Dentro de meia dúzia de horas tudo estará acabado.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Sobre estas duas absolvições

Ésquilo escreveu duas trilogias que têm no seu centro uma absolvição: a Oresteia e as Danaides. A primeira chegou até nós completa, da outra restam apenas a tragédia inicial, as Suplicantes, e alguns fragmentos. Na Oresteia, Atena absolve Orestes de um crime que Orestes cometeu: o matricídio. Na outra, Afrodite absolve Hipermnestra da acusação de não ter cometido um crime, de não ter morto o seu esposo. Sobre estas duas absolvições se funda a Atenas clássica.

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Long Poems

In favor of
podiatrists,
tippling
night nurses,
corpse washers, bathroom attendants.

Against
celebrity hairdressers,
society weddings,
Brecht LPs,
realistic literature.
Günter Eich, Angina Days: Selected Poems, Michael Hoffman (trad.), Princeton University Press, 2010.

domingo, 26 de setembro de 2010

Voyeurismo

Hesitei longamente mas decido-me a contar: hoje vi o Umberto Eco com uma primeira edição do Ulysses na mão. Por cima da cabeça (mas dentro da montra, bem certo) estava uma cópia do segundo fólio de Shakespeare. Ao nível da barriga uma primeira edição da Anatomy of Melancholy do Burton.

Como se faz nos anúncios a casas, contactem-me se estiverem interessados.

Vopli Vidopliassova - Dance-se (ou Dancem)



Pelo vídeo, a queda da União Soviética teve dedo destes senhores.

O nome da banda significa: "Os Gritos de Vidopliassov", sendo o tal do Vidopliassov uma personagem da novela de Dostoiévski A Aldeia de Stepantchikovo e os seus Habitantes que assim assina certas cartas previsivelmente lamechas. Disponível nas traduções do costume.

Chamo a atenção para o "no description available" do Youtube quanto ao vídeo em causa. Apropriado.

"I Fidanzati" de Ermanno Olmi, 1963


Deste filme, entre tantas imagens, guarda-se uma tarde de chuva na Sicília. Este diálogo final. A música no início. A festa de Carnaval.
Vamos crescendo como leitores, e leitores de vinte anos são praticamente virgens. Ainda não leram literatura suficiente para serem ensinados por ela a lê-la melhor.

James Wood, A Mecânica da Ficção, Quetzal Editores, Lisboa, 2010 (trad. de Rogério Casanova)

From: Dreams

I envy all those who are capable of forgetting,
who calmly go off into dreamless sleep.
I even envy myself for odd moments of blind contentment,
reaching a vacation destination, whether North Sea spa or Notre
Dame,
or with a nice drop of Burgundy on pay day.
But basically I’m of the view that even a clear conscience is not
sufficient,
and I doubt the quality of the sleep in which we all rock ourselves.
There is no such thing as pure happiness any more (was there
ever?),
and I should like to rouse this or that sleeper,
and say, there, that’s enough.
Where you once leaped up out of the arms of love
because a scream reached your ear, the scream
that the earth utters incessantly, which you
take to be the patter of raindrops or the soughing of wind.
Look at what’s happening: prison and torture,
blindness and amputation, death in many guises,
disembodied pain and dread that stands in for life.
Th e earth collects up the groans from many mouths,
and the expressions of people you love are full of horror.
Everything that happens concerns you.
*
At the given hour, I will nonetheless think that the world was
beautiful.
I will think of friends, of the kindness that can beautify an ugly face,
of love that causes the eyes to light up.
I will think of the dog, my playmate when I was a boy,
of the blue lupins on the coast of East Prussia where I once went on
holiday.
I will revisit the long shadows of the firs on the Bauernschmied
meadow,
and climb the Gederer once more with Emmy Gruber,
I will remember the flights of migrating birds over the airfi eld at
Märkisch-Friedland,
and the smell of the beer cellar of the Inn zum Hirschen which
belonged to my grandfather,
of elderfl ower, rapeseed and poppy, glimpsed from the window of a
train,
of the blush on the face of the fourteen year old Gabriele Dembitza,
of the red and green lights of an airplane fl ying under the
constellation of Cassiopeia,
of dancing under paper lanterns on Bastille Day,
the smell of fruit in the morning on the stands in front of the castle
at Celle,
I will think of the quivering heart of the lizard that spotted me,
and a poem in Goethe’s “West-East Divan” that gave me comfort.
*
There are road signs,
and easily discernable river courses,
lookout points in elevated positions,
maps where the lakes are in blue and the forests in green —
it’s easy to find one’s way around in the world.

But you, companion at my side, how hidden from me
is the landscape of your heart!
Feeling my way in the fog, I am oft en overcome with fear
of the thickets and the hidden precipice.
I know you don’t like your thoughts to be traced,
the echo of your words is intended to mislead —
roads going nowhere,
pathless terrain, lapsed signage.
Each century provides us with new things to conceal,
a territory that off ers no purchase to the curious eye of affection,
overgrown with loneliness, its ever denser leaves.

Günter Eich, Angina Days: Selected Poems, Michael Hoffman (trad.), Princeton University Press, 2010.

Washington, um céu cheio de estrelas


sábado, 25 de setembro de 2010

The rain in Eltville

The rain in Eltville,
same rain as everywhere else,
drops of water mingled with dust
evaporated from God knows what reservoir,
the same rain but different, as I listen to its drumming:
this rain is for me.

While the tin windowsill echoes the other side of the wall,
someone is taking twenty veronal,
my heart shakes at the tenderness in someone’s eyes,
and there are always the scrawny arms of my nephews in Berlin.

I sit here in the lee of the roof
and I can put on a coat to go outside,
but it’s hit me long ago, it will drown me,
the rain of madness, of love, the rain of poverty,
the rain in Eltville.

Günter Eich, Angina Days: Selected Poems, Michael Hoffman (trad.), Princeton University Press, 2010.

Northern sigh

To the left, the road to the harbor. It’s not the inhabitants
that matter so much as the topographical features.
The walk to the reformed church, red and white
surveyors’ poles constitute the idea of God.
The way the road bends at a zoological negotiation—
the addressee of my lettergrams might be pleased to call it love.
People don’t go to Kyoto or Venice. The world
happens in out of the way places.
Just mind you don’t leave any tracks.

Günter Eich, Angina Days: Selected Poems, Michael Hoffman (trad.), Princeton University Press, 2010. 

Confined to bed

Angina days, blue snow,
time tucked away
in cut-out arches,
time is blue, time is snow,
red sleeves, black hat,
time is a yellow woman.

Angina days, Swiss,
blue Devon, black Cambrium,
commedia dell’arte time,
slipper red and Silurian red,
wall map of England yellow and time.

Angina days, blue Kent,
time so yellow that none can tell it,
a black index finger protrudes
from a blue glove and points you
the way home along the red wall.

Günter Eich, Angina Days: Selected Poems, Michael Hoffman (trad.), Princeton University Press, 2010.

A dedicatória que não podia ser*

AO VERME
QUE 
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADÁVER
DEDICO
COMO SAUDOSA LEMBRANÇA 
ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS 

Machado de Assis in As Memórias Póstumas de Brás Cubas, Livros Cotovia, 2008 (terceira edição).
*Estou a reescrever a dedicatória.
Fevereiro. Os hectares da memória 
estão vazios. O futuro já passou 
há anos. Mas agora também o passado. 
(Levaste-o contigo). A luz de inverno

torna os factos duros. O mar ofende tudo à volta 
O vento estala. O frio é audível. 
A língua fica presa, já não sei das palavras. 
Congela-se em sílabas fechadas.

Nada. E ver. 
O vazio claro, como muito para além da vírgula 
nas divisões do número dez.

Herman de Coninck, Os Hectares da Memória, Nuno Júdice (rev., tradução colectiva), Quetzal Editores, Mateus, 1994.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

um daqueles poetas que em poucos versos é capaz de dizer muito

o Sr. Vítor Pereira teve
a convicção e a certeza
do que dissemos durante
portanto
e depois do jogo.

Jorge Jesus
Port-Cros, tarde
O amor encontrou a partir do nada
uma ilha de pedra-pomes para entrar e sair, um v,
um pequeno porto. Barquinhos posam
ao sabor da maré.
No café toca uma guitarra
durante meia-hora três acordes tristes.
Assim paira a melancolia sobre o mundo
que afinal é demasiado belo.
Assim as linhas telefónicas distribuem a distância.
Cordas telefónicas. Sobre as quais passa o arco
do tempo. Em todo o lado há mais lá
do que cá, canta ele.

Herman de Coninck, Os Hectares da Memória, Nuno Júdice (rev., tradução colectiva), Quetzal Editores, Mateus, 1994.

Estas coisas nunca aconteceram

As Núpcias de Cadmo e Harmonia de Roberto Calasso, que tem das melhoras epigrafes de sempre: «Estas coisas nunca aconteceram, mas existem sempre.» (Salústio, Dos Deuses e do Mundo.)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

"The Last Detail" de Hal Ashby, 1973

Dois lugares para quando

Este e este.

wishful thinking

Que bom que seria se alguém traduzisse a Divina Comédia de Vasco Graça Moura para português.

Futuro

Partir. E voltar.
Sonhar. E não mais sonhar.
E não mais partir.

E verdadeira melancolia, não pelo que aconteceu
mas pelo que nunca chegou a acontecer.
A recordação do que nunca existiu.

Vou acender um charuto
e ainda não, não provo ainda a aguardente,
espero ainda um momento por aquilo que já tenho.

Porque temos o tempo.
Estás dentro de mim como sombra num quarto.
Temos o tempo que passa.

Herman de Coninck, Os Hectares da Memória, Nuno Júdice (rev., tradução colectiva), Quetzal Editores, Mateus, 1994.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010




Mantendo a fama que me é dada, pelo menos parte da mesma, não me contenho para já. A ver se aprendo que coisa seja a continência e se me fico por aqui.

(tenho dúvidas)

Para quem não conhece a senhora Alma Mahler-Werfel, faz favor de ao menos passear na Wikipedia.

Noutro registo, juro que faz parte dos meus arquivos uma fotografia do Berlusconi em nu integral, mas tendo em conta a facilidade de a obter e uma preocupação com a moral e os bons costumes deste blog, mi fermo questa volta. (para os interessados - tremo só de pensar - basta googlar berlusconi nudo).

"Nattvardsgästerna" (Luz de Inverno) de Ingmar Bergman, 1963


A ferida nas mãos é uma espécie de metáfora, este filme é sobre pessoas que são feridas nos modos em que pensaram poder viver as suas vidas e na forma como esses pequenos horizontes de possibilidade, de decisão, se parecem ir lentamente fechando sobre eles. Bergman é um realizador que tinha por hábito filmar a felicidade do ângulo mais difícil. Acho que em "Luz de Inverno" está em causa a forma angustiada como ela se vai esvaindo, apagando lentamente, e de repente, num último golpe, por palavras proferidas por uma personagem quase insignificante, quase um deus ex machina, ela se escapa e eles se salvam. Bergman filmava poemas. Segundo Claude Chabrol este podia revelar-se o pior tipo de realizador ou o melhor consoante a habilidade do homem por detrás da câmara.
Em suma: este é um filme que tens de ver. Vai deixar-te o pensamento em chamas (para usar uma expressão de um poeta italiano cujo nome agora não me recordo).

Berkeley Square

O alto adolescente. Caminha
em passo danção.
Camisola às riscas larga
vem dizer o
olhar tão alvejado.

O ar invulnerável é-lhe
dado pelo chapéu
de abas luminosas.
Ele e eu poucas palavras
perdidos para os lados
do mar.

O frio das ribanceiras
levou-nos às paredes,
eu pedi-lhe a mais breve
constelação, sal, areão
molhado, o rumor de outra coisa ainda.

Fernando Luís, Sólon, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987

It sure is a groovy!

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Lugares de Sombra

Estas às vezes vagarosas ilusões
em breve desistidas abrem
no meio das frases
lugares de sombra, desiguais tempestades.

E arrancam ocultas folhagens,
rastros de cólera, madeiras
corroídas pela torquez
da impaciência.

E ao mover os dedos,
a tua imensa sombra
arde no sublime cenário
destas imagens.

E assomam mais ferozes
águas, desiguais
tempestades...

Destas duras tábuas ergues
sustos singulares, cruéis fulgores,
tormentos. E nas espáduas depois
vejo rebentar o linho.

O fulgor magoado
das escarpas, os ombros
cobertos de giz.

Não digas súplicas, abre a
janela, olha os mesmos
subúrbios onde a luz parece
atravessar as sebes calcinadas.

E com esse brilho arterial
devasta a cor dos lábios.
Destrói portas, leva-nos
pelas frases dentro até

sentirmos sucumbir este céu
sob o inquieto rumor
destas duras tábuas
justamente.

Fernando Luís, Sólon, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987

Canto do Rio

Caro Leitor,

a título de excepção este blogue passará a integrar na sua lista de colaboradores uma nova pessoa, Simão Valente. De acordo com a fama que circula (fama, essa besta que os antigos representavam como um bichito de muitos olhos e olhar ameaçador [sic], cf. Vergílio, Eneida, não me lembro do verso nem do canto), Simão Valente foi contratado por um copo de leite e uma quantidade razoável (mas não excessiva) de bolachinhas às Artes e Culturas Comparadas F.C. (nós de clássicas às vezes também nos miscigenamos, afinal de contas eles também têm um CEC, caramba), para ser o editor de política italiana deste blogue e também extremo esquerdo de uma hipotética equipa de futebol que se venha a fundar, sendo que extremo esquerdo nada tem que ver com as suas, dele, orientações políticas.
Simão Valente, na sua primeira conferência de imprensa, prometeu não postar fotografias de Sílvio Berlusconi nu, ou pelo menos não em nu integral, nem excertos de alguns romances que foram candidatos à última, e derradeira, edição do prémio Grinzane-Cavour. Também consta que ele nos próximos dias se dedicará a reunir neste blogue uma selecção dos melhores momentos da obra canto-poética (é assim que isto se escreve? é isto que isto significa?) de Tom Lehrer, que inclui momentos como este:



Posto isto, a emissão segue normalmente, exceptuando, evidentemente pelo facto de termos um novo blogger no blogue, um elemento estranho, que o caro leitor ainda não conhece bem e do qual claramente desconfia, porque ele tem a penchant* for matemáticos do MIT que tiveram estranhas carreiras musicais.

*Outros penchants deste novo blogger, que, estou em crer, nunca antes tinha tido um blogue, podem incluir ligar-lhe às oito da manhã, a perguntar-lhe se está interessado em petiscar umas ervilhas fritas com wasabi*, se este efeito secundário se verificar, aceite cordialmente, caro leitor, e continue a ler este blog. Já viu efeito blogoesfericamente mais esquizofrénico do que um post com uma cena de "Sex, Lies and Videotape" imediatamente seguido de "Vatican Rag" de Tom Lehrer? Pois, não viu. Eu também não tinha visto.

*Este aperitivo existe de facto et de jure, ecco:




Temple Bar

Pelo verão veste roupas
emprestadas, senta-se no empedrado
que abre para o terreiro
da capitania.

A luz aos tropeções deixa
a pedra solta, a lava levemente
verde, olhos perdidos,
boca pronta a buscar
sal do escuro, é ele o archeiro
das neblinas,
vulto de ave, cinza do amanhecer.

Fernando Luís, Sólon, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

The Vatican Rag

"Sex, Lies and Videotape" de Steven Soderbergh, 1989

É já esta semana

Quando Portugal era o reino de Leão.

Out of nowhere

Vais ficar sem canções

O ronco da sirene à entrada
da barra traz o jovem às
portas enchameadas do deserto.

O olhar vai espancado nas
águas inflamadas, para o vão
das escadas iam sentir o
lume das salivas, o cabelo
desfeito no céu das calçadas.

Vais ficar sem canções,
tigre baleado, os dedos destronados
do peito, coração encordoado
na rocha dos fulgores.

E o brilho que nos varais
o mar entrança não é senão
o esgar do adeus, giz da boca,
cinza mordida que voa
para o último crepúsculo.

Fernando Luís, Sólon, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987

domingo, 19 de setembro de 2010

"Manhunter" de Michael Mann, 1986


Gill Grissom vinte quilos mais cedo, Michael Mann aproximadamente vinte anos antes de Miami Vice. Não tenho memória de este realizador ter feito um mau filme de acção.

Heptapyla Tebas

Uma coisa que sempre me impressionou sobre a lenda da fundação de Tebas em relação a outras: os cinco habitantes que hão-de ajudar Cadmo a construir a cidade das sete portas brotam do chão, armados até aos dentes. Não chegam foragidos de um sítio, não chegam pressionados pelo oráculo de um deus, mesmo ao contrário de Cadmo não estão em busca de nada. A terra de onde brotará a cidade é o seu princípio e o seu fim. Os tebanos podiam dizer que os seus antepassados eram intrínsecos à terra. Penso que a força disto só podia ter sido pensada por um Grego.

sábado, 18 de setembro de 2010

Mercadoria mais estranha

Com dificuldade existirá no mundo uma mercadoria mais estranha do que os livros; impressos por pessoas que os não compram; vendidos por pessoas que os não compreendem; encadernados, censurados e lidos por pessoas que os não compreendem; muito melhor, escritos por pessoas que os não compreendem.

Lichtenberg, Aforismos, João da Fonseca Amaral (trad.), Livro B, Editorial Estampa, 2010 (2ªed.)

"Toy Story 3" de Lee Unkrich


Filme adorável.

Catulo 84

"Khómodo", se acaso "cómodo" queria
dizer, e "insídias" Árrio "hinsídias" dizia,
e gabava-se então de maravilhosamente ter falado,
quando, o mais que pudera, "hinsídias" dissera.
Parece-me que já assim a sua mãe, assim o seu tio livre,
assim o avô materno e a avó tinham falado.
Enviado ele para a Síria, a todos haviam os ouvidos descansado:
ouviam essas mesmas palavras branda e levemente ditas,
nem depois tais palavras receavam,
quando de repente surge a notícia terrível:
as ondas Iónicas, depois de lá ter estado Árrio,
já não Iónicas, mas Hiónicas eram.

Tradução de André Simões

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Pélops

Pélops não é um único, como Teseu ou Cadmo. Não é um grande guerreiro, nem um herói, nem um inventor. É apenas o portador de um talismã. A unicidade que não existe nele acolhe-a no seu corpo. A sua omoplata de marfim é a ligação artificial com o divino, cobre a falta originária do homem. O que reveste aquele vazio e se articula com o corpo de Pélops condensa um imenso poder. Esse poder vai muito para além do portador, e transmite-se como um excesso às gerações seguintes.

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

Os cavalos de Ares

Pélops olhava para os seus admiráveis cavalos e pensava que Ares é um deus poderoso mas não comparável a Posídon, que estilhaça os rochedos para abrir caminho aos seus animais - e os faz emergir da espuma das ondas.

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

O décimo quarto

Em redor da entrada do palácio de Enomau, na colina de Cronos, em Olímpia, estavam espetadas três cabeças humanas. Pélops transpôs aquele limiar como estrangeiro, como o décimo quarto pretendente de Hipodamia.

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A minha poesia

Deixa-me salvar o que se pode salvar
e eu sento-me somente
grave
como um bloco de pedra
como aquele pássaro gigante
que na idade ingrata feri e mudo sangrou na sombra dos salgueiros.
Em silêncio no fundo do silêncio da parte ignorada do mundo
escrevo os meus poemas que estão à uma para cá e para lá da literatura
das leis costumadas
dos êxtases imbecis.
Basta de beleza a granel
dos efeitos herdados.
A minha poesia não nasce da florescência incoerente dos sonhos
mas da ordem rigorosa da geometria
tira a pele do fruto
traça seu plano
dispõe no espaço os objectos
limpa as ruínas do passado
e promete um futuro mais belo.
Eis a essência da minha poesia
o conteúdo das minhas palavras
o sentido que diriam insensato das minhas confissões
chuva de fogo
e tilintar de estalactites
que segundo a lei dos contrários
vivem lado a lado simultaneamente
e do mundo povoam
conhecidos desconhecidos domínios.

Kassák Lajos in Antologia da Poesia Húngara, Ernesto Rodrigues (selecção e tradução), Âncora Editores, 2002.

Em qualquer parte

Contra pequenos mundos inteiros, o poeta floresce em qualquer parte (...)

Gil de Carvalho, algures em A Phala

Marcial na Restauração

Já aqui tenho falado do monumental Philippus Prudens, de Juan Caramuel Lobkowitz, que, em 1639, se dedicou em mais de 400 páginas de excelente latim a provar a legitimidade dos Filipes ao trono português. Parecia que adivinhava o que aconteceria um ano depois.

Logo em 1641 foi publicada a resposta portuguesa, no Manifesto do Reyno de Portugal, que se dedica, inversamente, a provar a ilegitimidade dos Filipes, e a legitimidade dos Braganças, em 1580, na pessoa de D. Catarina, e em 1640, na de D. João IV.

Um ano volvido, em 1642, Caramuel volta à carga, com uma Respuesta al Manifiesto del Reyno de Portugal, na qual retoma de forma sintética as teses defendidas no Philippus Prudens. Na edição de 1665, o prefácio é enriquecido com uma desconcertante citação: Marcial III,8.


Y pues hauemos visto, que no se aprouecha de dos ojos el Duque de Bergança, con facilidad probaremos que está ciego el Pueblo Portuguez. Tómo por fundamento para persuadir esta verdad dos lineas de otro ingenio Español.

Tháida Quinctus amat. Quam Tháida: Thaida luscã.
Vnum oculum Tháis non habet, ille duos.

Habló en lengua estrangera, que en su materna huuiera dicho.

Quinto ama a Tháis. Y qual vos
Decis? La del ojo tuerto:
Que a Tháis falta un ojo es cierto,
Pero a Quinto ambos a dos.

Mira a su Vtilidad, no a su Conciencia el Duque: y asi, como decíamos, carece del ojo principal su Politica: pero la del pueblo Portugues, ni mira la honra de Dios, ni la utilidad propria, y assi es ciega, y carece de entrambos.



É preciso lembrar que, em 1665, continuava a guerra entre Portugal e Espanha, e que só 3 anos depois, em Fevereiro de 1668, seria assinada a paz, e consequentemente reconhecida a independência restaurada em 1 de Dezembro de 1640.

Encerramento do Tio Vânia: Primeiras Reacções

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

(Variação sobre II: 9 de Setembro)

Uma angústia por hábito
O dia mergulhando no escuro
A luz rapaz tolo ama-te demasiado
Ou o contrário porque paralelo
O coração não segue rigorosamente a aridez
Do primeiro pensamento que te agarra
A lua roça esse chão de areia e vai
Subindo por mecânica de repetição e não sabes
Se cantaste humildemente um sorriso
Um passo em falso uma forma de saudação
A maneira como espiando o relógio
Te debates em falso e suavemente inclinas a cabeça
Mergulhas num sono breve
Onde por ruas circulares te moves como um peão
A geografia de uma cidade onde sempre te perdes
De cansaço te canto e por remorso
Gastando as últimas palavras
As mais chãs as mais amargas
Consumindo o tempo efémero de cada gesto
Por baixeza de espírito te canto
O teu rosto mergulhado na penumbra
E por bem menos do que desespero e mesquinhez
Por isso este hábito de angústia
Porque sei que há um lugar
Onde vão morrer os dias que amo
E adivinho o seu silêncio
Conheço a sua cor baça
A forma como se debate um pouco
Sem ousar a altivez de uma força que chegue
Para ferir a orla dos dias
Por isso a impressão indelével do toque
Fria mão pousada sobre a testa

"The Night of the Hunter" de Charles Laughton, 1955

Influência

Fosse qual fosse a via por que ela se exerceu, o certo é que a influência de Pessoa na «geração de 40» - quer no grupo neo-realista, quer nos poetas ligados aos Cadernos de Poesia, quer na Poesia Nova, quer, mais tarde, nos surrealistas - é, de um modo geral, determinante, embora não tenha de maneira nenhuma revestido o carácter obsessivo com que se manifesta na década seguinte.

Fernando Martinho, Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa: Do Orpheu a 1960, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991 (2ª edição).

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Princípio perfeito

O poeta de Hortobágy

Era um rapaz de olhos grandes, sangue
cumano, ferido de tristes quereres;
a manada guardava e corria
através do célebre Hortobágy húngaro.

Crepúsculos e miragens cem vezes
a alma lhe tomaram; se uma flor,
porém, no coração lhe crescia,
nele pastava uma manada de povos.

Mil vezes pensou em maravilhas,
pensou na morte, em vinho, mulheres;
em qualquer outro sítio do mundo
teriam feito dele cantor sacro.

Mas se olhava os companheiros,
sujos, tolos, calças largas, e a manada,
logo enterrava a sua canção:
e praguejava ou assobiava.

Ady Endre in Antologia da Poesia Húngara, Ernesto Rodrigues (selecção e tradução), Âncora Editores, 2002.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Ao virar da esquina



















Clicar na imagem para aumentar.

Aqui estou, no meio da planura...

Aqui estou, no meio da planura,
como estátua, imóvel.
Cobre o deserto silêncio sepulcral,
qual sudário cobre o morto.
Ao longe, um homem ceifa;
pára agora mesmo,
e afia a foice...
A lâmina não se ouve,
vejo somente como a mão se move.
E olha, agora,
comigo se admira, mas eu nem pestanejo.
Que pensará que eu penso acerca dele?

Petófi Sándor in Antologia da Poesia Húngara, Ernesto Rodrigues (selecção e tradução), Âncora Editores, 2002.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

"Fanny och Alexander" de Ingmar Bergman, 1982





















Que filme!

A Próspero

Que rude terra criasse engenho qual o meu
espanta-te, Próspero, filho do céu toscano.
Em qualquer lado podem nascer estúpidos
e também homens cujos corações ardentes vibram.
O pensamento de Demócrito surgiu em Abdera, rica em gado,
deu a rústica Mântua Virgílio subtil.
Se, porém, te esquivas a crer em exemplos antigos,
olha para nós, quem somos e donde vimos.

Jannus Pannonius* in Antologia da Poesia Húngara, Ernesto Rodrigues (selecção e tradução), Âncora Editores, 2002.

*Jannus Pannonius, a julgar pela amostra de poemas que tem nesta Antologia, era um homem com um ego que nunca mais acabava. Sed, bom poeta.

Call it a day

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Probabilidade

Um medo maior acerca a ilha
Medo que o encanto se quebre
e o desmoronamento se propague
aos elementos que do mar a ergueram.

Será que existem inventores
solicitados pela sua invenção?
A ilha, indiferente a construtores,
afirma-se na sua missão

de renovar espantos singulares.
O próprio medo é renovador
quando percorrido pela intempérie
que sopra das ilhas implacáveis.

Ruy Cinatti, Lembrança para S. Tomé e Príncipe 1972, Instituto Universitário de Évora, 1979
Vai lá.

Roger The Great

Sensible






























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