quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Depois de tantos anos
ver-te
Queimando incenso num templo

Finjo não entender
O desaparecimento da luz
Que me era destinada
E regresso a casa por outro caminho.

Luís Falcão, Pétalas Negras Ardem nos Teus Olhos, Assírio e Alvim, 2007.

Ghismonda e Guiscardo, «Decameron»

Boccaccio foi um daqueles escritores que se viu persuadido pelo pai a estudar direito, embora o seu principal interesse fossem as humanidades. O Decameron (dez histórias contadas em dez jornadas, o que perfaz um número de cem histórias) é em muitos aspectos uma síntese da cultura e personalidade de Boccaccio mas também reflecte um mundo que está em transição de um sistema imperialista e feudal para um mundo capitalista, impulsionado por uma burguesia poderosa. Boccaccio, devia ser, parece-me, um homem com uma daquelas alegrias de viver inquietas, que levam imenso tempo a esgotar-se, e que deve, noção que está sempre no horizonte das páginas do Decameron, ter cultivado aquela máxima horaciana de que é necessário colher o instante (carpe diem, gozar o dia). A sua obra é, em muitos aspectos, um momento fundador da narrativa ocidental.
Começa-se com a afirmação bem-humorada de que este livro é um Principe Galeotto, numa alusão a um episódio do canto V do Inferno (de Dante) em que se alude ao poder pernicioso da literatura. A obra começa, portanto, por aludir a esse tabu: este é um livro que pode exercer uma má influência sobre quem o ler.
Se realmente a maior parte das histórias são sobre mulheres adúlteras, homens que traem as suas mulheres, clérigos que não conseguem evitar ceder às suas paixões, enfim, um verdadeiro desfilar de inconstâncias, de carácter e/ou amorosas, há depois algumas excepções. Vou-vos falar de uma das minhas favoritas: a Novela I, da IV Jornada.
Esta novela conta em poucas páginas (já não me lembro quantas: dez, vinte?) a história de Ghismonda e Guiscardo. Ghismonda é a única filha de Tancredo, príncipe de Salerno. Casa-se, enviúva precocemente e regressa à casa paterna. Ghismonda é, de certa forma, uma mulher excepcional no Decameron: ela é de uma inteligência, firmeza e constância a toda a prova.
Farta de estar sozinha, e por inteligência, determina tomar muito discretamente, entre os homens que frequentavam a corte de seu pai, um amante. Mas a sua escolha não é leviana. Ela observa-os a todos e acaba por decidir-se por Guiscardo, um vassalo de baixo nascimento mas um homem verdadeiramente excepcional, à sua maneira um Lancelot du Lac, e isto basta para descrêve-lo.
O amor que rapidamente começa a sentir por Guiscardo acaba por ser correspondido, e ela concebe um plano para que possam encontrar-se sempre, sem nunca serem descobertos, de modo a não provocar o escândalo na corte. E assim, durante muito tempo, se sucedem, para alegria de ambos, os encontros clandestinos, até que um dia, acidentalmente, são descobertos por Tancredo.
Guiscardo é preso, sucedem-se as ameaças do príncipe de Salerno, no sentido da filha negar o que fez e deixar o amante, pois trata-se de uma relação ilegítima, e pior que isso, com um homem de baixo nascimento, embora ela explique que, para ela, a nobreza de carácter se impõe à de sangue, o que é algo bastante, por assim dizer, moderno.
De Guiscardo ouvimos apenas uma frase mas não para tentar escapar à morte certa, não para se defender ou justificar. Diz ele ao seu suserano, no melhor estilo de Boccaccio: « - Que são as vossas forças ou as minhas comparadas com o amor?».
Mas Guiscardo é o cavaleiro perfeito, dele não se esperava outra coisa. O que impressiona realmente, é o facto de, sendo o Decameron um desfilar de mulheres inconstantes, haver nestas histórias espaço para uma mulher com a firmeza e constância de carácter de Ghismonda.
Quando expõe ao pai a sua acção (tal como Guiscardo ela não se desculpa, não se justifica, não procura o perdão) ela diz-lhe apenas que é de carne, não de pedra ou ferro, e, sendo ainda jovem, está como todos sujeita às leis da juventude.
Ghismonda é uma heroína, na velha acepção do termo e, uma vez lida, esta novela torna-se inesquecível. Se gostam de literatura, se têm alguma pretensão a alguma vez, tal como eu, aprender alguma coisa sobre literatura, sobre a sua capacidade de maravilhar, esta é a história a ler, se não no original, o que eu particularmente recomendo (é um italiano que se lê bem, mesmo para quem, como eu, só fez uma cadeira de italiano e se safa a ler esta língua com isso, com um pouco de latim e de francês, pois a graça perde-se um pouco lendo em português, na tradução de Urbano Tavares Rodrigues, da Relógio d'Água), pois além de a graça se perder um pouco, o facto é que no caso desta novela, a tradução pode induzir-nos em erros de leitura, mas mesmo assim, se não estiverem para ler em italiano, serve.
O fascínio de Boccaccio, mais do que prender-se com a noção de que o Decameron é um acumular de histórias picantes, licenciosas, é o facto de, como muito bem se explicou algures (a formulação não é minha), nesta obra, entre muitas outras coisas, se entender o amor como uma força instintiva mas, ao mesmo tempo, como parte do património espiritual do indivíduo.

Disponibilidade de atenção

Quarenta páginas disto para ler até às seis da tarde e o meu sono não entra em consenso com a minha disponibilidade de atenção. Um dia ainda vos conto a história que este livro conta, é bem engraçada.
Sabemos que o tempo passou
Que alguma coisa deveria ter sido dita
(talvez depois, talvez mais tarde)
Deixamos atrás de nós
Uma sequência desconexa de gestos irreparáveis
E, feridos,
Por todas as coisas
que poderíamos ter evitado a nós próprios
Caminhamos para o silêncio
E para a escuridão indefinível dos bosques.

Luís Falcão, Pétalas Negras Ardem nos Teus Olhos, Assírio e Alvim, 2007.

Uma fotografia de Manuel Alvarez Bravo
























Fotografia de Manuel Alvarez Bravo. Um daqueles dias quentes do sul e um menino que teve de trepar a um tanque para beber água.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Quando te afastas

Quando te afastas
Uma fina poeira de gelo
Cobre os ramos de todas as árvores
E delicadamente
Atravessas os destroços
Em que deixas tudo o que amaste.

Luís Falcão, Pétalas Negras Ardem nos Teus Olhos, Assírio e Alvim, 2007.

(Tanta coisa de ti que nada sei)

Tão altas as primeiras árvores.
Vem a primavera destruí-las.
Fulgores fugazes os cabelos
à poeira do céu.

A alma pisada de caminhos,
o meigo revólver do olhar
vêem-te partir.
Por essa cidade, perdido
na suavidade da chuva.

Rasgam de novo as mãos
o inexpugnável nome
dos amantes, a flor secreta
que dizia a tua boca.

Tanta coisa de ti que nada sei.

Joaquim Manuel Magalhães, Segredos, Sebes, Aluviões, Colecção Forma, Editorial Presença, 1985.

«L' Innocente» de Luchino Visconti, 1976




















Quando quiserem ver um filme mesmo violento, com um tipo de violência que choque moralmente (violência diferente da dos filmes de Kubrick ou de Tarantino, por exemplo), a película a ver chama-se L'Innocente e data de 1976. Trata-se do último filme de Luchino Visconti e é baseado na novela homónima de Gabriele d'Annunzio (que eu nunca li, mas para quem sinta mesmo muita curiosidade, e não possa esperar o tempo que levam a chegar os livros que estão já encomendados, está disponível aqui). Embora a novela seja de d'Annunzio, as personagens parecem-me bastante devedoras de Dostoiévsky.
O enredo parece uma plain story: aristocrata rico com mulher deslumbrante tem uma amante. Como o aristocrata é bastante impulsivo, muito permissivo em relação a ceder às suas paixões e não é temente a Deus (este pormenor não é de todo insignificante), Tulio Hermil (interpretado por Giancarlo Giannini) resolve deixar a mulher e decide fugir com a amante. Entretanto, muda de ideias, volta atrás, e decide que afinal quer ficar com a esposa.
Agora, o que Visconti não filma, mas que nos dá a entender é que Giuliana Hermil (Laura Antonelli), a esposa, se apaixonou por um escritor que frequentava a casa do cunhado (salvo o erro, esta personagem é Filippo d'Arborio). O escritor, um tipo simpático e idealista, uma daquelas figuras com uma solidez moral irrepreensível, resolve que aquele é um amor condenado e parte para as Áfricas (se a memória não me falha). O marido volta.
O problema é que a senhora entretanto ficou grávida e o marido, mais ou menos no meio de uma segunda lua de mel, percebe que não há hipótese de ser ele o pai.
De todas as possibilidades que um enredo que chega a este ponto permite, há uma que nunca consideramos como possível, mas é essa que Visconti resolve seguir.
Tulio Hermil é um homem que, não acreditando em Deus, pensa que responde pelos seus actos apenas perante si próprio, o que torna o seu horizonte moral bastante amplo (e também bastante difuso). Por outro lado, o que pode parecer um contra-senso para um tipo tão livre-pensador, é um daqueles aristocratas bastantes conservadores, para quem a ideia de o filho primogénito da sua casa não ser um seu filho natural é absolutamente intolerável. Ao contrário de Don Fabrizio (Il Gattopardo), Tulio não é um visionário e não está disposto a aceitar seja que mudança for , nem que seja para que possa ficar tudo na mesma. É uma coisa que está para lá do amor que sente pela mulher. A juntar a isto, há a passionalidade do seu carácter. Como podem ver, um tipo de personagem bastante devedora de Dostoievsky.
Tulio começa a pressionar a mulher para ela abortar. Esta, ao contrário dele, é uma mulher temente a Deus, e o facto de o amante morrer em África acaba por afastá-la completamente dessa ideia. A criança nasce. É um rapaz. Que julgam vocês que sucede?
Não vos conto o final. Mas é bastante evidente. O que choca no filme, é que, tendo em conta o desfecho, que é absolutamente horrível (filma-se o crime mais grave, crime quase com um sentido de pecado, que um homem pode cometer), é a beleza de tudo o que rodeia estas personagens: a beleza física dos actores (Giancarlo Giannini é, em minha opinião, um dos homens mais bonitos que alguma vez apareceu num ecrã), a beleza do cenário em que estas personagens se movimentam, os guarda-roupas, a música, enfim, Visconti na akmê da sua fase de esteta. Como pode o belo manter-se intacto enquanto vemos actos tão sórdidos?
Quase como se a beleza de certas cenas, a beleza das situações, daqueles que nelas figuram, fosse o contraponto ao desfecho do filme. Mas é um filme que nos faz sentir devastados. Em minha opinião, não é Visconti no seu melhor, mas, ainda assim, vale a pena ver.
Ocupei o dia com pequenas tarefas
Para silenciar um pedido uma súplica
Pintei o velho alpendre consertei a cancela do jardim
Libertei o cão para que perseguisse os pássaros pelo bosque
Recusou-se a partir
Persiste onde não existe caminho
Ao meu lado
Esperando que um vento frio
Dispa de folhas todos os ramos.

Luís Falcão, Pétalas Negras Ardem nos Teus Olhos, Assírio e Alvim, 2007.

Roman Polanski

A isto se chama uma questão fracturante. Eu sou fã do trabalho de Polanski (só para nomear dois filmes: Chinatown e O Pianista, este último é um tour de force, com um desempenho notável de Adrien Brody). Por outro lado, acho que não existe qualquer perdão ou esquecimento possível para um crime de pedofilia. Seja a que distância de tempo for. Contudo, o facto de a mulher de Polanski ter sido morta da maneira como foi, levam-me a pensar que Polanski não devia estar no seu perfeito juízo, e isso deve ser uma atenuante. A somar a isto, a perspectiva de cinquenta anos de prisão parece-me um grande incentivo para qualquer tipo fugir, por muito disposto que estivesse a pagar pelo seu crime. É complicado.
Um anel de rio cobriu o granito.
Metade de ti fala comigo,
a outra metade com o que não sei.
O cardo na tua mão que nome tem?

O teu. Onde perdeste
o destino que te trouxe?
Ao longe no céu de outubro
a estrela do entardecer.

No centro da folhagem esse escorpião,
o resto do amor. Maré de suspeitas,
um motim.

Tudo o que vai poder ser dito
parece a morte.
Palavras sem peso algum.

Joaquim Manuel Magalhães, Segredos, Sebes, Aluviões, Colecção Forma, Editorial Presença, 1985.

Críton, 43b - 43d

As gentes vindas de Súnion,
a arte da morte, a lua de outubro.
As canas escondem o caminho.
A minha mão tocou-te. O mar
tributa essa canção de vida.
Depois parto. A floresta vê
o silencioso orvalho pousar.
O artifício da linguagem inventa
almas. E o olhar acredita,
vai de noite, encontra as gentes
que do promontório viam o navio.
A arte da morte. A poesia.

Joaquim Manuel Magalhães, Segredos, Sebes, Aluviões, Colecção Forma, Editorial Presença, 1985.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Virá a morte e terá os teus olhos

Virá a morte e terá os teus olhos -
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, insone,
surda como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês em cada manhã
quando sobre ti só te inclinas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós
que és a vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos o remoinho mudos.

Cesare Pavese, Trabalhar Cansa, Carlos Leite (trad.), Livros Cotovia, 1997.
Grande cena! Grande cena!

Uma fotografia de Cole Thompson


















Esta fotografia foi tirada por Cole Thompson e pertence a uma série deste fotógrafo intitulada «Lone Man». Creio que a solidão do homem, bem como aquela que o espaço impõe mesmo que este estivesse acompanhado, dão a esta imagem um tom primordial. O contraste entre preto e branco ajuda a criar esse efeito.

Conversar

Além disso, eu gostava de Nuto porque nos entendíamos e ele me tratava como amigo. Tinha já aqueles olhos tristes, de gato, e sempre que falava, concluía: «Se me engano, corrige-me». Foi assim que comecei a compreender que não se conversa apenas para dizer «fiz isto», «fiz aquilo», «comi e bebi», mas para exprimir uma ideia, para compreender o mundo. Dantes não tinha pensado nisso.

Cesare Pavese, A Lua e as Fogueiras, Manuel Seabra (trad.), Colecção Mil Folhas, Público, 2002.

Livros

Ele levantava aqueles livros, batia-lhes para tirar o mofo, mas, tendo-os um pouco nas mãos, elas gelavam. Eram coisas dos avós, do pai de Sor Matteo, que estudara em Alba. Havia-os escritos em latim, como o livro de missa, outros com figuras de mouros e animais, e foi deste modo que conheci o elefante, o leão, a baleia. Dentre eles Nuto escolhia algum e levava-o escondido debaixo do pull-over. «De qualquer maneira», dizia, «ninguém já pensa em usá-los.»
- Que vais fazer com isso? - tinha-lhe perguntado. - Em tua casa já não compram o jornal?
- São livros - disse ele. - Quanto mais se lerem melhor. Serás sempre um ignorante se não leres livros.

Cesare Pavese, A Lua e as Fogueiras, Manuel Seabra (trad.). Colecção Mil Folhas, Público, 2002.

Uma cena de «Blow Up» de Michelangelo Antonioni, 1966



Blow Up é um filme de Antonioni, baseado numa novela de Julio Cortázar. Trata-se da história de um fotógrafo que acidentalmente fotografa um assassinato e só mais tarde se apercebe disso. É um filme caótico, e ao mesmo tempo muito belo, com, como não poderia deixar de ser, uma excelente fotografia. Esta é talvez a cena mais famosa do filme.
Tal como a única vez na vida em que senti uma vontade sincera de estudar matemática foi ao ler As Perturbações do Pupilo Törless (Musil), esta foi também a única vez na vida que senti uma vontade sincera e quase irreprimível de jogar ténis sem bola. A cena, de certa forma, é uma síntese de todo o filme.

Ah este caminho (é o princípio do Outono)

Ah este caminho
que já ninguém percorre
a não ser o crepúsculo

Admirável aquele
cuja vida é um contínuo
relâmpago

Na escuridão do mar
brancos
gritos de gaivotas

Acabou-se o óleo na lamparina
Mas...eis a lua
que entra pela janela

A lua brilha
enquanto um verme
a castanha rói

No outono nos separamos
como as duas conchas
da ameijôa

Outono -
empoleirado num ramo seco
um corvo

Matsuo Bashô, O Gosto Solitário do Orvalho: Seguido de O Caminho Estreito, Jorge Sousa Braga(trad.) Assírio e Alvim, 2003.

domingo, 27 de setembro de 2009

It serves me right to suffer

Nat King Cole, (I Love You) For Sentimental Reasons


Adoro esta música, for definition purposes.
Somos gatos gordos o suficiente para não ter asas.

Desenhas no meu peito o teu número,
o teu cheiro, o teu calor.

........................................Vertes o teu ser
na concha dos meus passos e há renúncias
renitentes no coito casual das coisas
por vezes que não conseguimos desmentir.

Mas há sementes e sol. E cheira a alecrim
nas vilas que vemos no vazio do canto.

Lá também haverá ossos e enxadas e é bom sabê-lo a dois.

Uma cena de «Rebel without a Cause» de Nicholas Ray, 1955

Agonia

Irei pelas ruas até cair morta de cansaço
saberei viver sozinha e reter nos olhos
cada rosto que passa e continuar a ser a mesma.
Esta frescura que sobe e me busca as veias
é um despertar que em manhã nenhuma sentira
tão real: sinto-me simplesmente mais forte
que o meu corpo e um arrepio mais frio acompanha a manhã.

Longe vão as manhãs em que tinha vinte anos
E amanhã, vinte e um: amanhã sairei para a rua,
lembro-me de cada pedra da rua e das nesgas de céu.
A partir de amanhã as pessoas ver-me-ão outra vez
de pé e caminharei direita e poderei parar
e mirar-me nas montras. Nas manhãs do passado,
era jovem e não sabia, nem sabia sequer
que era eu que passava - uma mulher, dona
de si mesma. A rapariguinha magra que fui
despertou de um pranto que durou anos:
agora é como se esse pranto nunca tivesse existido.

E desejo só cores. As cores não choram,
são como um despertar: amanhã as cores
voltarão. Cada mulher sairá para a rua,
cada corpo uma cor - e até as crianças.
Este corpo vestido de vermelho claro
após tanta palidez virá à vida.
Sentirei à minha volta deslizarem os olhares
e saberei que sou eu: olhando à volta,
ver-me-ei no meio da multidão. Em cada nova manhã,
sairei para a rua em busca de cores.

Cesare Pavese, Trabalhar Cansa, Carlos Leite (trad.), Livros Cotovia, 1997.

9.

preferiste um meio adormecer
contra o chão em vagões de comboios
a cinza de alguns passos imóveis
uma vigília constante de movimentos
que te cercam sem incêndio

no lugar onde cresce a flor da distância
vais extinguindo cada frase
o outro rosto deste diálogo hesita e perde-se
no cinzento que embaraça o corpo na penumbra
mas a memória por vezes trai-te
o outro vibra no teu caminhar pelo chão
está nos teus pés descalços guarda-se nos teus ossos
nalguns gestos das mãos em certas expressões do rosto

formas onde a maré invariavelmente não regressa
uma luz fria onde anoiteces e casas viradas para o mar
e depois estremeces gritas muito falas muito e muito alto

eu preferi antes não arremessar palavra nenhuma
até se ter extinguido o incêndio
para que do outro lado do fogo
não me surpreendesse o meu próprio rosto

O Gato das Fotocópias

«Sweet Bird of Youth» de Richard Brooks, 1962



















Sweet Bird of Youth é a transposição para cinema da obra homónima de Tenessee Williams. Importa dizer, antes de continuar, que não é justo, seja para que filme for, ser vendido na mesma caixa que The Night of The Iguana, A Streetcar Named Desire e Cat in a Hot Tin Roof, mas a verdade é que vêm todos no «pack» que reúne as adaptações ao cinema de algumas das peças de Tenessee Williams.
Servem estas considerações para dizer que até admito que Sweet Bird of Youth possa estar uns pontos abaixo de qualquer outro dos três títulos que referi, em parte porque é difícil para um Paul Newman de qualquer-filme-que-ele-tenha feito rivalizar com o Paul Newman que dá vida a Brick Pollitt. Porém, Chance Wayne é daquelas personagens interpretadas por Paul Newman que, por qualquer motivo, uma vez vista se torna inesquecível.
Chance Wayne é um homem, ainda jovem, que deixou a sua terra natal para tentar uma carreira como actor e fracassou. Vê-se forçado a regressar, e acaba por reencontrar o seu amor de juventude, uma moça que dá pelo apropriado nome de Heavenly (Shirley Knight).
Sweet Bird of Youth é um daqueles filmes que nos mostra como, quando pensamos que já nada nos pode ser tirado, que tudo o que havia a perder está perdido, resta sempre alguma coisa que nos pode ser roubada.
Porém, dependendo da índole do homem em causa, da sua habilidade para a esperança, da constância da «sua miúda», aquela que ficou na terra à sua espera, há ainda uma forma de continuar a viver, como se houvesse uma parte do espírito dos homens que guardasse instintivamente a disponibilidade para ser feliz.
Sempre achei que é a capacidade de perder, aliada a uma imensa esperança e alguma generosidade, que impede este filme de se tornar uma tragédia perfeita. Por demonstrar isto, e depois de nos mostrar cenas deveras cruéis, Sweet Bird of Youth converte-se num filme maravilhoso.

sábado, 26 de setembro de 2009

Ameaça

Amanhã vou fazer uma visita à livraria da esquina. E isto volta comigo.

«No Surprises», Radiohead

Um Poema de Pavese: A casa

O homem só escuta uma voz calma,
com um olhar semi-cerrado, como se um suspiro
lhe soprasse no rosto, um suspiro amigo
que ascende, incrível, de um tempo que se perdeu.

O homem só escuta a voz antiga
que os seus pais, no seu tempo, terão escutado, clara
e recolhida, uma voz que, como o verde
dos charcos e das colinas, escurece ao anoitecer.

O homem só conhece uma voz de penumbra,
que afaga, que sobe nos tons calmos
de uma nascente secreta: bebe-a absorto,
olhos fechados, e não parece que a tenha perto.

É a voz que outrora demorou o pai
de seu pai e cada um dos mortos do seu sangue.
Uma voz de mulher que soa secreta
por sobre o limiar da casa, na escuridão que cai.

Cesare Pavese, Disaffections: Complete Poems 1930 - 1950, Geoffrey Brock (trad.), Copper Canyon Press, 2002.

(Versão minha, a partir do italiano e da tradução inglesa.)

Um diálogo de «The Kite Runner» de Marc Forster, 2007

























[Baba] There is only one sin. Only one. And that is theft. Evey other sin is a variation of theft. Do you understand that?
[Amir] No, Baba ian.
[Baba] When you kill a man, you steal a life. You steal his wife's right to her husband, his children's right to a father. When you tell a lie, you steal someone's right to the truth. There is no act more wretched than stealing. Do you see?
[Amir] Yes. Baba.
[Baba] Good.

8.

Um koan budista diz: « o mestre segura a cabeça do discípulo debaixo de água, muito, muito tempo; pouco a pouco, as bolhas rareiam; no último instante, o mestre retira o discípulo, reanima-o: quando tiveres desejado a verdade como desejaste o ar, então saberás o que ela é». A ausência do outro segura-me a cabeça debaixo de água; pouco a pouco, sufoco, rareia-me o ar: é por esta asfixia que reconstituo-o a minha «verdade» e que preparo o Intratável do amor.

Barthes, Fragmentos de Um Discurso Amoroso, Edições 70, 2006.

Do Meu Lugar, No Café
















Do meu lugar, no café, do outro lado do vidro, vejo Coluche, que ali está enregelado, laboriosamente farfalhudo. Acho-o imbecil em segundo grau: imbecil por fazer de imbecil. O meu olhar é implacável, como o de um morto. Não me rio de nenhuma representação, por mais conseguida que seja, não aceito nenhuma piscadela; estou afastado de todo o «tráfico associativo»: no seu anúncio, Coluche não consegue fazer-me associar: a minha consciência está dividida em duas pelo vidro do café.

Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Edições 70, 2006.

(Este é daqueles livros escritos para fazer história na vida de qualquer pessoa que o leia. Ou assim me parece. Este livro, lido em Novembro de 2006, tinha lá dentro um marcador que penso ter vindo de Praga: uma representação de um painel de Mucha, Outono. Fartei-me de procurar o marcador.)

Aposto que o Jimmy Page até ovos conseguia fritar com aquela guitarra. É um pouco irónico que o vocalista de uma das primeiras bandas hard rock (Robert Plant) fosse efeminado à brava, sobretudo se nos lembrarmos daqueles bichos porcos e peludos dos anos 80. John Bonham virtuosamente irrepreensível na bateria. E John Paul Jones, bem, anda para lá, embora não se dê por ele. Há quem diga que essa era a sua maior qualidade. (Este post tresanda a adolescência. À minha, claro.)

«Gato e Pedra» de José Boldt, 2000

















Esta fotografia foi tirada no Alentejo, em 2000, e pertence ao fotógrafo José Boldt, que se dedica à fotografia desde 1983. Regra geral este fotógrafo dedica-se a jogar com a perspectiva, a luz e a sombra em fotografias a preto e branco.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Fumadores de Papel

Trouxe-me para ouvir a sua banda. Senta-se a um canto
e pega no clarinete. Começa um chinfrim infernal.
Lá fora, um vento furioso e as bofetadas, entre os relâmpagos,
da chuva fazem com que haja cortes de luz
de cinco em cinco minutos. Cá dentro, às escuras,
os rostos transtornados esforçam-se por tocar de cor
uma música de dança. Enérgico, o meu pobre amigo
dirige, lá do fundo. E o clarinete torce-se,
rompe a confusão dos sonos, eleva-se, alivia-se
como uma alma solitária, num silêncio seco.

Esses pobres cobres amolgam-se com demasiada frequência:
camponesas as mãos que primem os registos, camponesas
as cabeças teimosas que mal levantam os olhos da terra.
Miserável sangue, derreado, extenuado
de tanto lidar, sente-se mugir
nas notas, e o meu amigo dirige-os com dificuldade,
ele que tem as mãos calejadas de dar ao formão,
de manejar a galorpa, de dar cabo da vida.

Teve o seu tempo e camaradas e tem só trinta anos.
É dos de a seguir à guerra, que cresceram com fome.
Também ele veio para Turim, à procura duma vida,
e encontrou a injustiça. Aprendeu a trabalhar
nas fábricas sem um sorriso. Aprendeu a medir
pela sua própria fadiga a fome dos outros,
e em todo o lado encontrou injustiças. Tentou ter paz
caminhando ensonado pelas avenidas sem fim
durante a noite, mas apenas viu os candeeiros aos milhares,
lucidíssimos, sobre a iniquidade : mulheres roucas, bêbados,
fantoches cambaleantes, perdidos. Chegara a Turim no inverno,
no meio das luzes das fábricas e das nuvens de fuligem;
e sabia o que era o trabalho. Aceitava o trabalho
como um duro destino do homem. Mas que todos os homens
o aceitassem e houvesse justiça no mundo.
Mas encontrou camaradas. Sofria os longos discursos
e teve de os ouvir, à espera que acabassem.
Encontrou camaradas. Em todas as casas havia famílias.
A cidade estava cercada por eles. Sentiam no íntimo
um desespero tal que chegava para vencer o mundo.

Toca com secura esta noite, apesar dos músicos
que ensinou um a um. Não presta atenção ao fragor
da chuva nem à luz. O rosto severo,
mordendo o clarinete, fixa atento uma dor.
Vi-lhe estes olhos uma noite em que, sozinhos,
com o irmão, mais triste do que ele dez anos,
passávamos o serão a uma luz exígua. O irmão estudava
um torno inútil que ele mesmo construíra.
E o meu pobre amigo acusava o destino
que os tinha atado à galorpa e ao malhete
para sustentar dois velhos que não tinham pedido.

De repente gritou
que se o mundo sofria, se a luz do sol
arrancava blasfémias, não era o destino:
o culpado era o homem. Ao menos pudéssemos partir,
rebentar de fome em liberdade, dizer não
a uma vida que utiliza o amor e a piedade,
a família, o bocado de terra, para nos atar as mãos.

Cesare Pavese, Trabalhar Cansa, Carlos Leite (trad.), Livros Cotovia, 1997.

«O Idiota», de Visconti





























Se alguma vez se perguntaram como seria se Visconti tivesse filmado O Idiota de Dostoievsky, em minha opinião esse filme chama-se Rocco i Suoi Fratelli e estreou em 1960. Alain Delon faz de Rocco (digamos, Mishkin), Annie Girardot de Nadia (aqui creio que há deliberadamente uma intenção de Visconti de identificar as duas personagens, uma vez que Nadia é diminutivo de Natacha e as personagens partilham inúmeros traços) e Renato Salvatori interpreta Simone (no fundo Rogójin). Está na minha lista de filmes favoritos-de-todos-os-tempos.

Οὗτος ὁ μῦθος δηλοῖ ὅτι

Graças à errata do Miguel, informado por e-mail de Hugo Santos, já posso ir à procura dos gregos modernos que me faltam. Ou seja, Yorgos Seferis, Sombras Oblíquas, de Demosthenes Agraphiotis, e A Outra Versão, de Rasos Denegris (se é que ainda é possível encontrar estas duas últimas obras).
Louvada Sejas (de Odysséas Elitis) foi adquirido ontem, no sítio que vocês já sabem, a um preço muito convidativo. E, para terminar com uma linha à Esopo, oὗτος ὁ μῦθος δηλοῖ ὅτι (reminiscência do meu grego elementar II, qualquer coisa como: esta fábula mostra que) blogues ligados à divulgação de e sobre livros ajudam a informar com maior facilidade gente que por eles se interessa e, eventualmente, a formar melhores leitores.

O Inimigo

Foi medonha tormenta a minha mocidade,
Aqui e além cortada por brilhantes sóis;
A chuva e os trovões fizeram tais estragos
Que poucos frutos rubros no jardim me sobram.

E eis-me já em pleno outono das ideias,
quando é preciso usar os ancinhos e a pá
Pra arranjar outra vez a terra, após a cheia,
Onde a água escavou, quais tumbas, grandes valas.

E quem sabe se as flores que eu sonho, renovadas,
Poderão encontrar nessa areia lavada
O místico alimento que lhes dê vigor?

Ó dor! Ó minha dor! O tempo engole a vida,
E o que nos rói o peito, esse obscuro Inimigo,
Com o sangue que perdemos cresce e ganha força!

Charles Baudelaire, As Flores do Mal, Fernando Pinto do Amaral (trad.), Assírio e Alvim, 1992.

Este livro é que já não se encontra, nem na feira do livro manuseado. Mas já o re-imprimiam (já nem estou a pedir uma nova edição). Há uma nova geração de leitores de Baudelaire que não lê francês no original e quer muito ter o livro na estante.

As avelaneiras

Mas não esperava não encontrar as avelaneiras. A novidade desencorajou-me a ponto que não chamei, não entrei na eira. Compreendi então o que significa não ter nascido num lugar, não o ter no sangue, não estar já meio sepultado ao lado dos velhos, tanto que uma simples mudança de cultivo não nos afecte. Certamente, ainda havia manchas de avelaneiras na colina. Podia ainda reencontrar-me.

Cesare Pavese, A Lua e as Fogueiras, Manuel Seabra (trad.). Colecção Mil Folhas, Público, 2002.

Aqui está uma coisa que me interessa.Via Senhor Palomar.

FLUL

E hoje é o dia da minha sexta matrícula na FLUL. Ainda sou do tempo em que os anfiteatros se enchiam das sete às oito da tarde para ouvir o professor Arnaldo Espírito Santo ensinar Latim. Ainda sou do tempo em que os dicionários de Latim num sábado de manhã em fim de semestre eram uma enorme mancha cor-de-laranja a sair do metro, e eu a diluir-me no meio deles, com o meu dicionário cor-de-laranja, que com o avançar dos níveis passou de dicionário de Latim-Português para Latim-Francês (que cobre, tanto quanto possível, o Latim Medieval, coisa que o de português não faz). Os exames de Latim faziam-se num sábado de manhã, e havia sempre muito copianço no anfiteatro. (Era divertido.) Ainda sou de um tempo antes de Bolonha, o que implicou vantagens e desvantagens para a minha formação. Sou daqueles que começaram a estudar num curso (chamava-se Línguas e Literaturas Clássicas) e acabaram licenciados noutro, Estudos Clássicos.
Três anos de licenciatura, um ano a fazer cadeiras no DLR, um ano de mestrado em clássicas, basicamente o meu curriculum uitae. A minha história pessoal cresceu muito em torno desta espinha dorsal. Hoje é a minha sexta matrícula na FLUL.
Todos os anos há mudanças, mas dou-me conta de que a maior parte dos colegas que ingressou comigo também ainda lá estuda, alguns no seu departamento de origem, outros foram fazer um mestrado a outro departamento. Muitos colegas falam de eventualmente tirarem outro curso, que não em letras. Eu também tirava um curso outra vez. Mas fico sempre indecisa quando penso nisso. Em vez de ter bom senso (e talvez mudar-me para a faculdade em frente), se tirasse outro curso estaria indecisa entre Estudos Eslavos ou Italianos.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Salmo

A vida
é o bago de uva
macerado
nos lugares do mundo
e aqui se diz
para proveito dos que vivem
que a dor
é vã
e o vinho
breve.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003.

Love Street

Sacrifício de Novembro

Sou indigno destes campos e dos sulcos do arados,
indigno deste céu, que na minha memória
inscreve os seus sinais infrenes para um novo milénio,
indigno destes bosques, cujo pavor
irrompe no meu envelhecer com as trovoadas das cidades.
Sou indigno destas mães na encosta e indigno
dos camponeses, que revolvem o seu dia
com vacas e pereiras, bebedeira e foices.
Sou indigno destes montes e destes campanários,
indigno de uma noite semeada de estrelas
e indigno do atalho de cada mendigo
que termina em tristeza.
Sou indigno desta erva, que os membros me refresca,
dos troncos das árvores, que o norte
leva à sua crua enfermidade com a chuva
e as sombras dos rapazes,
que fazem ao mosto o seu sacrifício de Novembro
entre os negros montes que suportam a minha efemeridade.
Sou indigno destas procissões
que gera o mês de Maio entre macieiras em flor,
do leite e do mel, da glória e da podridão
que me estão prometidas.
Sou indigno de estar entre párocos, açougueiros e negociantes,
indigno dos vaticínios destas hortas e jardins,
indigno do domingo, que vomita no azul a sua doce fumarada.
Indigno sou também das moças ao desamparo, manchadas de vermelho,
nesta paisagem milenária,
cujo pão sabe a fome e a mortos,
a vaidade e à amargura das mães
que não podem fugir ao seu tormento,
ao tormento dos esquecidos que o sol nos campos vai queimando.
Indigno sou ainda do melro, indigno do ranger da roda do moinho,
indigno faço o meu jogo nas margens do rio,
que das aldeias nada quer saber.
Sou indigno destas almas que, em nuvens e moitas,
falam umas às outras da terra em flor,
da música que o céu moribundo entoa,
dos grandes abandonos, a deslizar sobre as colinas,
procedendo, impacientes, procelosos invernos do mundo.

Thomas Bernhard, Na Terra e no Inferno, José A. Palma Caetano, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

O Juízo de John Donne sobre Shakeaspere

Se um pintor quisesse juntar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo e a membros de animais de toda a ordem aplicar plumas variegadas, de forma que terminasse em torpe e negro peixe a mulher de bela face, conteríeis vós o riso, ó meus amigos, se a ver tal espectáculo vos levassem? Pois crede-me, Pisões, em tudo a este quadro se assemelharia o livro, cujas ideias vãs se concebessem quais sonhos de doente, de tal modo que nem pés nem cabeça pudessem constituir uma só forma. Direis vós que «a pintores e poetas igualmente se concedeu, desde sempre, a faculdade de tudo ousar». Bem o sabemos e, por isso, tal liberdade procuramos e reciprocamente a concedemos, sem permitir, contudo, que à mansidão se junte a ferocidade e que associem serpentes a aves e cordeiros a tigres. (...)
Em suma, faz tudo o que quiseres, contanto que o faças com simplicidade e unidade.

Horácio, Arte Poética, R. M. Rosado Fernandes (trad.), Editorial Inquérito, 2001.

É neste tom que abre o poema em verso que Horácio dedicou, possivelmente numa data posterior a 14, 13 a.C., aos Pisões, de tal forma que a sua Arte Poética é também conhecida como Epístola aos Pisões.
Enquanto na Poética, esse bloco de notas de Aristóteles, encontramos uma reflexão sobretudo teórica, virada para questões de teorização dos géneros e relativas a uma problemática das artes miméticas (de um modo muito geral), a Arte Poética é bastante prática: como escrever isto ou aquilo ou como não o escrever. De certa forma, pode-se dizer que é uma espécie de curso de Práticas de Escrita mas escrito por um dos maiores poetas da literatura latina e um dos mais influentes a moldar o imaginário poético da literatura ocidental.
Para mim existem três livros acerca de teorização poética na antiguidade que devem forçosamente ser lidos por alguém que se interesse por literatura ou por escrita: Arte Poética de Horácio, Poética de Aristóteles e o Íon de Platão. Podemos sempre querer escapar a tudo o que eles lá dizem, mas devemos conhecer estas obras, porque Platão, Aristóteles, Horácio fixaram e debateram as mesmas questões em relação à literatura que ainda hoje são debatidas por nós. Fizeram-no com uma acuidade notável e muita da nossa problematização (e dos nossos problemas) em relação à literatura são herdeiros deles: o que diferencia tragédia de épica? como , admitindo que existe uma fórmula, se deve escrever poesia e o que é poesia? há um poder pernicioso que torna a literatura «menos recomendável»? os poetas devem ser proscritos, banidos (aqui já estamos sobretudo no domínio da República mas também do Íon, que é dos três livros que indico o meu favorito) da cidade, por uma influência perniciosa que com as suas obras possam exercer? por que é que os homens apreciam tanto as artes miméticas? por que é que gostam de ver imitações de sofrimento?
Estas perguntas, que tipos como Platão, Horácio, Aristóteles colocaram, acabaram por nomear, delimitar e fixar o campo do nosso fascínio pela literatura, em toda a extensão do seu poder e influência. Definiram-na e fizeram dela uma arte. E não foi uma definição pacífica e regular, porque os homens e as suas paixões são sempre os mesmos, variando algumas condições consoante a época.
A estes três livros, de modo a traçar a influência e a história da discussão teórica da literatura na antiguidade, eu juntaria mais alguns, que ajudam a colocar a questão em perspectiva: alguns livros da República (de Platão), a Retórica (de Aristóteles, que detém o recorde de absoluto de livro-mais-escruciante-que-alguma-vez-tive-de-ler-na-vida) e creio que, ainda que para alguns um pouco à margem, entra nesta discussão o Do Sublime de Longino.
Não sou daquelas pessoas que têm a ilusão de que não se pode discutir literatura sem ler isto. Tal como não me conto entre aquelas pessoas que acreditam que é necessário ler Homero para escrever excelente poesia, embora ache que ajuda. Mas estas obras, de nomes tão pesados como Platão, Aristóteles, Horácio, Longino, ajudaram a explicar e a moldar o fascínio dos homens pela literatura. Ao nomeá-lo, criaram-no e ajudam-nos, hoje em dia, a saber o que estamos a discutir, quando discutimos uma fronteira de género ou se tal ou tal peça é uma tragédia ou uma comédia. Toda a literatura é um movimento de continuidade (mesmo onde há ruptura) e o mesmo sucede com a teoria literária. O romance foi durante séculos um género «proscrito», «novo», porque Aristóteles não o contemplou na sua teorização (à data o romance não existia).
Por vezes, sinto uma imensa curiosidade em saber o que ele teria escrito acerca do romance, trata-se, um pouco, do mesmo mecanismo que Borge nomeia, ao aludir à curiosidade que sentia em saber o juízo de John Donne sobre Shakespeare.

The Storm

Miles off, a storm breaks. It ripples to our room.
You look up into the light so it catches one side
Of your face, your tight mouth, your startled eye.
You turn to me and when I call you come
Over and kneel beside me, wanting me to take
Your head between my hands as if it were
A delicate bowl that the storm might break.
You want me to get between you and the brute thunder.
Settling on your flesh my great hands stir,
Pulse on you and then, wondering how to do it, grip.
The storm rolls through me as your mouth opens.

Ian Hamilton, Cinquenta Poemas, Nuno Vidal (Trad.), Livros Cotovia, 1995.

Este livro ficou esquecido na minha mesa de trabalho, como hoje não é dia de trabalhar na biblioteca, torno a encontrá-lo onde o deixei, ou seja entre o Thomas Bernhard e o Le Grand Bailly (Dictionnaire de Grec-Français). Vou arrumá-lo na estante, mas antes disso torno a folheá-lo.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Terminar o Dia


Desligar o computador. Depois ir terminar o dia. A música chama-se Seven Day Mile e é uma versão dela que toca no final do primeiro episódio da sexta série de House MD, versão dos The Frames.

O Simples Facto de S. Paulo Citar Eurípides

O simples facto de S. Paulo citar Eurípides mostra que era um homem de cultura livresca, quase a antítese do homem vindo de Nazaré, que o apóstolo transmutará em Cristo. Raras são as personagens histórias - lembramo-nos de Marx e de Lenine - capazes de rivalizar com a mestria da propaganda paulista, no sentido simultaneamente instrumental, didáctico e etimológico de propaganda pedagógica, ou igualá-la na intuição que tem de que os textos escritos podem transformar a condição humana.

George Steiner in O Silêncio dos Livros, seguido de: Esse Vício Ainda Impune, George Steiner e Michel Crépu (auts.), Gradiva, 2006.

Em relação a este livro, nunca consegui perceber se gosto mais do primeiro ou do segundo ensaio (sublinhado meu). O ensaio foi publicado originalmente na revista Esprit (em Janeiro de 2005) com o título «Ódio ao Livro».
Pergunto-me quando se publicará entre nós um outro ensaio de Steiner, originalmente publicado na Samalgundi, Ten (Possible) Reasons for the Sadness of Thought, se, tal como eu, tiverem um carácter demasiado impaciente para esperar, é este que aqui está publicado, embora sem qualquer indicação de autor (pelo menos visível). Não é preciso dizer que vale a pena.
Um blogue que começa bem. Com Calvino.

Um documentário sobre Kertész


Em 1983 a BBC fez um programa sobre um dos mais geniais fotógrafos de todos os tempos. A «Parte II» está aqui. Felizmente existe o Youtube, que nos deixa ver estas coisas.

Diante da Aldeia

Os rostos que emergem dos campos perguntam-me
pelo regresso.
O meu grito não perturba a andorinha
pousada no ramo partido. Sombria
é a minha alma, que o vento impele
para o mar, a fim de cheirar o sal da terra.
A minha lenda é mortal.
Debaixo da árvore, que é semelhante ao meu irmão,
conto as estrelas dos mareantes.

Thomas Bernhard, Na Terra e no Inferno, José A. Palma Caetano, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

Bolor

Os versos
que te digam
a pobreza que somos
o bolor
nas paredes
deste quarto deserto
os rostos a apagar-se
no frémito
do espelho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003

Vento

As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão;
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Para acabar bem um dia que nunca mais acaba

Barra de Aveiro: Um Agosto

Começam a morrer os últimos pianos do século
arrefece o estio na cabeça
agora almoço e já cai o crepúsculo
esse que me fugia por aí esse tempo
o mesmo rio não se contempla duas vezes no rosto do homem
debruçado fumando no molhe do marégrafo
a mesma Barra de Aveiro não é a mesma
o engenheiro Oudinot sentiria um aperto de coração idêntico

tive todas as alegrias e melancolias assim dito por alto
próprias das idades sucessivas mas nenhuma
que iludisse deveras a velha constatação jónia
cada gesto de mão é sempre um outro

nem sou sequer quem muda mas um outro

Fernando Assis Pacheco, A Musa Irregular, Assírio e Alvim, Lisboa, 2006

Les Fleurs du Mal, Baudelaire






















Por vezes temos histórias com livros que nunca lemos. É o meu caso com As Flores do Mal de Baudelaire. Comprei este livro em francês, exactamente na edição cuja imagem está representada acima. Tem andado de estante em estante e de mesa em mesa (entre mudanças de casa) há três ou quatro anos. Na altura em que o adquiri achava que sabia suficiente francês para o ler no original. Mas o livro de Baudelaire ensinou-me uma lição que me deixou melindrada. O meu francês chega para ler, digamos, André Gide (La Symphonie Pastoral, por exemplo) mas não Baudelaire. Não é que seja particularmente difícil, é que há certa poesia que exige uma concentração e uma disponibilidade que a prosa não pede, e uma leitura feita numa língua que não dominamos redobra a dificuldade. (Eu pertenço a uma geração que domina a língua inglesa mas na qual o conhecimento do francês tende a tornar-se bastante residual, e é pena.)
Hoje, três ou quatro anos depois de ter comprado Les Fleurs du Mal, fui até à biblioteca e requisitei a edição da Assírio e Alvim. Durante muito tempo procurei adquirir esta edição, nunca a encontrei e creio que está esgotada (em 1992, quando esta tradução saiu eu tinha seis anos, estava a aprender a ler e ainda não me interessava por Baudelaire).
Finalmente vou ler Les Fleurs du Mal.

A Noite

A noite treme diante da janela e quer trespassar-me o coração,
gritando os nomes que eu infamei.
Oh, esses nomes que em cada cruz estão gravados e conspurcam o meu
trabalho diário.

Sei que me hei-de levantar e destruir a minha cama
e com a cama os sonhos que cresceram no meu cabelo para setenta anos.

Hei-de levantar-me e recitar o meu verso
para os mendigos que vivem de abandono,
nas ruas das grandes lojas. Nas ruas
em que as mulheres enganam a sua carne por um dia de feira.
Essas ruas que foram feitas com o trigo do meu pai
e com a pobreza da minha mãe,
que se cortou no braço com uma foice e parecia então
o próprio sol

Oh, a noite que me trespassa o coração
com todos os que eu infamei...

Thomas Bernhard, Na Terra e no Inferno, José A. Palma Caetano, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

«Segundo as Leis da Vida e do Espírito»

«Não há homem, por muito sábio que seja», disse-me, «que em determinada época da sua juventude não tenha pronunciado palavras, ou até levado uma vida, cuja a recordação não seja desagradável e que desejaria que estivesse abolida. Mas de modo algum o deve lamentar, porque não pode estar seguro de se ter tornado um sábio, na medida em que tal é possível, se não passou por todas as incarnações ridículas ou odiosas que devem preceder esta última incarnação. Eu sei que há jovens, filhos e netos de pessoas distintas, a quem os seus preceptores ensinaram a nobreza de espírito e a elegância moral desde o colégio. Não terão provavelmente nada a cortar da sua vida, poderiam publicar e assinar tudo o que disseram, mas são uns pobres espíritos, descendentes sem força de doutrinadores, e cuja sabedoria é negativa e estéril. A sabedoria não se recebe, todos temos que a descobrir por nós mesmos, depois de um trajecto que ninguém pode fazer por nós, que ninguém nos pode poupar, porque é um ponto de vista sobre as coisas. As vidas que você admira, as atitudes que considera nobres, não foram preparadas pelo pai de família ou pelo preceptor, foram antecedidas de começos bem diferentes, influenciadas que foram pelo que de mal ou de banalidade reinava em torno delas. Representam um combate e uma vitória. Compreende que a imagem daquilo que fomos num período inicial já não seja reconhecível e seja em qualquer caso desagradável. Não deve, porém, ser renegada, porque é um testemunho de que realmente vivemos, de que foi segundo as leis da vida e do espírito que extraímos, dos elementos comuns da vida, da vida dos ateliers, dos meios artísticos, tratando-se de um pintor, alguma coisa que os ultrapassa.»

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: À Sombra das Raparigas em Flor, vol. II, Pedro Tamen (trad.), Relógio d'Água, 2003 (2ª ed.).

Janis Joplin, «I need a Man to Love»


Mais uma música da banda sonora deste filme.

«Ordet» de Carl Th. Dreyer, 1955



















Quando quiserem ver um filme que seja um milagre (não no sentido figurado, literalmente, e tenham em mente que filmar um milagre sem dar cabo de um filme já constitui por si só um milagre) este é o filme a ver: Ordet (A Palavra).

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Fragmentos de uma Cidade Moribunda

III
As luzes vibram cor como carne vermelha nas ruas da meia-noite
e, no entanto, a minha linguagem é a linguagem do vento,
que sopra sobre as pastagens como no primeiro dia
e traz o pavor dos desertos e a saudade que as palmeiras ébrias
têm dos campos do meu pai.

V
Não os chamei, mas eles tornam sombria a minha voz.
Todos, porém, devem saber que eu já não sei rezar,
porque me aviltei num dia de Agosto de 1952,
todos devem saber que eu estou na minha carne sufocado.

VI
Ninguém ouve a minha voz, que me há-de aniquilar.
Eles hão-de cercar a minha casa e entrar pela minha porta e chamar o
----------------------------------------------------------------nome
por que eu dou.
Eles hão-de esquecer que eu também sou o criador da erva
e o conservador do leite e do mel.
Num recanto da tristeza me hão-de bater e assassinar,
quando a neve e o vento e a Primavera chegarem tarde demais...

Thomas Bernhard, Na Terra e no Inferno, José A. Palma Caetano, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

Ainda não terminei este livro (comecei a lê-lo há pouco e estou na página 93). Há uma força nestes poemas que eu não consigo explicar, uma força constante que tem qualquer coisa de demoníaco (no sentido grego do termo), uma energia soturna que não abranda de verso para verso e que confere uma beleza muito própria a cada poema. Há imagens muito sombrias (por algum motivo o livro se chama Na Terra e no Inferno) que contribuem para criar uma beleza sólida, inabalável. Mas de vez em quando há qualquer coisa que tende para (e cria) uma espécie de luminosidade. Dos melhores livros de poesia que leio em muito tempo (e os que tenho lido são muito bons).

«Raindrops», uma cena de «Butch Cassidy and the Sundance Kid» de George Roy Hill, 1969

Continua a voltar (Επεστρεφε)

Continua a voltar frequentemente e a tomar-me,
sensação amada continua a voltar e a tomar-me -
quando acorda a memória do corpo,
e desejo antigo volta a passar no sangue;
quando os lábios e a pele se lembram,
e sentem as mãos como se tocassem de novo.

Continua a voltar frequentemente e a tomar-me à noite,
quando os lábios e a pele se lembram...

Konstandinos Kavafis, Os Poemas, Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis (trad.), Relógio d' Água, 2005.

(Kavafis dá-me vontade de ir aprender grego [moderno] só para o poder ler no original. É daqueles livros que se lê uma vez e quando passamos por ele na estante o abrimos outra vez só para tornar a ler alguma coisa, aleatoriamente. Hoje saíu-me este poema.)

Para acordar


Uma música da banda sonora do filme de ontem.

Um Mito de Devoção

Decidido a amar aquela rapariga,
Hades construiu-lhe um duplicado da terra,
tudo igual, até o prado,
mas com uma cama no meio.

Tudo igual, incluindo a luz do sol,
pois não seria fácil a uma rapariga nova
passar tão bruscamente da luz intensa à completa escuridão.

Aos poucos, pensou ele, faço entrar a noite,
primeiro as sombras das folhas agitadas.
Depois a lua, depois as estrelas. Depois sem lua, sem estrelas.
Que Perséfone se habitue lentamente ao escuro.
No fim, pensou ele, ser-lhe-á reconfortante.

Uma réplica da terra,
mas com uma excepção: amor.
Não é amor o que toda a gente deseja?

Ele esperou muitos anos,
construiu um mundo, observou
Perséfone no prado.
Perséfone, que amava os cheiros, os sabores.
Quem tem um apetite, pensou ele,
tem todos.

Não é o que toda a gente deseja sentir à noite -
o corpo amado, bússola, estrela polar,
ouvir a respiração tranquila, que significa
estou vivo, que significa ainda
estás vivo, porque me escutas,

porque estás aqui comigo. E quando um se volta,
volta-se o outro também -

Era o que ele pensava, o senhor das trevas,
ao contemplar o mundo que
construíra para Perséfone. Nunca lhe ocorreu
que já nada haveria ali para cheirar,
muito menos para comer.

Culpa? Terror? Medo de amar?
Nada disto podia ele conceber;
nenhum amante o concebe.

Ele sonha, pergunta-se que nome há-de pôr àquele lugar.
Primeiro pensa: O Novo Inferno. Depois: O Jardim.
Finalmente decide chamar-lhe
A Mocidade de Perséfone.

Uma luz ténue ergue-se acima do prado liso,
por detrás da cama. Ele toma-a nos braços.
Deseja dizer-lhe amo-te, nada te ferirá

mas compreende
que é mentira, e acaba por dizer
estás morta, nada te ferirá
o que lhe parece
um começo mais auspicioso, mais verdadeiro.

Louise Glück, Telhados de Vidro, nº 12, Averno, Rui Pires Cabral (trad.), Maio de 2009.

domingo, 20 de setembro de 2009

The Visit

They've let me walk with you
As far as this high wall. The placid smiles
Of our new friends, the old incurables,
Pursue us lovingly.
Their boyish, suntanned heads,
Their ancient arms
Outstretched, belong to you.

Although your head still burns
Your hands remember me.

Ian Hamilton, Cinquenta Poemas, Nuno Vidal (Trad.), Livros Cotovia, 1995.

Uma fala de «The Dreamers» de Bernardo Bertolucci, 2003


















[Mathew] The first time I ever saw a movie at the Cinematheque Française... I thought only the French... would house a cinema inside a palace. The movie was Sam Fuller's 'Shock Corridor'. Its' images were so powerful, it was like being hypnotised. I was 20 years old. It was the late 60s. I'd come to Paris for a year to study French. Here I got my real education. I became a member of what was kind of a freemasonry. The freemasonry of cinephiles. What we'd call 'film buffs'. I was one of the insatiables... the ones you'd always find sitting closest to the screen. Why do we sit so close? Maybe it was because we wanted to receive the images first, when they were still new, still fresh, before they cleared the hurdles of the rows behind us. Before they had been relayed back from row to row, spectator to spectator, until, worn out, second-hand, the size of a postage stamp, it returned to the projectionist's cabin. Doctor, I'm not nuts, I'm here for the paper! Maybe, too, the screen really was a screen. It screened us from the world.

Este é um filme muito explícito e muito cruel. Pelo meio há cenas muito belas. Acho que vale a pena ver.

Fui (Επηγα)

Não me manietei. Dei-me totalmente e fui.
Aos deleites, que metade reais,
metade volteantes dentro da minha cabeça estavam,
fui para dentro da noite iluminada.
E bebi dos vinhos fortes, tal
como bebem os denodados do prazer.


Konstandinos Kavafis, Os Poemas, Relógio d’Água, Lisboa, 2005 (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis).

Uma fotografia de Simona Ghizzoni (III)





















É uma rapariga a ler, sozinha num quarto (?), com um livro iluminado apenas pela luz (que se reflecte ou vem?) da janela. Há qualquer coisa de contraditório na imagem: a pouca concentração que estar a ler de pé deveria impor parece-me ser contrariada, ao mesmo tempo, pelo nota intimista dada pela pouca luz e pelo ar concentrado (que imagino) da rapariga.

The Recruits

"Nothing moves," you say, and stare across the lawn.
"The sun is everywhere. There will be no breeze."
Birds line the gutters, and from our window
We see cats file across five gardens
To the shade and stand there, watching the sky.
You cry again: "They know."
The dead flies pile up on the window sill.
You shudder as the silence darkens, till
It's perfect night in you. And then you scream.

Ian Hamilton, Cinquenta Poemas, Nuno Vidal (Trad.), Livros Cotovia, 1995.

Tenho mesmo de saudar o novo blogue destes senhores

Apesar de ainda ser muito recente e de saber que quem lá escreve é gente muito ocupada, não duvido das capacidades destes senhores. Esperemos que venha a durar. Eles prometem, veremos se cumprem. Aqui.

Outra fotografia de Simona Ghizzoni



















Os pés, a forma como eles encaixam na pedra, o vestido vermelho da mulher em contraste com o chão escuro, a soma de tudo isto faz com que esta pareça uma fotografia tirada a um sonho.

Remember this

You won't remember this, but I will:
A gradually tightening avenue of trees
And where it locks
What seems from here the most yearningly delicate
Intrusion of white leaves
May yet blacken the unclouded pool of sun
That summons you.
......................................Keep going
Even though I mean to stay; keep going
Even though I can't any more imagine
What I'll find most hard to bear
On the way back from here,
On the way home
To where we first vowed we'd try again to say:
You won't remember this.

Ian Hamilton, Cinquenta Poemas, Nuno Vidal (Trad.), Livros Cotovia, 1995.

Midwinter

Entranced, you turn again and over there
It is white also. Rectangular white lawns
For miles, white walls between them. Snow.
You close your eyes. The terrible changes.

White movements in the corner of your room.
Between your hands, the flowers of your quilt
Are stormed. Dark shadow smudge
Their faded, impossible colours, but won't settle.

You can hear the ice take hold.
Along the street
The yellow drifts, cleansed by a minute's fall,
Wait to be fouled again. Your final breath
Is in the air, pure white, and moving fast.

Ian Hamilton, Cinquenta Poemas, Nuno Vidal (Trad.), Livros Cotovia, 1995.

Não há risco

Como um amigo meu explicava, é à vontadinha. Na quinta-feira comprei na livraria da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (famosa por nunca ter nada desde que nós andemos à procura de alguma coisa) os Collected Poems de Allen Ginsberg (em edição da Harper) e os Cinquenta Poemas de Ian Hamilton (Livros Cotovia).
Seguindo o itinerário lógico, dirigi-me da livraria ao bar para ir beber um café antes de voltar para a biblioteca. Como os livros não cabiam dentro da mochila, pousei-os em cima da mesa. Encontro uns colegas e pomo-nos à conversa. Saio com eles, e quando estou já a chegar à biblioteca, percebo que não tenho os livros comigo. Entrei em pânico. Enquanto mentalmente me insulto, volto atrás, penso, para verificar o óbvio: os livros teriam desaparecido. Qual quê!
Estão lá, sozinhos, com uma turba indiferente a jogar às cartas sentada ao lado deles. Fiquei mesmo contente. Mas ao pegar neles, senti uma certa melancolia. Não é que não haja «ladrões» de ocasião na Faculdade de Letras, já me roubaram algumas coisas: barras de cereais, lápis, um caderno novo, tudo objectos deixados em cima da mesa biblioteca enquanto vou lá abaixo beber um café. Mas nunca livros. Isto sucede porque a maior parte dos estudantes da Faculdade de Letras não quer saber de livros para nada. Tenho a certeza que não conheci mais de quinze leitores (não contando com professores) a sério em cinco anos de estudante (dois de investigadora) nesta faculdade.
Até me podiam ter levado o Ginsberg e o Hamilton, eu ia ficar chateada, claro, mas ia compreender. Isto mostra que para a maior parte dos meus colegas o livro é uma coisa inútil, não uma tentação. Penso antes que tive sorte, nenhum dos quinze leitores que conheço se sentou por ali àquela hora. Se não agora não me estava para aqui a lamentar de ninguém me ter roubado os livros, mas sim a escrever uma invectiva contra o ladrão em causa. E talvez fosse mais divertido.

sábado, 19 de setembro de 2009

Muros

Sem introspecção, sem mágoa, sem pejo
grandes e altos em redor de mim construíram muros.

E fico e desespero agora no que vejo.
Não penso noutra coisa: na minha mente esta sina rasga furos;

porque tantas coisas havia lá fora a fazer por ti.
Quando construíram os muros como é que não reparei, ah.

Mas nunca o som dos pedreiros ou estrondo ouvi.
Imperceptivelmente cerraram-me do mundo que está lá.

Konstandinos Kavafis, Os Poemas, Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis (trad.), Relógio d' Água, 2005.

«In Between (Self Portrait #10)» de Simona Ghizzoni























Esta fotografia foi tirada em 2006 por Simona Ghizzoni e é um auto-retrato (In Between [Self Portrait #10]). Simona Ghizzoni é originária de Reggio Emilia (Itália) e nasceu em 1977. Entre os vários prémios que tem vindo a vencer como fotógrafa destaca-se um terceiro prémio numa das categorias do World Press Photo (em 2008). Esta não é a minha fotografia favorita dela, mas ainda assim é uma fotografia fantástica: alguém que se disfarça a si próprio no meio de uma imensa solidão.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

II

The night is of the color
Of a woman's arm:
Night, the female,
Obscure,
Fragrant and supple,
Conceals herself.
A pool shines,
Like a bracelet
Shaken in a dance.

III
I measure myself
Against a tall tree.
I find that I am much taller,
For I reach right up to the sun,
With my eye;
And I reach to the shore of the sea
With my ear.
Neverthless, I dislike
The way ants crawl
In and out of my shadow.

IV

When my dream was near the moon,
The white folds of its grown
Filled with yellow light.
The soles of its feet
Grew red.
Its hair filled
With certain blue crystallizations
From stars,
Not far off.

Wallace Stevens, Ficção Suprema: Poemas, Luísa Maria Campos (tradução e prefácio), Assírio & Alvim, 1991.

Blue in Green, Miles Davis

VI

Rationalists, wearing square hats,
Think, in square rooms,
Looking at the floor,
Looking at the ceiling.
They confine themselves
To right-angled triangles.
If they tried rhomboids,
Cones, waving lines, ellipses -
As for exemple, the ellipse of the half-moon -
Rationalists would wear sombreros.


Wallace Stevens, Ficção Suprema: Poemas, Luísa Maria Campos (tradução e prefácio), Assírio & Alvim, 1991.

Theory

I am what is around me.

Women understand this.
One is not duchess
A hundred yards from a carriage.
These, then, are portraits:
A black vestibule;
A high bed sheltered by curtains.

These are merely instances.


Wallace Stevens, Ficção Suprema: Poemas, Luísa Maria Campos (tradução e prefácio), Assírio & Alvim, 1991.

«En Lektion i Kärlek» de Ingmar Bergman, 1954


















Às vezes um realizador filma uma história e depois o seu contrário. Acho que Bergman fez uma coisa semelhante ao filmar Mónica e o Desejo (1953) e, em seguida, um filme com um título que poderia rivalizar com os dos livros de D. H. Lawrence: En Lektion i Kärlek, ou seja, Uma Lição de Amor. Onde Mónica e o Desejo é uma história de inconstância, e, consequentemente, de infelicidade, Uma Lição de Amor conta, em tom ligeiro, mas cum grano salis, uma história de infidelidade conjugal e a forma como esta é expiada e, eventualmente, perdoada. É um filme que nos faz perceber que a infidelidade pode por vezes nascer de uma constância de (desejo e) carácter.
En Lektion i Kärlek terá talvez menos qualidade e beleza do que Morangos Silvestres (para muitos o melhor filme de Bergman e para mim, de tudo o que até agora vi dele, também), não tem um argumento com a beleza de A Fonte da Virgem (mais um título que faria inveja a Lawrence), que é um dos argumentos mais bem escritos (mais belos) que me lembro de ver num filme. E conta uma história que é aparentemente bastante banal: um homem e uma mulher estão casados há alguns anos, têm (se a memória não me falha, apenas) uma filha (a Mónica de Mónica e o Desejo, Harriet Andersson) e o marido acaba por trair a esposa com uma paciente (o senhor era médico). A esposa descobre e resolve deixá-lo. O filme é contado em tom de comédia, mas Bergman faz, com este seu conto narrado em tom ligeiro, algo mesmo muito especial: filmar a felicidade do ângulo mais difícil.
Para mim o ângulo mais difícil para se filmar a felicidade é a partir de representações do quotidiano, a felicidade prolongada no tempo e sendo a cada momento testada no convívio muito próximo de duas pessoas (que é isso que é, regra geral, um casamento). Quando a confiança que sustenta esta felicidade é traída, é possível recuperá-la? Bergman vai demonstrar que sim. Que há laços entre as pessoas que estão para lá do efémero e das circunstâncias. E é um filme que nos faz bem ver, com dois dos meus actores (de Bergman) favoritos (Eva Dahlbeck e Gunnar Björnstrand, que Bergman já tinha juntado em 1952 para filmar Segredos de Mulheres e que tornaria a juntar em 1955, em Sorrisos de uma Noite de Verão).
Embora o realizador nos faça saber no princípio do filme que estamos perante uma comédia, sentimos, ao longo de noventa e dois minutos, o quão frágil é a linha que separa o cómico do trágico e Bergman explora muito bem os pontos de tensão desse equilíbrio. E talvez seja isso o que torna este filme tão bom. Se alguma vez virem o filme, a cena genial, para mim, é a da «mulher mais bonita da Dinamarca».

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

The Snow Man

One must have a mind of winter
To regard the frost and the boughs
Of the pine-trees crusted with snow;

And have been cold a long time
To behold the junipers shagged with ice,
The spruces rough in the distant glitter

Of the January sun; and not to think
Of any misery in the sound of the wind,
In the sound of a few leaves,

Which is the sound of the land
Full of the same wind
That is blowing in the same bareplace

For the listener, who listens in the snow,
And, nothing himself, beholds
Nothing that is not there and the nothing that is.

Wallace Stevens, Ficção Suprema: Poemas, Luísa Maria Campos (tradução e prefácio), Assírio & Alvim, 1991.

The Heron


























Esta fotografia intitula-se The Heron e foi tirada a 26 de Abril de 1969, por André Kertész. Lembra-me La Reprodution Interdite de Magritte (1937).

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

um poema de Rui Pedro Gonçalves

Atalhei a noite,
Tentei chegar ao trilho mais certo dos teus passos
Caminhando no cerejal.
A velha casa era agora um borrão no crepúsculo,
Lembrava-me a fúria das crianças em louca correria.

Percorri, às apalpadelas, o quarto escuro, produzido pela idade
E foi aí que pedi a Purviance um copo de água.
Ela adiantara um torrão de açucar para que a memória
Não fosse um frango fugido do galinheiro.

Alimentara-me de tudo isso, e nem o teu corpo encontrara
Para que a aventura fosse mais doce,
Mais secreta de certezas.
Sentira-me envergonhado por ser surpreendido
Quando te procurara
Tacteando uma imagem de ti.

Olhei pela janela.
Vi os ciganos em viagem em direcção ao sul.
Não sei se ias.
Não sei.

Eu fui.

Rui Pedro Gonçalves, in Telhados de Vidro nº12, Averno, Lisboa, Maio de 2009

The Oldest Child

The night still frightens you.
You know it is interminable
And of vast, unimaginable dimensions.
"That's because His insomnia his permanent,"
You've read some mystic say.
Is it the point of His schoolboy's compass
That pricks your heart?

Somewhere perhaps the lovers lie
Under the dark cypress trees,
Trembling with hapiness,
But here there's only your beard of many days
And a night moth shivering
Under your hand pressed against your chest.

Oldest child, Prometheus
Of some cold, cold fire you can't even name
For which you're serving slow time
With that night moth's terror for company.

Charles Simic, Previsão de Tempo para Utopia e Arredores, José Alberto Oliveira (selecção e tradução), Assírio e Alvim, 2002.

Charles Simic, «A Century of Gathering Clouds»

A century of gathering clouds. Ghost ships arriving and leaving. The sea deeper, vaster. The parrot in the bamboo cage spoke several languages. The captain in the daguerreotype had his cheeks painted red. He brought a half-naked girl from the tropics whom they kept chained in the attic even after his death. At night she made sounds that could have been singing. The captain told of a race of men without mouths who subsisted only on scents of flowers. This made his wife and mother say a prayer for the salvation of all the unbaptized souls. Once, however, we caught the captain taking off his beard. It was false! Under it he had another beard equally absurd looking.
It was the age of busy widows' walks. The dead languages of love were still in use, but also much silence, much soundless screaming at the top of the lungs.

Charles Simic, Previsão de Tempo para Utopia e Arredores, José Alberto Oliveira (selecção e tradução), Assírio e Alvim, 2002.


***

Requisitei este livro hoje, na biblioteca da faculdade, não estava disponível na livraria e a requisição resolve, pelo menos momentaneamente, a minha curiosidade de ler alguma coisa deste poeta. Sei que há um outro livro dele disponível na referida biblioteca. (Chama-se A Wedding in Hell de 1994, tem por cota 821.111(73) SIM,C-CAM , mas não encontrei o livro na estante, embora não haja indicação de estar requisitado.). Na sua «Introdução», José Alberto Oliveira escreveu:

Tentarei, brevemente, distinguir alguns traços da obra poética de Simic: a ironia e o sentido de humor; a construção de poemas com o fôlego da melhor ficção e o rigor do verso; a convicção de que a poesia é também uma conversa inteligente e inteligível, formulando perguntas que têm como resposta o silêncio - o silêncio mais profundo, como convite ao leitor para sorrir e estremecer.

Pelo Menos o Convívio

E uma vez que a raça de Combray, a raça de onde saíram seres absolutamente intactos como a minha avó e a minha mãe, parece quase extinta, e como pouco mais tenho a escolher que entre brutamontes honestos, insensíveis e leais, e em quem o mero som da voz bem depressa mostra que em nada se preocupam com a nossa vida, e uma outra espécie de homens que, enquanto estão ao pé de nós, nos compreendem, nos amam, se enternecem até ao pranto, e se desforram algumas horas mais tarde fazendo uma cruel zombaria à nossa custa, mas que voltam para nós sempre tão compreensivos , tão sedutores, tão momentaneamente assimilados a nós - acho que é desta última espécie de homens que prefiro, se não o valor moral, pelo menos o convívio.

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: À Sombra das Raparigas em Flor, vol. II, Pedro Tamen (trad.), Relógio d'Água, 2003 (2ª ed.).