quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

II.

Só a palavra nos põe em contacto com as coisas mudas. A natureza e os animais são desde logo prisioneiros de uma língua, falam e respondem a signos, mesmo quando se calam; só o homem consegue interromper, na palavra, a língua infinita da natureza e colocar-se por um instante diante das coisas mudas. A rosa informulada, a ideia da rosa, só existe para o homem.

Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, João Barrento (trad.), Livros Cotovia, 1999
[É] importante que a representação pare um instante antes da verdade; por isso, só é verdadeira a representação que representa também a distância que a separa da verdade.

Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, João Barrento (trad.), Livros Cotovia, 1999

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Acabei há pouco Ideia da Prosa, vou voltar a ler poesia. Ainda não decidi que livro. Talvez a tradução de Pedro Braga Falcão de Horácio. Ainda não a li e há muito tempo que não leio um poeta latino. Um bom regresso seria pegar num poeta tão self-reliant que um dia disse de si próprio: Exegi monumentum aere perennius.
Também me tenta a ideia de ler os Hinos Homéricos, mas esses queria lê-los em grego. (Tenho o projecto de traduzir a totalidade dos Hinos Homéricos, mesmo que entretanto apareça outra tradução por mão mais capaz que a minha. Se toda a minha biblioteca de poesia tivesse de arder para ficar reduzida a um só livro, que eu pudesse escolher, por muito dolorosa que esta ideia seja, eu sei que seria um livro de Homero, e tenho a certeza quase absoluta que quando se começasse a dissipar o fumo na estante restaria a Ilíada.)
o rapaz como o poema
atravessa a luz e a cinza
percorrendo o caminho que
até casa desce numa claridade menor
de entardecer
a sombra dá-lhe pela cintura

o rapaz caminha à margem da alegria
da tristeza
como o gato sobe à árvore mais recuada
desenha-se no ponto mais recuado da íris
o movimento do corpo translada o espaço do silêncio
sem amargura a pedra concreta de cada dia percorre
o incêndio que desce aos campos
com a precisão de uma lâmina

o rapaz como o poema
atravessa o sangue rente à margem
atravessa para outro lado
sôfrego senta-se na planura do campo em cinza
sem angústia é a sua forma de deixar
tombar para trás a cabeça afundando os dedos na terra

a raiz mais perto dos dedos
escapa-se pela visão de uma luz magoada
que acerta pelo coração batendo dentro do peito

deixar como o poema escapar as palavras
segurar as primeiras imagens
ter chegado por entre as nuvens a decidir o páramo

Tatiana Faia

Párodo das Coéforas



Orestes e Pílades afastam-se. O coro de mulheres aproxima-se do túmulo de Agamémnon.


Coro:›
(cantando e dançando)
Estr.1
Enviada pela casa eu vim
em procissão trazer libações enquanto a mão rápida feria o corpo:
eis na minha face os arranhões ensanguentados,
..........[sulcos recém talhados pelas minhas unhas 25
(por toda a minha vida se tem alimentado de lamentos o coração),
rasgões destruíram o linho,
dilaceraram ruidosamente os belos tecidos com as dores,
e as dobras das minhas vestes sobre o peito — golpeadas 30
por desgraças sem risos!

Ant.1
Claro, fazendo eriçar os cabelos da casa,
um sonho profético, soprando rancor em vez de sono,
um fundo grito de medo arrancou
..........[do interior da noite nos recessos do palácio, 35
caindo pesado no aposento das mulheres,
e os intérpretes de sonhos
anunciaram, com uma certeza vinda dos deuses,
que os que jazem sob a terra estavam gravemente ofendidos 40
e encolerizados contra os seus assassinos.

Estr.2
Tal é o favor desfavorável para afastar os males —
iô Terra Mãe! — que ela procura ao enviar-me, 45
..........essa mulher ímpia! Mas eu temo deixar cair essas palavras.
Pois que expiação pode haver uma vez derramado o sangue no chão?
Iô, este lar é todo ele desgraça,
iô, a ruína desta casa! 50
Impenetráveis ao sol, odiosas aos homens,
as trevas cobriram a casa
com a morte do senhor.

Ant.2
Outrora inelutável, inconquistável, invencível, o venerável respeito 55
invadia os ouvidos e o coração do povo
..........mas agora anda longe, e há quem tema. A prosperidade
é um deus e mais do que um deus entre os mortais; 60
mas observa-os a Justiça e o prato da balança
de imediato faz pender sobre alguns à luz do dia,
outros na fronteira da escuridão
por longo tempo prosperam {em dores},
a outros alcança-os a noite sem fim. 65

Estr.3
O sangue, quando bebido pela Terra que o nutriu,
coagula-se em vingadora matança, sem se dissolver:
uma inesgotável ruína
..........atormenta o culpado,
..........‹bem como› a enfermidade de infinitos recursos. {Aos que prosperam
alcança-os a noite sem fim.} 70

Ant. 3
Para o que profanou as câmaras nupciais não
há cura, e ainda que todas correntes a um único curso
..........afluíssem para lavar as mãos sujas
..........de um homicídio, correriam em vão.

Epod.
Quanto a mim — pois os deuses impuseram 75
a necessidade sitiadora de cidades, e da casa paterna
trouxeram-me para um destino de escravidão —
justo ou injusto que seja, devo aceitar
o domínio sobre a minha vida em violência ao meu coração
e reprimir este ódio amargo; 80
mas eu choro sob as minhas vestes
pela sorte sem sentido dos meus senhores,
arrepiada com o pranto clandestino.

——————————————

Cá fica um primeiro esboço da minha tradução do párodo (canto que acompanha a entrada do Coro na orquestra, um vasto recinto circular diante do palco) das Coéforas, a segunda tragédia da Oresteia de Ésquilo. A edição usada é a de M.L. West, Teubner, Estugarda, 1991.

Um livro viajado
























Chegado ontem da Suécia (!)

Um sonho desenhado por Dalí


De todos os filmes que Ingrid Bergman fez com Hitchcock falta-me ver Under Capricorn. Mas o meu favorito é este. (Esta cena é de Spellbound.)
Vai chegar a manhã.
A luz treme nos arbustos.
Algas, seixos, limos
guiam pelas fragas
a água sem fundura,
o ardor levantino do anil.

Ouves correr poalhas de bruma?
Silêncios do vento que renasce?

Seguro na mão que não seguras
uma lâmina de fogo, um erro
de árvores e olhas-me.

Pouso os lábios no teu pulso
para sentir o coração.
É tão perigoso ser feliz.

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Luz com um Toldo Vermelho, Colecção Forma, Presença, 1990

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Escurece o ar, e em redor
a luz do dia apaga-se
lentíssima.

Mas sobre o húmido rio
caem vozes lentas
de pássaros. Na rua
acenos anónimos
alastram festivos
nos assobios dos ciclistas.

Esta noite os comboios
invisíveis por entre apelos
claros não terão
a sua melancolia.

Sandro Penna, No Brando Rumor da Vida, Maria Jorge Villar de Figueiredo (trad.), Assírio & Alvim, 2003

«A Place in the Sun» de George Stevens, 1951





















Fiquei com curiosidade de ver o outro filme que junta Elizabeth Taylor e Montgomery Clift.
Caminhemos, caminhemos ainda desesperadamente
juntos ainda na noite profunda
e leve e aveludada do Verão.

Sandro Penna, No Brando Rumor da Vida, Maria Jorge Villar de Figueiredo (trad.), Assírio & Alvim, 2003

Ítaca

A capa que poderia ter sido. Aqui.

"and now for something completely different"

Decadência

O aspecto mais farisaico da mentira implícita no conceito de decadência é a pedanteria com a qual, no próprio momento em que se lamenta a mediocridade e o declínio e se registam os presságios do fim, se faz em cada geração a lista dos novos talentos e catalogam as formas novas e as tendências epocais nas artes e no pensamento. Neste recenseamento mesquinho, muitas vezes de má fé, perde-se o único e incomparável título de nobreza que o nosso tempo poderia legitimamente reivindicar a propósito do passado: o de não querer já ser uma época histórica.

Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, João Barrento (trad.), Livros Cotovia, 1999
Que intenso é o rumor da madrugada!
Mais feito de coisas do que de pessoas.
Procede-o por vezes um assobio ligeiro,
uma voz que alegre desafia o dia.
Mas depois na cidade tudo está submerso.
E a minha estrela é aquela estrela baça
minha morte lenta sem desespero.

Sandro Penna, No Brando Rumor da Vida, Maria Jorge Villar de Figueiredo (trad.), Assírio & Alvim, 2003

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Os nossos sonhos não podem ver-nos - e esta é a tragédia da utopia. A confusão entre personagem e leitor - boa regra de toda a leitura - deveria funcionar também aqui. Acontece, porém, que o importante não é tanto aprender a viver os nossos sonhos, mas sim que eles aprendam a ler a nossa vida.

Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, João Barrento (trad.), Livros Cotovia, 1999
Acabei ontem de ler No Brando Rumor da Vida e gostei muito, mas pareceu-me pouco. É um livro pequeno que se lê muito depressa, os poemas são curtos, por vezes apenas de dois versos e, embora bonitos, parece que nunca se concretizam, que lhes falta qualquer coisa.
Comecei finalmente a ler no comboio, de volta a Lisboa, Ideia da Prosa e vale a pena. Muitas vezes este tipo de obras causa-me um tédio de morte e acabo por levar muito tempo a lê-las (o paradigma deste tipo de casos é a Retórica de Aristóteles, já foi lido há uns cinco anos, é útil, mas continuo a dizer que foi o livro mais excruciante que alguma vez li). Contudo, não é o caso deste livro. Felizmente. Mais um pouco e acabo de lê-lo.




















Isto lembra-me isto. Go figure. (O que eu gosto de Waterhouse.)
save
Quando o Inverno começa nas mãos
quentes e sujas um cheiro a laranjas
arde no ar como coisa que chora
ao sol calmo da festa.

Sandro Penna, No Brando Rumor da Vida, Maria Jorge Villar de Figueiredo (trad.), Assírio & Alvim, 2003

domingo, 27 de dezembro de 2009

Sob o céu de Abril a minha paz
é incerta. Os verdes claros ondulam
volúveis ao vento. Dormem ainda
as águas, mas parecem dormir de olhos abertos.

Há rapazes que correm sobre a erva,
e é como se o vento os dispersasse. Mas disperso
está só o meu coração onde fica um vivo
fulgor (oh, juventude) das camisas
brancas gravadas no verde.

Sandro Penna, No Brando Rumor da Vida, Maria Jorge Villar de Figueiredo (trad.), Assírio & Alvim, 2003






















(Citação)

"Pode realmente ser muito mais difícil engendrar uma obra estética e intelectual eminente no interior do vazio sem resistência de uma licença mais ou menos completa e indiferente. O patrocínio dos meios de comunicação de massa e do mercado livre, o oportunismo distributivo do consumo de massa, podem ser mais ameaçadores para a arte e para o pensamento que os regimes censórios do passado. Que epigrama poderia ter afectado, para já não dizer assustado, a Casa Branca durante o período de atrocidades levadas a cabo no Vietname? A ignorância e a condescendência podem paralizar tão eficazmente como a proibição."

George Steiner, Gramáticas da Criação, Relógio d'Água, Lisboa (trad. de Miguel Serras Pereira)
A vida... é memória de um despertar
triste num comboio da madrugada:
ter visto lá fora a luz incerta: ter sentido
no corpo exausto a tristeza
virgem e áspera do ar agreste.

Mas é mais doce a memória
da libertação inesperada: junto de mim
um marinheiro jovem: o azul
e o branco da fardam e lá fora
um mar, frescura de cor.

Sandro Penna, No Brando Rumor da Vida, Maria Jorge Villar de Figueiredo (trad.), Assírio & Alvim, 2003
Acabei de ler Uma Luz com Toldo Vermelho, o livro ficou cheio de post-its e eu ainda devo copiar para aqui alguns poemas. Ontem fui a uma daquelas livrarias-supermercado-de-livros, de facto não simpatizo muito com elas, que há aqui no Porto, mas comprei alguns livros muito bons. Como um chamado No Brando Rumor da Vida (é um livro que eu tinha mentalmente marcado e que já ando para ler há algum tempo, de um daqueles poetas italianos que despertam toda a minha curiosidade).

sábado, 26 de dezembro de 2009

Finalmente encontrado

...
Ando à procura do vazio que falasse
do nosso encontro, do modo como durou a mão
pela primeira vez, das ramblas enegrecidas a flores
e sou um aprendiz sem jeito, a bênção
das expressões felizes não acode e paro,
sufocado pelas imagens sem voz, nessa praça
onde tu me indicas a paragem de autocarro
e depois segues para lugares distantes
donde só à noite, donde nunca mais, hás-de voltar
...

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Luz com um Toldo Vermelho, Colecção Forma, Presença, 1990
Linha do Sabor
Mais actualizações no espaço online da Ítaca. Aqui.

«Ithaka» de Konstandinos Kavafis



Qualquer coisa como isto.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Ode à Maneira de Horácio

Feliz aquela que efabulou romance
Depois de o ter vivido
A que lavrou a terra e construiu a casa
Mas fiel ao canto estridente das sereias
Amou a errância o caçador e a caçada
E sob o fulgor da noite constelada
À beira da tenda partilhou o vinho e a vida

Sophia, O Búzio de Cós e Outros Poemas

Cascalho

Parecia findar, no pavio.
E estava lá, afundado
na água da cera,
um fulgor de nada,
a deflagração.

*

Atravessou o átrio,
abriu uma porta,
desapareceu. A chuva,
a suavidade da noite,
o copo de aguardente,
o último reduto por fechar.

*

A hora cega em que só vemos
a pele dos olhos a quebrar.

*

Eu canto o que não sei.

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Luz com um Toldo Vermelho, Colecção Forma, Presença, 1990

O gato e o «Greek English Lexicon» (Oxford University Press, 9th ed.)



















Digam lá que ele não tem um ar natalício.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Revista Ítaca

















Fotografia de Ricardo Ávila

A revista Ítaca, organizada pelos três autores deste blogue, deixa hoje online o seu espaço na net. Aqui. Nos próximos dias, até ao lançamento em Janeiro (em data ainda a determinar), iremos actualizando este espaço com informação relativa à revista.
Um natal (?) hanukkah (?) whatever (?) muito feliz para ti também.

Tatiana e JP
Juntamos toros e gravetos
para a lareira. Na mata
flutua o crepúsculo.
Marcos de luz a findar.

Vagas de zimbro, escórias,
o arpão do esquecimento.
A súbita melancolia da casa.

As janelas abrem para o rio
e a barra da ilha com névoa.
Podias ser tu de céu a céu.

A inquieta certeza da poesia
não admite questões. Descobre-se
ao virar da vinha, quando chegamos
ao tanque e não há ninguém.

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Luz com um Toldo Vermelho, Colecção Forma, Presença, 1990

(É um gato homérico)



















Vive comigo e é o felino mais cool do universo.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Órion

É a minha estrela
Tem o feitio de uma mão
É a minha mão subida ao céu
Durante toda a guerra via Órion por uma fresta
Quando os Zeppelins vinham bombardear Paris vi-
nham sempre de Órion
Hoje tenho-a por cima da cabeça
O mastro grande trespassa a palma da mão que deve
sofrer
Como a minha mão decepada me faz sofrer
Trespassada que está por um dardo contínuo

Blaise Cendrars, Folhas de Viagem, Liberto Cruz (trad.), Assírio & Alvim, 2004
Li ontem à noite a antologia de Cendrars de Folhas de Viagem. Fiquei com vontade de ler Feuilles de Route I, II e Sud-américaines, malhereusement mon français est une merde, como já aqui expliquei. Contudo, graças ao vasto mercado editorial estado-unidense, que vai adensando a deterioração do meu francês, isto vai atravessar o Atlântico.
Entretanto estava a ficar sem poesia, salvo seja, porque dos livros que trouxe para o Porto só me faltava ler Mãe-do-Fogo. Mas um amigo há pouco ofereceu-me a mim (e ao JP) Canções de Inocência e de Experiência e Uma Luz com um Toldo Vermelho, de modo que o livro de poesia que se segue deve ser o do Sr. Joaquim Manuel Magalhães, e aquela sensação ansioso-compulsiva de estar sem poesia para ler resolveu-se. Ámen.

El otro



Que é um conto de Borges que principia o Livro de Areia.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Acabei E Cantou como Canta a Tempestade. É um livro muito pequeno que se lê muito depressa, uma tradução (não em versão directa) feita propositadamente para um espectáculo. Os poema de Tsvétaïeva e Akhmatóva surgem intercalados, como se fossem respostas uns aos outros. Neste aspecto, esta é uma má edição de um livro de poesia, que vale mais como curiosidade do que propriamente como antologia de um ciclo de textos de ambas as autoras. Salva-se a qualidade dos poemas, amanhã ou depois transcrevo alguns. Vou começar agora as Folhas de Viagem, aquele primeiro poema, o que está transcrito abaixo, catches the eye (so to speak). Gosto muito de Blaise Cendrars, gosto dele por causa da Prosa do Transiberiano..., há quem diga que ele nunca chegou realmente a entrar no comboio. Nunca saberemos se ele entrou no comboio ou não, mas tenho a certeza que ele fez a viagem.

Tu es plus belle que le ciel et la mer

Quand tu aimes il faut partir
Quitte ta femme quitte ton enfant
Quitte ton ami quitte ton amie
Quitte ton amante quitte ton amant
Quand tu aimes il faut partir

Le monde est plein de nègres et de négresses
Des femmes des hommes des hommes des femmes
Regarde les beaux magasins
Ce fiacre cet homme cette femme ce fiacre
Et toutes les belles marchandises

II y a l'air il y a le vent
Les montagnes l'eau le ciel la terre
Les enfants les animaux
Les plantes et le charbon de terre

Apprends à vendre à acheter à revendre
Donne prends donne prends
Quand tu aimes il faut savoir
Chanter courir manger boire
Siffler
Et apprendre à travailler

Quand tu aimes il faut partir
Ne larmoie pas en souriant
Ne te niche pas entre deux seins
Respire marche pars va-t'en

Je prends mon bain et je regarde
Je vois la bouche que je connais
La main la jambe l'œil
Je prends mon bain et je regarde

Le monde entier est toujours là
La vie pleine de choses surprenantes
Je sors de la pharmacie
Je descends juste de la bascule
Je pèse mes 80 kilos
Je t'aime

Blaise Cendrars, Folhas de Viagem, Liberto Cruz (trad.), Assírio & Alvim, 2004
(Eu tenho um modo de leitura binário. Regra geral vou lendo um livro de poesia algures durante o dia e ao fim do dia passo para prosa, romance ou ensaio.) Ontem acabei de ler O Barco Vazio e agora vou ler uma coisa que se chama E Cantou como Canta a Tempestade (digam lá que não é um título do caraças). O Ulisses está a um pouco mais de meio. Leituras para trabalho ficaram em Lisboa. Este é o primeiro post para uma etiqueta nova, que me deve mais ou menos dar uma ajuda a recordar-me do que leio.

Décimo terceiro castelo de Holanda

Mateus 26.6.
Taças de vidro. Uma escada, a energia
das marés suspende a cana de pesca,
lança-a sob o horizonte. A vermelha
ventoinha há-de rodar até ao último sopro
do vento.
O pássaro morto, sem corda.
O metrónomo da sua dor,
Candeia. lápis, compasso anunciado dois
pontos no quadro negro da noite. Na tua
noite. Na tua morte. Não importa o nome
ratoeira onde o ar deixa feridos sons.

João Miguel Fernandes Jorge, O Barco Vazio, Colecção Forma, Editorial Presença, 1994
Itálico

Coimbra

Já não tenho mais nada
a ouvir da cidade. Nem
sequer o silêncio que
esconde a torre

Um estudante ao canto da rua
vela parte do rosto. Tanto
negro.
Um cão, mija-lhe nas pernas, não
por engano, mas por caridade.
Confunde-o
nas fotocópias do seu saber.

Em Santa Cruz
ficou o primeiro rei
o tão velho mundo
as pequenas praças
a tempestade invade-nos
um requiem
uma cadência.

João Miguel Fernandes Jorge, O Barco Vazio, Colecção Forma, Editorial Presença, 1994

For the happiness of many



















(ou mais especificamente de mim e do outro elemento do meu agregado familiar) há uns dias finalmente disponível ao vivo, na estante de poesia portuguesa que há cá em casa.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Duarte Belo, fotógrafo.

vi

Ficamos presos ao instante exacto em que
a nossa própria voz começa a erguer a sombria
luz do poema. E os versos chegam e as palavras
perdem-se na emoção, no confuso sentimento dos
outros e mesmo na razão com que vejo aquele
rapaz tomar notas sobre poemas lidos. De
tanto lixo poético, talvez ele tenha um dia
um verso límpido
um verso que fique para além do tempo do seu uso.

Parece-se tanto com alguém
que conheci há vinte e muitos anos. Com
o crescer da idade, aqueles
que vão surgindo ao redor
lembram-nos sempre outros rostos, outros gestos
outro similar encontro. É assim a poesia, o
seu mortal exercício; os versos
sempre nos trazem o difícil encontro com as ruínas de
um mundo.

Em Carrickmacross - como
se fosse naquela grande praça da vila de
Coruche -, um velho gato atravessa a rua e
o autocarro pára e param os carros na
via oposta, para que
o gato, tolhido de reumático, passe para o outro
lado, marcando com um leve e dorido andar a sua vida
velha. Também os poemas são deste modo
aprendem na velhice
todo o saber da terra; a luz
de uma nobreza que
não tendo mais do que estreitas estrias de vida, é,
em si mesmo, sinal de toda a vida.

João Miguel Fernandes Jorge, O Barco Vazio, Colecção Forma, Editorial Presença, 1994

Alice no País das Maravilhas

Novo trailer para Alice In Wonderland

«Avatar» de James Cameron, 2009


















Quando um dos membros deste blogue me falou deste filme, torci o nariz. James Cameron. Filme de ficção científica, etc., etc. Bom, este filme não tem os diálogos geniais de Quentin Tarantino, não tem um Clint Eastwood a dirigir os actores e, contudo, é um dos filmes mais espectaculares de 2009. O termo para descrevê-lo é «mesmo fixe».
Há filmes em que a visão não é o sentido predominante, no caso de Avatar, creio que é o seu grande trunfo. Acima de tudo, o espectáculo visual que é este filme leva tudo atrás, é de uma beleza estonteante. À parte isto, acresce o facto de ter todos os tópicos de uma história bem contada, um pouco na linha de filmes como o último 007 ou um filme que creio ter sido um pouco injustiçado nas críticas que recebeu, para o bem e para o mal (não é as cinco estrelas que o Público lhe deu, mas também não é um 2, aí um 3+ ou um 3.5), falo do último Star Trek, que não é grande grande cinema, mas é entretenimento bem feito, mais ou menos pelos mesmos motivos que estou para aqui a palrar sobre Avatar: tem todos os tópicos de uma história bem contada, em ambos os casos encontramos realizadores competentes que nunca chegam realmente a perder a cabeça e a fazer disparate com o filme, quando o risco disso suceder era imenso. They're not awesome, but they're cool.
Porém, Avatar está uns pontos acima. James Cameron arriscou e filmou [um filme] visualmente revolucionário.

Prémio Luís Miguel Nava

A. M. Pires Cabral. Uma entrevista aqui. Mais informações eventualmente aqui.

7 Sloane Avenue

Para Nikos Pratsinis

Traduziram ao meu lado numa primavera o
de Alexandria. Verso a verso e como julguei
inútil esse trabalho que trazia consigo lojas de amor e
o saber antigo. A Grécia era essa quase perfeita
ideia de forma que já ninguém queria. Aquiles
Pátroclo, o divino Platão, Cristo
e gente que chegava e partia envolta em poeira
e perfume. Damasco, Beirute, o Nilo, os jovens
e os muitos velhos; a beleza que se perdia e se
encontrava e se roubava por tascas, em cafés
por quartos de lascívia, em noites de qualquer
praça ou rua estreita; ou mesmo dentro
de uma igreja havia quem deixasse
descer, dos lábios, um beijo e aproximasse da sua
mão o tacto de um corpo.

Vejo-os mais tarde em redor dos rostos do d'
Esmirna. Pelo mesmo mês, pela mesma praia e casa. Os
.................................................................................versos
depressa ficavam parentes dos seus dedos
numa partilha, em voz baixa, de deuses, ritmos, heróis e
o mar de Creta vazava nas águas atlânticas
de Peniche.
Nas suas mãos parecia um céu de trovoada ordenando ramos
mortos em volta dos medalhões azuis: um, em Queensway;
em Sloane Avenue o outro. Em cerâmica registaram uma
passagem, um destino. Mas aquilo a que chamam morte
não é um fim.
Hefaístos, o fogo; o verso que
introduz o eco, invocada beleza do sangue
que espalha, sob a terra, longíssimas raízes.

João Miguel Fernandes Jorge, O Barco Vazio, Colecção Forma, Editorial Presença, 1994

domingo, 20 de dezembro de 2009

Universo em expansão

Barra lateral.

Versões de Giges e Candaules
























No Livro I das Histórias Heródoto narra o episódio de Giges e Candaules. Candaules, rei da Lídia, era um homem muito apaixonado pela sua mulher, a tal ponto, que constantemente gaba a sua beleza a um dos seus soldados, um daqueles fiéis capitães de guarda, feitos para aparecerem nos livros, chamado Giges. Um dia o rei diz a Giges que este não acredita no que ele lhe diz acerca da beleza da esposa e convida-o a vê-la nua. O pobre Giges entra em pânico e recusa-se ferozmente a fazê-lo. (Entre os lídios era pecado ver a nudez fosse de quem fosse.) Contudo, perante a insistência do rei, o vassalo não tem como recusar.
Por azar, ao espiar a mulher de Candaules, Giges acaba por ser visto por ela. A mulher, em vez de denunciar aquilo de que se apercebera, ficou calada mas compreendeu imediatamente que aquele acto era um insulto cujo responsável era o rei.
No dia seguinte, manda que se traga à sua presença Giges e dá-lhe duas escolhas: ou matar o rei ou ser imediatamente morto. Um dos dois ia pagar a ofensa que lhe fora feita. Entre a própria vida e a de outrem, Giges escolhe a sua. O rei é morto, Giges sobe ao trono da Lídia, destronando o último dos Heraclidas. Porém, uma maldição passa para a sua casa: um descente de Giges sofrerá destino semelhante ao de Candaules (Creso, às mãos de Ciro).
No filme de Akira Kurosawa, Rashomon, o «pecado» em que a acção enraíza é da mesma índole. Um marido que, em qualquer dos casos, acaba por falhar à esposa, até certo ponto compactuar com que outro homem visse a sua mulher, sempre velada, e por sofrer às mãos do amante (?) uma morte que em parte radica na sua inconstância. Se Akira Kurosawa leu esta história de Heródoto não é possível saber.
Um outro filme em que surge uma alusão explícita a esta passagem é em O Paciente Inglês. Aqui.
























Tirada daqui.

Already it is dusk

O mesmo tecido verde de todos os
verões. Os sapatos
já os conheço há mais de dois anos e
camisa é a que fornece a casa em
que trabalha
aos empregados nas horas de serviço.
Talvez, quando sai, a troque por uma
t-shirt comprada nos ciganos. E
apesar de me falarem na riqueza e
bem-estar do norte, considero que
são muito mais pobres os pobres.
Também neste café de Famalicão
os mortais são projectados longe,
muito longe da sua Ítaca.

João Miguel Fernandes Jorge, O Barco Vazio, Colecção Forma, Editorial Presença, 1994

Há tantas coisas que eu queria escrever nos últimos tempos e não tenho tido [tempo]. Acho que tenho o vício das palavras, é uma coisa que já vem de trás e já não vai passar. Contudo, às vezes penso que há muito poucas coisas que se possa realmente dizer, que valham a pena. Acredito que o acto de falar é uma grande força que gera significado nos dias, os actos são a base disto mas a sua nomeação torna-os mais densos, mais presentes, a linguagem é a civilização dos actos. Queria escrever um post sobre Giges e Candaules e outra sobre Narrativas de Viagens.
Ando a ler o Joyce. Uma das coisas que salta à vista no exercício de leitura de Ulisses é o facto de tudo aquilo ser um imenso exercício de linguagem. Quanto num livro pode ser apenas linguagem pela linguagem, quase despida de factos? E quanto disso pode ser manipulado por um escritor? Stephen Daedalus conquistou definitivamente um lugar entre as minhas personagens favoritas de todos os tempos, uma impressão que tinha começado no Retrato do Artista Enquanto Jovem e que se confirma em Ulisses. Quero ler isto. (Está na estante há décadas.)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

The sneaking suspicion





























Ide explorar o resto. Aqui.

A carne e o sonho

O tempo é mau ladrão: somente rouba ao homem
seus territórios de infeliz mendigo.
Mas se aquelas desditas pudesse recuperá-las,
não voltaria a ser a sombra que foi antes,
mas esse rei lendário que ainda tem que nascer.

O sonho é a matéria de que está feito o deus,
e, como a água ao fogo, aniquila-o a carne.

Francisco Brines, A Última Costa, José Bento (trad.), Assírio & Alvim, 1997

(Como nota lembrar que José Bento é, pelo menos para mim, um dos melhores tradutores de poesia no activo que temos por cá.)

Imagens num espelho quebrado

Agora que posso já saber que minha vida está feita,
na penumbra deste quarto adormecido
que dá para o jardim da minha distante adolescência
(ainda roçam os vidros
os jasmins, as asas dos pássaros)
olho-a reflectida nos fragmentos quebrados deste espelho
que não sobreviveu ao seu passar
pausado e velocíssimo;
vêem-se as imagens sem voz
e o estranho perdido acha-as estranhas.

E é o que vejo agora tudo quanto vivi?
Devo roubar palavras, ou inventá-las, e conceder
ao mundo esse fulgor que teve,
pois tudo para mim acaba, neste quarto,
ao ver o meu rosto quebrado
em todos os pedaços deste espelho quebrado.
E onde se perderam o amor e a dor,
esta pequena verdade de ter sido?

Como salvá-la em sua inutilidade,
antes que me atirem para onde tudo está anulado,
e nem sequer o sonho
será capaz de fiar a imagem fantasmal, que o dia
desvanece?

Salvá-la-eis vós,
que vedes o que o olho agora, neste texto rasgado,
no instante vão deste feliz bater de pálpebras
que é toda a substância do ser que vos sustenta?

Deus passeia a negra fumarada do seu corpo
pelo jardim estéril do Espaço curvado
(e caem de suas mãos os sóis, e estas centelhas tristes
que brilham, e que somos nós, e se apagam),
com a Verdade que a ele só pertence.
Esse Deus fantasmal que cria e desconhece, e que
caminha
com bengala de cego.

Francisco Brines, A Última Costa, José Bento (trad.), Assírio & Alvim, 1997

Ítaca

Quando as luzes da noite se reflectirem imóveis nas águas verdes de Brindisi
Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos remos e guindastes
A alegria estará em ti acesa como um fruto
Irás à proa entre os negrumes da noite
Sem nenhum vento sem nenhuma brisa só um sussurrar de búzio no silêncio
Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos
Quando o barco rolar na escuridão fechada
Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar
Porque esta é a vigília de um segundo nascimento

O sol rente ao mar te acordará no intenso azul
Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto

Sophia, Geografia

Jesualdo, estás perdoado!

Nos últimos anos o ritual repete-se: insulto o Prof. Jesualdo no início de cada época desportiva, dou-lhe o benefício da dúvida lá para Janeiro, e em Maio reconheço que, sim senhor, o Prof. Jesualdo é um homem com qualidades, que afinal talvez não descenda de uma estirpe tão torpe nem cheire assim tão mal da boca como eu proclamava diante do televisor há uns meses atrás. Mas se há algo que nunca perdoei ao Prof. Jesualdo foram as suas "percas". Até que hoje me deparei com a seguinte frase:

"Perdi a minha memória da morte da lacuna da perca do desastre."

Agora já posso dizer aos meus amigos não-portistas que o Prof. Jesualdo não é um pescador falhado, mas sim um ávido leitor de Sophia.

Muitas coisas teria eu a dizer sobre o português do Sr. Jesus — o homem não só é uma epítome ambulante de agramaticalidades características de um determinado sociolecto lisboeta, como ainda consegue arranjar mais algumas de sua lavra — mas, estando nós em quadra natalícia, vou terminar com a transcrição do texto de Sophia.

Igrina
O grito da cigarra ergue a tarde a seu cimo e o perfume do orégão invade a felicidade. Perdi a minha memória da morte da lacuna da perca do desastre. A omipotência do sol rege a minha vida enquanto me recomeço em cada coisa. Por isso trouxe comigo o lírio da pequena praia. Ali se erguia intacta a coluna do primeiro dia - e vi o mar reflectido no seu próprio espelho. Igrina.
É esse o tempo a que regresso no perfume do orégão, no grito da cigarra, na omnipotência do sol. Os meus passos escutam o chão enquanto a alegria do encontro me desaltera e sacia. O meu reino é meu como um vestido que me serve. E sobre a areia sobre a cal e sobre a pedra escrevo: nesta manhã eu recomeço o meu mundo.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Tenho dentro da mochila um livro chamado O Barco Vazio e outro chamado Ideia da Prosa. Em cima da mesa tenho um livro acabado, Ofício de Vésperas. Comecei agora a ler A Última Costa e depois vou ler O Barco Vazio. Ulisses é o livro mais próximo da noite.

Perda do deus que fui

Foi aquela tarde um tição
e depois foi violeta
todo o ar. Brancas luzes
cintilaram no céu.
E eu escuro.

Longa noite.

E ao chegar a madrugada
do corpo nasceu a sombra.

Francisco Brines, A Última Costa, José Bento (trad.), Assírio & Alvim, 1997
com os lábios perseguir nas tuas mãos, a noite
que um gesto separou.
Lá fora, o muro de granito rodeia a primeira neve.
E os corvos parecem debicá-la com uma fome cheia de rancor.
Uma rapariga acena:
e a eternidade desfaz-se na clareira de um gesto

Rui Nunes, Ofício de Vésperas, Relógio d'Água, 2007

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

hoje não estás próximo, és somente um animal
indeciso onde o tempo se mostra, a linha de água
que a noite encontrou para ter luz, e vejo-te
como um nome que não sei decifrar:
placa toponímica num país estrangeiro.
Uma longa viagem uma improvável chegada
acolhem-se na minha desordem,
sei agora porém que existe um lugar:
cisterna vulnerável ou praça com palmeiras,
um livro inacabado ou a voz de Hellen Watts:
o thou that tellest good tidings to Zion,
o tempo no entanto vacilou,
os corpos, as cidades, os caminhos,
desconhecem os segredos que os diziam,
as letras mudam de lugar, e o teu nome
adquiriu a paz de uma palavra
que não conseguirei nunca soletrar:
és assim uma presença fechada na estranheza
como Deus o era para Kant:
ponto de fuga onde a paisagem
reencontra o seu íntimo destino

Rui Nunes, Ofício de Vésperas, Relógio d'Água, 2007
Mais um acrescento à barra lateral.
Para a barra lateral. Informação agrafada daqui.
com uma pressão de ar, o homem estilhaçava
as borboletas que pousavam nas rosas;
por uns instantes, pequenos farrapos brancos
pairavam imprecisos sobre o canteiro;
cada minuto era o tempo todo a soletrar
uma história saturada de mortos.
Estou a meio do jardim que explode
à custa do meu corpo: disse o homem:
sou o seu desejo. A sua fome.

Rui Nunes, Ofício de Vésperas, Relógio d'Água, 2007
Recensão a Dobra.
não ser
capaz é o corvo
no seu negro
que aprofunda a desordem.
Nas penas cresce o pó. E a luz
reabre o vento
no bosque das acácias a cor
é inacabado movimento.

Rui Nunes, Ofício de Vésperas, Relógio d'Água, 2007

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Uma vida realmente boa

Essa felicidade teria algo em comum com a sua infância, com o entusiasmo que nele despertava a poesia lírica russa, com um certo horizonte vespertino que uma vez vira num sonho e com aquela dama, mulher de outro homem, que em desespero amara durante sete anos; mas seria ainda mais plena e significativa do que tudo isso. Além do mais sentia que uma vida realmente boa deiva orientar-se para alguma coisa ou alguém.

Vladimir Nabokov, "Nuvem, Castelo, Lago", Telma Costa (trad.), Contos Completos, Vol. II, Teorema, 2003

domingo, 13 de dezembro de 2009

The Sorrowing Girl

On the stone of patience
you sat at nightfall,
the black of your eye
revealing your pain;

on your lips the line
that's naked and trembles
when the soul spins
and sobs plead;

in your mind the motive
that starts tears
and you were a body that from the verge
returns to fruitfulness;

but your heart's anguish
was unmoaning, became what gives the world
a starfilled sky.

Yorgos Seferis, Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971.

Ultimamente tenho sido bastante feliz



Mas à pág. 426 a porcaria do livro já ficou sem capa. Volume feito para agradar, não para durar, apesar da aparente robustez. O imortal Sr. Platão teria coisas inteligentes a dizer sobre o assunto, que de momento não me interessam para nada, pois o igualmente imortal Sr. Pickwick está prestes a desforrar-se do pérfido Sr. Jingle.
Livros que quero comprar e ler tão rapidamente quanto possível: este, este e, eventualmente, este. Claro que esta lista é só a ponta de um iceberg. (Culpa de amigos que nos visitam e começam a falar de livros...)

sábado, 12 de dezembro de 2009

Euripides the Athenian

He grew old between the fires of Troy
and the quarries of Sicily.

He liked seashore caves and pictures of the sea.
He saw man's veins
as a net the gods made to catch us in like wild beasts:
he tried to pierce it.
He was a sour man, his friends were few;
when the time came he was torn to pieces by dogs.

Yorgos Seferis, Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971.

Pentheus

Sleep filled him with dreams of fruits and leaves;
wakefulness kept him from picking even a mulberry.
And the two together divided his limbs among the
......Bacchae.

Yorgos Seferis, Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971.

Uma cena de «Almost Famous» de Cameron Crowe, 2000


Ainda estou para me lembrar de um mau filme de Cameron Crowe. Acho que ainda não vi nenhum nessa categoria e este Almost Famous é um filme excelente.
Barra lateral.

So What?

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Dream

I sleep and my heart stays awake;
it gazes at the stars, the sky and the helm,
and at how the water blossoms on the rudder.

Yorgos Seferis
, Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971.

New York Stories: «Life Lessons» de Martin Scorcese

Animula Vagula Blandula

Alminha, vagabundo, blandiciosa,
Do corpo a moradora e companheira,
A que lugares tu te vais agora,
Tão pálida, tão rígida, tão nua?
Nem mais às graças te darás de outrora.

Públio Élio Adriano, Tradução de Jorge de Sena

A título de curiosidade, e em sequência do post anterior sobre o mesmo poema, aqui fica, seguindo uma indicação de Hugo Pinto Santos, a tradução do poema de Públio Élio Adriano feita por Jorge de Sena e publicada no volume Poesia de 26 Séculos (Edições Asa, 20o1).

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Não poderia estar mais de acordo.

Ésquilo, Agamémnon, 958-974


Francis Bacon, Triptych inspired in the ‘Oresteia’ of Aeschylus


Tendo persuadido Agamémnon a entrar no palácio caminhando sobre tecidos de púrpura, uma honra reservada somente aos deuses, Clitemnestra declama os seguintes versos, enquanto seu marido desaparece no palácio para não mais voltar. O primeiro verso do passo é um dos mais famosos da tragédia (e de toda a tragédia grega). Yorgos Seferis retoma-o num poema que a Tatiana deixou aqui no blogue há alguns dias.

ΚΛ.
ἔστιν θάλασσα - τίς δέ νιν κατασβέσει; -
τρέφουσα πολλῆς πορφύρας ἰσάργυρον
κηκῖδα παγκαίνιστον, εἱμάτων βαφάς‧ 960
ἄκος δ᾽ὑπάρχει τῶνδε σὺν θεοῖς, ἄναξ,
ἔχειν‧ πένεσθαι δ᾽οὐκ ἐπίσταται δόμος.
πολλῶν πατησμὸν δ᾽εἱμάτων ἂν ηὐξάμην,
δόμοισι προυνεχθέντος ἐν χρηστηρίοις,
ψυχῆς κόμιστρα τῆσδε μηχανωμένη. 965
ῥίζης γὰρ οὔσης φυλλὰς ἵκετ᾽εἰς δόμους
σκιὰν ὑπερτείνασα Σειρίου Κυνός‧
καὶ σοῦ μολόντος δωματῖτιν ἑστίαν,
θάλπος μὲν ἐν χειμῶνι σημαίνεις μολών,
ὅταν δὲ τεύχηι Ζεὺς {τ᾽} ἀπ᾽ὄμφακος πικρᾶς 970
οἶνον, τότ᾽ἤδη ψῦχος ἐν δόμοις πέλει
ἀνδρὸς τελείου δῶμ᾽ἐπιστρωφωμένου.
Ζεῦ Ζεῦ τέλειε, τὰς ἐμὰς εὐχὰς τέλει‧
μέλοι δέ τοί σοι τῶνπερ ἂν μέλληις τελεῖν.


(Agamémnon começa a caminhar lentamente sobre os tecidos em direcção ao palácio)

Clitemnestra:
Há o mar - e quem o esgotará? -
que cria em abundância o suco da púrpura
valiosa como a prata, sempre renovável tintura para as vestes, 960
e um remédio para a perda dessas está, graças aos deuses, meu senhor,
aqui ao nosso dispor: a casa não conhece o que é ser pobre.
O pisar de muitas vestes teria eu prometido
se tal um oráculo houvesse decretado à casa,
quando procurava um meio de alcançar a vida deste homem. 965
Pois, havendo raiz, a folhagem vem até à casa
e estende a sua sombra contra o Cão Abrasador (1);
chegando tu à lareira do lar,
significas o calor que no Inverno chega,
mas quando Zeus a amarga uva por colher torna 970
vinho, então há frescura para a casa,
se um homem realizado (2) a casa ocupa.
(Agamémnon entra na casa. As criadas começam a retirar os tecidos do chão.)
Zeus, ó Zeus que tudo realizas, realiza também as minhas preces:
oxalá se realize o que tencionas realizar!
(Clitemnestra entra no palácio depois de as criadas concluírem a sua tarefa.)

(1) A estrela Sírio, normalmente chamada Canícula, cujo surgimento coincide com o período de maior calor no Verão.
(2) Tentativa insatisfatória de traduzir τελείου, termo que comporta uma perigosa ambiguidade: significa ao mesmo tempo “senhor da casa”, “homem no apogeu”, mas também “homem acabado”, “homem chegado ao fim”, “homem prestes a ser sacrificado” (o termo era usado tradicionalmente para vítimas de sacrifício), ou ainda “homem que paga a dívida”. Opto por esta tradução de forma a reproduzir em português a repetição nos versos seguintes da raiz tel-.

O texto grego é o da edição de M.L. West, Berlim/Nova Iorque, 2008.

Animula vagula blandula



Animula, vagula, blandula
Hospes comesque corporis
Quae nunc abibis in loca
Pallidula, rigida, nudula,
Nec, ut soles, dabis iocos...

Ontem lembrei-me deste poema de Adriano, que também é citado numa cena do Satyricon de Fellini, pela personagem interpretada por Joseph Wheeler. Nesta cena filma-se uma espécie de projecção do suicídio de Petrónio dentro da obra de Fellini. Porém, a citação é um anacronismo: Petrónio no momento do seu suicídio jamais poderia ter citado Adriano porque Adriano só viria a existir quase um século depois.
É uma citação deprimente numa cena deprimente, mas que concede uma dignidade imensa à personagem e à cena, que se destacam por isso mesmo na economia narrativa da adaptação de Fellini. Trata-se de uma das cenas mais bonitas do filme.
Uma tradução do poema pode ser encontrada aqui, embora eu tenha algumas reservas em relação às opções do tradutor para o último verso.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Décimo sexto castelo de Holanda

Às vezes escrevo num caderno
pequenas frases. Coisas sem
nexo e sem nenhuma legitimidade
para um dia poderem dar lugar a
um verso. Escrevo-as de noite
a meio do sono e no dia seguinte
não sei que sentido lhes possa
atribuir. E o que quererão dizer
as que p'la madrugada de ontem
anotei?
«O chão seco da tua morte. O
duplo touro.
Cilindros de oiro. De quem era
a sala das sombras? Coisas de
vaidade, o meu relógio, o globo
onde lês as cidades do mundo.»
Às vezes deixo-me ficar sentado,
como agora estou a esta mesa no
quarto do hotel
e os sentidos prendem-se a essas
palavras que valem o que vale
uma viagem ao extremo da maior
melancolia da noite.

João Miguel Fernandes Jorge, O Barco Vazio, Colecção Forma, Editorial Presença, 1994

(Ontem comprei este livro na Livraria Bulhosa da esquina. Ainda não o estou a ler porque ler o Cambridge Companion to Philo of Alexandria não me permite acabar mais depressa o livro de Yorgos Seferis e porque tenho vontade de traduzir os poemas de Seferis para português página sim página sim. Não obstante, acho que gosto mesmo muito deste poeta, João Miguel Fernandes Jorge. Abri este livro, O barco vazio, na livraria, pensando: «Vou espreitar mas não vou comprar.» E abri a meio, comecei a ler um poema curto e pensei: «Que se lixe, tu vens comigo p'ra casa.»)





























Imagem do dia. Mais da mesma fotógrafa aqui.

Aparência e aparição

E perguntou-lhe o rapaz
«se eu te der um beijo
dás-me um colar de pérolas?»
E o velho respondeu-lhe
«há que caminhar
sonhando»
Qualquer coisa que fala ainda
quando já tudo é silêncio.

João Miguel Fernandes Jorge, O Barco Vazio, Colecção Forma, Editorial Presença, 1994
Uma livraria nova (a abrir até Março de 2010). Resta-nos desejar a melhor sorte (e fazer uma visita, levando connosco amigos que se interessem por História Natural).

Carmen V

Vivamus, mea Lesbia, atque amemus
Rumoresque senum severiorum
Omnes unius aestimemus assis.
Soles occidere et redire possunt:
nobis cum semel occidit brevis lux,
nox est perpetua una dormienda.
Da mi basia mille, deinde centum,
dein mille altera, dein secunda centum
deinde usque altera mille, deinde centum.
Dein, cum milia multa fecerimus,
conturbabimus illa, ne sciamus,
aut nequis malus invidere possit,
cum tantum sciat esse basiorum.

A vida devia ser assim. Devia ser como os primeiros versos deste poema (dispensando o mea Lesbia), guardar a urgência de viver que estas palavras nomeiam. (Tradução aqui, que é cedo e eu não estou com paciência de ir à procura da minha.)

Poema da autoria de Catulo (ca. 84 - 54 a.C.), autor latino oriundo de Verona (cidadezinha na província da Gália Cisalpina), «who lived many and travelled some and died also very young».

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Quinta-feira

Vi-a morrer muitas vezes
por vezes chorando nos meus braços
outras vezes nos braços de um estranho
por vezes só, despida;
era assim que vivia perto de mim.
Agora sei finalmente que não há nada além
e espero.
O meu arrependimento pertence-me
tanto quanto me pertencem sentimentos tão simples
que, dizem, um homem está para além deles:
e contudo arrependo-me
porque também eu não me tornei (como quis)
semelhante à erva que escutei crescer
próximo de um pinheiro em certa noite;
porque em outra noite não segui o mar
quando as águas recuaram
e suavemente beberam a sua própria amargura,
e não compreendi sequer, à medida que humedecia
sob os meus dedos a erva marinha,
quanta honra pode restar nas mãos de um homem.
Tudo isto passou lentamente, conclusivamente,
como barcos cujos nomes se esbatem:
HELENA DE ESPARTA; TYRANNUS; GLORIA MUNDI
passaram sob pontes para lá das chaminés
com dois homens em tronco nu
inclinando-se à proa e à popa;
passaram, não consigo distinguir nada no nevoeiro matinal
as ovelhas, encaracoladas, ruminando, quase não se vêem
nem a lua se destaca sobre
o rio expectante;
sete lanças mergulharam na água
estagnadas, isentas de sangue
e às vezes na calçada, iluminada em mágoa
sob um castelo oblíquo,
desenhado a lápis vermelho e amarelo:
o Nazareno, exibindo a ferida.
«Não lances aos cães o teu coração.
Não lances aos cães o teu coração.»
A voz dela afunda-se à medida que o relógio marca a hora
a tua vontade, eu procurei a tua vontade.

(mais ou menos) Yorgos Seferis

Versão minha a partir de Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971.

Sem assombro

Dois ou três escritores que admiro pela imaginação: Ovídio em as Metamorfoses. Um livro que são histórias sobre histórias sobre histórias, como se a arte de contar se pudesse multiplicar até ao infinito.
Ariosto em Orlando Furioso, pelo número alucinante de personagens, de situações, por as ter inscrito a todas na medida do verso, a ponto de o seu mecenas, Hipólito d' Este, lhe ter perguntado onde desencatara ele tanto disparate junto.
Há depois grandes escritores, dos quais se diz que podem pegar numa história bastante comum e depois a grande força que nos deixa maravilhados é o seu estilo de contar, espécie de ars dicendi. Tolstói em Anna Karénina, é um exemplo que se gosta de citar. Porém, acho que é preciso muita imaginação para atingir um estilo excelente.
E o voo de imaginação que considero ser o mais impressionante de todos: o impulso que fez com que Dostoiévsky, preso na fortaleza de Pedro e Paulo, descrevesse imóvel, confinado numa pequena cela, o galope desenfreado de um corcel que apenas a esperança sem assombro de um rapazinho pôde domar (O Pequeno Herói).

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

parece pelo melhor a chuva
desabando sobre a tua cabeça
o corpo tecido a partir da noite
saber a precisão de cerrar as mãos
bater contra o muro
bater até sangrar

uma raiva pesada cega inabalável
acerada como um punhal
uma raiva de dentes cerrados
sem assombro sem sofrimento
toda fechada sobre o mais ténue
movimento de cada músculo

uma raiva sem medo sem tristeza
para fender o escuro
repetindo a rapidez da seta
tornando a abrir
a mão contida
estacando
o mergulho na ponta do cais
antes do sangue
incandescendo na primeira palavra

uma raiva como a de Ulisses
na corda o arco
dobrado como o corpo
inclinado por sobre os braços
em esforço
o silvo da seta repetindo
cada recesso da memória
iluminando com um grito limpo
a casa crescida a partir da cinza

The Last Disco (3)























Sempre achei que é mais difícil ser-se um bom fotógrafo do que um bom pintor. Acho mais complicado transfigurar a realidade com a realidade do que com a imaginação.

domingo, 6 de dezembro de 2009

The Last Disco (2)


















Tirada daqui. A partir daqui.

III. Tudo É Efémero

Esquecemos a nossa disputa heróica com as Euménides
adormecemos, elas julgaram-nos mortos e partiram
gritando
"Yiou! Yiou! Pououou...pax!"*
entoando uma maldição contra os deuses que nos protegem.

(mais ou menos) Yorgos Seferis

Versão minha a partir de Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971.

*Alusão a Ésquilo, Euménides, 143. Trata-se dos gritos lançados pelas Fúrias depois de terem sido acordadas pelo fantasma de Clitemenestra e incitadas para que continuassem a perseguição a Orestes.
In cold blindness, those were my boldest spots, my blind spots, my tenderness towards sympathetic feelings. Graving out beside sweetening hearts, we let our soldiers' feet go away cold, our sweet boys, our birdless joy, and, therefore, our guilty, tender, all-embracing, silence. We burn the boots by the hearth of our houses. Our hands must not get cold. We need a proper box where to guard our most personal grief. Or, at least, a dust-free ash-tray.

The Last Disco


































Foto tirada daqui. A partir daqui.

Vagamente Yorgos Seferis

Disseste há anos: «Sou em extremo uma questão de luz.» Porém, agora, apoiado na larga espádua do sonho, quanto te afogam contra o peito entorpecido de um instante, buscas os últimos recessos onde a escuridão não resiste e se apaga, buscas, tacteando, a adaga destinada a trespassar o coração e a abri-lo à luz.

Versão minha a partir daqui.

sábado, 5 de dezembro de 2009

No meu peito a ferida torna a abrir
quando as estrelas caem e se tornam parte do meu corpo
quando o silêncio cai abaixo dos passos dos homens.

Estas pedras afundando-se no tempo, até onde me
irão arrastar com elas?
O mar, o mar, quem o pode esgotar?
Vejo a cada madrugada mãos acenando ao vulto e ao
falcão
atado como estou à rocha que o sofrimento tornou minha,
vejo árvores respirando a serenidade opaca da morte
e os sorrisos - nunca inteiros - das estátuas.

(mais ou menos) Yorgos Seferis

Versão minha a partir de Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971.
O chão geme sob os seus passos — os da mulher — quando dança e ela sorri enquanto dança, apesar do frio que faz, de Agosto ser tão frágil que quase o esquecemos, de depois de amanhã tudo voltar ao corropio regular, a gravata azul, pela semana fora, os dias iguais. Mesmo as nossas caras são, regra geral, iguais de um dia para o outro. O tempo é subtil, alvenaria negativa subtil é o seu ofício. Desfaz as pedras lentamente, por dentro faz coisas que passam desapercebidas, subitamente rui a ala direita, o corpo seriamente soçobrante, a arfar, com medo, e ainda a face reconhecível, só um pouco diferente: o tempo caiu sobre ela pesadamente, visivelmente, anos passaram num instante numa dor no peito, um lado da cara arruinado, a perna amotinada, ou foi lá dentro, uma dor cá dentro, uma mínima ruína, um acréscimo ameaçador, a desarmonia do contraponto no número igual. Como se um traço de sangue riscasse a pauta até então tocada repetidamente em compasso regular. Tocam outras teclas, ociosas pela falta de uso, ou só há muito tempo atrás, uma criança traquinas só para ver o que acontece, antes da ruína se tornar manifesta. Só nisto os contemporâneos estão em desvantagem: não há um nome para amaldiçoar. A desgraça vai e vem como as estações do ano.
Talvez por isso eu desça pela manhã. Não sou um homem amargo. O gato olha para mim, deitado sobre o dicionário de grego aberto. Fecha os olhos, a minha mão na cabeça desperta um ronronar, abre os olhos, um resfolegar pesado, contente.
Só há fome. O frio salda-me por dentro. Sou indiferente, amigável, ausente. Sou velho ainda. Ainda não. Sei o frio nas mãos. Sei a fome nas mãos. Escrevo por frio e fome.

15

Quid πλατανὼν opacissimus?
Como uma árvore envolveu-te o sono em folhas verdes
na luz serena respiraste como uma árvore
na primavera clara vi o teu rosto:
pálpebras cerradas, as pestanas ao de leve roçando a água.
Na erva macia os meus dedos tocaram os teus.
Segurei por um momento o teu pulso
e senti noutro lugar a dor do teu coração.

Sob o plátano, perto da água, entre loureiros
o sono moveu-te e dispersou-te
em meu redor, perto de mim, sem que eu te pudesse tocar
totalmente -
indivisíveis como tu e o teu silêncio;
vendo a tua sombra alastrar e diminuir,
perder-se entre outras sombras, em outro mundo
esse que te deu a liberdade de partir e, contudo, te prendeu.

A vida que nos foi dada viver, vivêmo-la.
Guarda o teu lamento para aqueles que, tão pacientes, mantém a sua espera
perdidos no loureiro negro sob os plátanos maciços
e para esses, apenas esses, que falam para o interior de cisternas e poços
e se afogam num círculo de voz.

Guarda o teu lamento para o companheiro que partilhou as nossas privações o nosso suor
e se precipitou em direcção ao sol como um corvo para lá das ruínas
sem esperança de dividir connosco a recompensa.

Concede-nos, sono aparente, a serenidade.

(mais ou menos) Yorgos Seferis

Versão minha a partir de Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971.

9

É antigo o porto. Não posso continuar a esperar
pelo amigo que partiu para a ilha dos pinheiros
ou pelo amigo que partiu para a ilha dos plátanos
ou pelo amigo que partiu para mar aberto.
Eu faço ressoar os canhões enferrujados, faço ressoar os remos
para que o meu corpo possa reviver e decidir.
As velas guardam apenas o cheiro
salgado da outra tempestade.

Se escolher permanecer só, tudo por que esperei
foi solidão, não este tipo de espera,
a minha alma repartida no horizonte,
estas linhas, estas cores, este silêncio.

A estrela da noite leva-me de volta à antevéspera:
Ulisses esperando os mortos entre os asfódelos.
Quando aqui ancorámos entre os asfódelos esperávamos encontrar
o profundo vale que viu Adónis ferido.

(mais ou menos) Yorgos Seferis

Versão minha a partir de Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Tamerlane and Other Poems
















O primeiro livro de Edgar Alan Poe. Leiloado. Aqui.

The Container of the Uncontainable

Good Friday

Bells
like coins falling sound today all over the city
between each peal a new space opens
like a drop of water on the earth: the moment has come,
..................raise me up.

George Seferis
, Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971
Uma carta de Baudelaire.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Vou começar a coleccionar «housisms»




















Disappointment is anger for wimps

11

Sometimes your blood froze like the moon
in the limitless night your blood
spride its white wings over
the black rocks, the shapes of trees and houses,
with a little light from our childhood years.

George Seferis, Collected Poems (1922 - 1955), Edmund Kelley e Philip Sherrard (trad., ed., e intr.), Princeton University Press, 1971.

(Livro acabado de chegar, o carteiro deixou-o plantado à porta de casa.)

Colóquio Memória e Sabedoria

9, 10 e 11 de Dezembro na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Programa aqui.

As Janelas

Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas. - Uma janela
quando abrir será uma consolação. -
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.

Konstandinos Kavafis, Poemas e Prosas, Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis (trad.), Relógio d'Água, 1994

75 Anos

Mensagem

D. Sebastião, Rei de Portugal

Louco, sim, louco porque quis grandeza
Qual a sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou o meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Fernando Pessoa, Mensagem

(E irem ouvir isto dito por Luís Miguel Cintra?)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Um Fogo na Floresta

Mais um blogue para a barra lateral.

um parágrafo de "Dangling Man"

o sol fora coberto neve começava a cair
espargida sobre os poros negros do cascalho
e jazendo em finas tiras nos telhados inclinados
eu podia ver à distância do cimo deste terceiro andar
não longe havia chaminés
o seu fumo cinzento mais claro do que o cinzento do céu
e mesmo à minha frente renques de habitações pobres
armazéns cartazes luminosos bueiros sinais eléctricos
a arder palidamente carros estacionados carros
em movimento ocasionalmente o raro esboço de uma árvore
esses eu inspeccionei com a cabeça contra o vidro
era minha obrigação olhar e colocar a mim mesmo
a invariável questão onde uma partícula de algo algures
ou no passado que testemunhe a favor do homem
não poderia haver dúvidas de que esses cartazes
ruas trilhos casas frios e cegos estavam relacionados
com a vida interior e no entanto dizia a mim próprio
a dúvida era necessária havia vidas organizadas em torno
desses caminhos e casas e elas as casas
digo eram o análogo o que o homem criou
elas eram-no também por meios transcendentais
isso eu não conseguia conceder
tem de haver uma diferença entre coisas e pessoas
e até mesmo entre actos e pessoas
de outro modo as pessoas que aqui viviam
eram na verdade um reflexo das coisas
entre as quais viviam sempre procurei evitar culpá-las
daí a minha leitura diária dos seus jornais
nos seus negócios e políticas nas suas tabernas filmes
assaltos divórcios homicídios eu tentava constantemente
encontrar sinais inequívocos da sua humanidade comum

(recriação poética de um parágrafo de Dangling Man de Saul Bellow)

Ainda a propósito de cavalos e de Aquiles

Há na Ilíada um ciclo em que a morte dos maiores heróis da obra é sucessivamente predita: Pátroclo prediz a morte de Heitor pouco antes de ser morto por este, Heitor prediz a morte de Aquiles aquando do combate com este. Também um dos cavalos de Aquiles, Xanto, lhe anuncia a morte próxima.
Homero cria na morte o motivo que une todas as suas personagens: a morte, a dor da perda de um ente querido, são coisas que indiferentemente unem os homens, é por isso que há aquela cena final, em que o pai (Príamo) e o assassino do seu filho (Aquiles) choram os dois juntos na mesma tenda. Nada os divide naquele instante: nem o destino, nem a idade, nem o facto de um ser grego e o outro troiano. São os dois a mesma coisa, a mesma matéria: homens e condenados a perder o que mais amaram, o que mais quiseram.
Príamo, o ancião, rei de Tróia, chora na tenda de Aquiles não só um filho muito amado, mas o melhor dos guerreiros troianos, o seu sucessor natural, o símbolo máximo da cidade de Tróia, o príncipe que se devia ter tornado rei.
Aquiles, vendo Príamo, recorda-se de seu pai, Peleu, e sabe que o destino que pesa sobre si, aquele que lhe foi fixado, é igual ao de Heitor, e sabe que o seu pai, longe de Tróia, na Ftia, irá conhecer a mesma dor de Príamo. (Na Ilíada nem os deuses têm capacidade de escapar ao que é fixado pelo destino, nem Zeus pode salvar o seu filho, Sarpédon, da morte em Tróia.)
Eis como Homero nos deixa com dois inimigos reduzidos à igualdade.
A máxima tragédia de Aquiles é que ele sempre fora um inadaptado, um elemento que não se podia identificar e, logo, não se podia ligar a outros. Filho de um mortal, Peleu, e de uma deusa, Tétis, ele, pela sua força, pela sua beleza, pela sua velocidade, não era um homem. Mas aquilo que o separava dos homens não era suficiente para fazer dele um deus, logo, ele não era uma coisa nem outra, não pertencia nem a um mundo nem a outro.
No exército dos aqueus, ele tem um superior hierárquico, um homem mais poderoso que ele, Agamémnon. Mas Agamémnon não o excede em força, até pode ser mais poderoso, mas não mais forte, na prática, Aquiles é o líder natural do contigente dos gregos, e é por isso que se retira do exército assim que contrariado pelo rei de Micenas. Não é uma causa comum o que o trouxe até Tróia, mas uma profunda ânsia de glória.
O momento final de Aquiles na Ilíada é o único momento em que ele sabe onde está, quem é, o que será depois. E que esse momento lhe tenha sido trazido por um seu inimigo natural é um dos aspectos que fez da Ilíada um livro perfeito, um livro imortal.
*
Quando pela primeira vez estudei a Ilíada numa cadeira de literatura grega ,o meu professor na altura, Frederico Lourenço, começou a aula dizendo aquele cliché: a Ilíada é o primeiro livro da história do Ocidente. E imediatamente acrescentou: para primeiro livro, não valia a pena ser uma coisa tão elaborada. Tinha razão.

Os Cavalos de Aquiles

Assim que viram Pátroclo morto,
tão denodado, e forte, e jovem no durar,
os cavalos de Aquiles começaram a chorar;
a sua imortal natureza se indignava
com esta obra da morte que contemplava.
Sacudiam as suas cabeças e as longas crinas moviam,
batiam na terra com as suas patas e carpiam
Pátroclo que sentiam sem alma - exterminado -
uma carne agora vil - seu espírito dissipado -
indefeso - a respiração parada -
da vida devolvido ao grande Nada.

Zeus viu as lágrimas dos imortais
cavalos e entristeceu. «No casamento de Peleu»
disse «não devia assim sem pensar ter feito eu;
antes meus cavalos vos não tivéssemos oferecidos
infelizes! Que procuráveis lá entre o caído
no brinquedo do destino que é a mísera humanidade.
Vós a que nem a morte arma cilada, nem a muita idade
precárias calamidades vos tiranizam. Nas suas provações também
vos envolvem os humanos.» As suas lágrimas porém
pela perpétua calamidade da morte
derramam os dois animais de nobre porte.

Konstandinos Kavafis, Poemas e Prosas, Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis (trad.), Relógio d'Água, 1994