quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Ghismonda e Guiscardo, «Decameron»

Boccaccio foi um daqueles escritores que se viu persuadido pelo pai a estudar direito, embora o seu principal interesse fossem as humanidades. O Decameron (dez histórias contadas em dez jornadas, o que perfaz um número de cem histórias) é em muitos aspectos uma síntese da cultura e personalidade de Boccaccio mas também reflecte um mundo que está em transição de um sistema imperialista e feudal para um mundo capitalista, impulsionado por uma burguesia poderosa. Boccaccio, devia ser, parece-me, um homem com uma daquelas alegrias de viver inquietas, que levam imenso tempo a esgotar-se, e que deve, noção que está sempre no horizonte das páginas do Decameron, ter cultivado aquela máxima horaciana de que é necessário colher o instante (carpe diem, gozar o dia). A sua obra é, em muitos aspectos, um momento fundador da narrativa ocidental.
Começa-se com a afirmação bem-humorada de que este livro é um Principe Galeotto, numa alusão a um episódio do canto V do Inferno (de Dante) em que se alude ao poder pernicioso da literatura. A obra começa, portanto, por aludir a esse tabu: este é um livro que pode exercer uma má influência sobre quem o ler.
Se realmente a maior parte das histórias são sobre mulheres adúlteras, homens que traem as suas mulheres, clérigos que não conseguem evitar ceder às suas paixões, enfim, um verdadeiro desfilar de inconstâncias, de carácter e/ou amorosas, há depois algumas excepções. Vou-vos falar de uma das minhas favoritas: a Novela I, da IV Jornada.
Esta novela conta em poucas páginas (já não me lembro quantas: dez, vinte?) a história de Ghismonda e Guiscardo. Ghismonda é a única filha de Tancredo, príncipe de Salerno. Casa-se, enviúva precocemente e regressa à casa paterna. Ghismonda é, de certa forma, uma mulher excepcional no Decameron: ela é de uma inteligência, firmeza e constância a toda a prova.
Farta de estar sozinha, e por inteligência, determina tomar muito discretamente, entre os homens que frequentavam a corte de seu pai, um amante. Mas a sua escolha não é leviana. Ela observa-os a todos e acaba por decidir-se por Guiscardo, um vassalo de baixo nascimento mas um homem verdadeiramente excepcional, à sua maneira um Lancelot du Lac, e isto basta para descrêve-lo.
O amor que rapidamente começa a sentir por Guiscardo acaba por ser correspondido, e ela concebe um plano para que possam encontrar-se sempre, sem nunca serem descobertos, de modo a não provocar o escândalo na corte. E assim, durante muito tempo, se sucedem, para alegria de ambos, os encontros clandestinos, até que um dia, acidentalmente, são descobertos por Tancredo.
Guiscardo é preso, sucedem-se as ameaças do príncipe de Salerno, no sentido da filha negar o que fez e deixar o amante, pois trata-se de uma relação ilegítima, e pior que isso, com um homem de baixo nascimento, embora ela explique que, para ela, a nobreza de carácter se impõe à de sangue, o que é algo bastante, por assim dizer, moderno.
De Guiscardo ouvimos apenas uma frase mas não para tentar escapar à morte certa, não para se defender ou justificar. Diz ele ao seu suserano, no melhor estilo de Boccaccio: « - Que são as vossas forças ou as minhas comparadas com o amor?».
Mas Guiscardo é o cavaleiro perfeito, dele não se esperava outra coisa. O que impressiona realmente, é o facto de, sendo o Decameron um desfilar de mulheres inconstantes, haver nestas histórias espaço para uma mulher com a firmeza e constância de carácter de Ghismonda.
Quando expõe ao pai a sua acção (tal como Guiscardo ela não se desculpa, não se justifica, não procura o perdão) ela diz-lhe apenas que é de carne, não de pedra ou ferro, e, sendo ainda jovem, está como todos sujeita às leis da juventude.
Ghismonda é uma heroína, na velha acepção do termo e, uma vez lida, esta novela torna-se inesquecível. Se gostam de literatura, se têm alguma pretensão a alguma vez, tal como eu, aprender alguma coisa sobre literatura, sobre a sua capacidade de maravilhar, esta é a história a ler, se não no original, o que eu particularmente recomendo (é um italiano que se lê bem, mesmo para quem, como eu, só fez uma cadeira de italiano e se safa a ler esta língua com isso, com um pouco de latim e de francês, pois a graça perde-se um pouco lendo em português, na tradução de Urbano Tavares Rodrigues, da Relógio d'Água), pois além de a graça se perder um pouco, o facto é que no caso desta novela, a tradução pode induzir-nos em erros de leitura, mas mesmo assim, se não estiverem para ler em italiano, serve.
O fascínio de Boccaccio, mais do que prender-se com a noção de que o Decameron é um acumular de histórias picantes, licenciosas, é o facto de, como muito bem se explicou algures (a formulação não é minha), nesta obra, entre muitas outras coisas, se entender o amor como uma força instintiva mas, ao mesmo tempo, como parte do património espiritual do indivíduo.

3 comentários:

  1. Curiosamente antes de sair de Portugal passei umas vistas de olhos por exactamente essa versão, com o plano de quando aqui chegasse a ler "bilinguamente", mas na altura o preço (€40, se bem me recordo?), demoveu-me. Ainda bem, porque quando aqui cheguei pude confirmar que de facto tens razão, não só a graça se perderia por certo como o italiano é legibilis (legendusque). E descobri há aliás poucos dias que o Pasolini o adaptou para o cinema, mas esse ainda não vi.

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  2. Há quem goste muito da adaptação do Pasolini, eu também nunca vi, há quem deteste. O melhor mesmo é ver.

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