às vezes pelo vento, outras no dorso
de vigorosas aves migratórias;
atravessei desertos, vi as praias
que a vaga névoa humana delimita;
flutuando à deriva no mar alto,
fui visitar as mais secretas ilhas.
Como um herói antigo, bem podia
debruçar-me na teia do destino
e dar-lhe a consistência das histórias;
ocorrem-me aventuras, episódios,
naufrágios casuais, duros exílios,
que na arte do verso são figuras
de alguma obscura ausência primitiva.
Suspenso de uma trave, protegido
pelas paredes mestras desta casa
erguida, como um barco, sobre abismos,
com pouco esforço poderia ter
no papel branco um novo corpo de asas,
e descansar enfim, todo coberto
por um suave manto de memórias.
Mas se vou transformar-me, não aspiro
à condição de marco funerário
ou ténue monumento de mim mesmo;
nem tenho grande pressa de lembrar
a morte mal parada deste inverno,
ratos armados espalhando a peste,
outros deixados nos carris da sorte.
Bem sei que o corpo humano é frágil, imaturo,
um tanto mole, e pouco colorido;
não tem o corte puro do besouro,
nem o jeito frugal do escaravelho;
mal chega a florescer, logo envelhece,
e o pouco que constrói cedo parece,
transfigurado em sombra, não ter sido.
Assim serei também; por mais que digam
que nesta mutação me desperdiço
e arrisco até uma burlesca queda,
eu teimo em ser humano por um dia
para que possas ver-me tal qual sou:
um grão, de fina areia, que se move
no dourado rumor da tua pele,
o breve estremecer que te percorre,
a preguiçosa vida dos sentidos;
e depois, teu igual, talvez te vença
ou me deixe vencer, e te pertença
com a vaidade que me vem de ter
o sábio coração de um aranhiço.
António Franco Alexandre, Aracne, Assírio e Alvim, 2004.
Há livros assim: não duram uma viagem Lisboa - Porto numa tarde de fim de Agosto, mas uma vez lidos nunca mais se despem.
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