Quando quiserem ver um filme mesmo violento, com um tipo de violência que choque moralmente (violência diferente da dos filmes de Kubrick ou de Tarantino, por exemplo), a película a ver chama-se L'Innocente e data de 1976. Trata-se do último filme de Luchino Visconti e é baseado na novela homónima de Gabriele d'Annunzio (que eu nunca li, mas para quem sinta mesmo muita curiosidade, e não possa esperar o tempo que levam a chegar os livros que estão já encomendados, está disponível aqui). Embora a novela seja de d'Annunzio, as personagens parecem-me bastante devedoras de Dostoiévsky.
O enredo parece uma plain story: aristocrata rico com mulher deslumbrante tem uma amante. Como o aristocrata é bastante impulsivo, muito permissivo em relação a ceder às suas paixões e não é temente a Deus (este pormenor não é de todo insignificante), Tulio Hermil (interpretado por Giancarlo Giannini) resolve deixar a mulher e decide fugir com a amante. Entretanto, muda de ideias, volta atrás, e decide que afinal quer ficar com a esposa.
Agora, o que Visconti não filma, mas que nos dá a entender é que Giuliana Hermil (Laura Antonelli), a esposa, se apaixonou por um escritor que frequentava a casa do cunhado (salvo o erro, esta personagem é Filippo d'Arborio). O escritor, um tipo simpático e idealista, uma daquelas figuras com uma solidez moral irrepreensível, resolve que aquele é um amor condenado e parte para as Áfricas (se a memória não me falha). O marido volta.
O problema é que a senhora entretanto ficou grávida e o marido, mais ou menos no meio de uma segunda lua de mel, percebe que não há hipótese de ser ele o pai.
De todas as possibilidades que um enredo que chega a este ponto permite, há uma que nunca consideramos como possível, mas é essa que Visconti resolve seguir.
Tulio Hermil é um homem que, não acreditando em Deus, pensa que responde pelos seus actos apenas perante si próprio, o que torna o seu horizonte moral bastante amplo (e também bastante difuso). Por outro lado, o que pode parecer um contra-senso para um tipo tão livre-pensador, é um daqueles aristocratas bastantes conservadores, para quem a ideia de o filho primogénito da sua casa não ser um seu filho natural é absolutamente intolerável. Ao contrário de Don Fabrizio (Il Gattopardo), Tulio não é um visionário e não está disposto a aceitar seja que mudança for , nem que seja para que possa ficar tudo na mesma. É uma coisa que está para lá do amor que sente pela mulher. A juntar a isto, há a passionalidade do seu carácter. Como podem ver, um tipo de personagem bastante devedora de Dostoievsky.
Tulio começa a pressionar a mulher para ela abortar. Esta, ao contrário dele, é uma mulher temente a Deus, e o facto de o amante morrer em África acaba por afastá-la completamente dessa ideia. A criança nasce. É um rapaz. Que julgam vocês que sucede?
Não vos conto o final. Mas é bastante evidente. O que choca no filme, é que, tendo em conta o desfecho, que é absolutamente horrível (filma-se o crime mais grave, crime quase com um sentido de pecado, que um homem pode cometer), é a beleza de tudo o que rodeia estas personagens: a beleza física dos actores (Giancarlo Giannini é, em minha opinião, um dos homens mais bonitos que alguma vez apareceu num ecrã), a beleza do cenário em que estas personagens se movimentam, os guarda-roupas, a música, enfim, Visconti na akmê da sua fase de esteta. Como pode o belo manter-se intacto enquanto vemos actos tão sórdidos?
Quase como se a beleza de certas cenas, a beleza das situações, daqueles que nelas figuram, fosse o contraponto ao desfecho do filme. Mas é um filme que nos faz sentir devastados. Em minha opinião, não é Visconti no seu melhor, mas, ainda assim, vale a pena ver.
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