segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Um Mito de Devoção

Decidido a amar aquela rapariga,
Hades construiu-lhe um duplicado da terra,
tudo igual, até o prado,
mas com uma cama no meio.

Tudo igual, incluindo a luz do sol,
pois não seria fácil a uma rapariga nova
passar tão bruscamente da luz intensa à completa escuridão.

Aos poucos, pensou ele, faço entrar a noite,
primeiro as sombras das folhas agitadas.
Depois a lua, depois as estrelas. Depois sem lua, sem estrelas.
Que Perséfone se habitue lentamente ao escuro.
No fim, pensou ele, ser-lhe-á reconfortante.

Uma réplica da terra,
mas com uma excepção: amor.
Não é amor o que toda a gente deseja?

Ele esperou muitos anos,
construiu um mundo, observou
Perséfone no prado.
Perséfone, que amava os cheiros, os sabores.
Quem tem um apetite, pensou ele,
tem todos.

Não é o que toda a gente deseja sentir à noite -
o corpo amado, bússola, estrela polar,
ouvir a respiração tranquila, que significa
estou vivo, que significa ainda
estás vivo, porque me escutas,

porque estás aqui comigo. E quando um se volta,
volta-se o outro também -

Era o que ele pensava, o senhor das trevas,
ao contemplar o mundo que
construíra para Perséfone. Nunca lhe ocorreu
que já nada haveria ali para cheirar,
muito menos para comer.

Culpa? Terror? Medo de amar?
Nada disto podia ele conceber;
nenhum amante o concebe.

Ele sonha, pergunta-se que nome há-de pôr àquele lugar.
Primeiro pensa: O Novo Inferno. Depois: O Jardim.
Finalmente decide chamar-lhe
A Mocidade de Perséfone.

Uma luz ténue ergue-se acima do prado liso,
por detrás da cama. Ele toma-a nos braços.
Deseja dizer-lhe amo-te, nada te ferirá

mas compreende
que é mentira, e acaba por dizer
estás morta, nada te ferirá
o que lhe parece
um começo mais auspicioso, mais verdadeiro.

Louise Glück, Telhados de Vidro, nº 12, Averno, Rui Pires Cabral (trad.), Maio de 2009.

Sem comentários:

Enviar um comentário