segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

vi

Ficamos presos ao instante exacto em que
a nossa própria voz começa a erguer a sombria
luz do poema. E os versos chegam e as palavras
perdem-se na emoção, no confuso sentimento dos
outros e mesmo na razão com que vejo aquele
rapaz tomar notas sobre poemas lidos. De
tanto lixo poético, talvez ele tenha um dia
um verso límpido
um verso que fique para além do tempo do seu uso.

Parece-se tanto com alguém
que conheci há vinte e muitos anos. Com
o crescer da idade, aqueles
que vão surgindo ao redor
lembram-nos sempre outros rostos, outros gestos
outro similar encontro. É assim a poesia, o
seu mortal exercício; os versos
sempre nos trazem o difícil encontro com as ruínas de
um mundo.

Em Carrickmacross - como
se fosse naquela grande praça da vila de
Coruche -, um velho gato atravessa a rua e
o autocarro pára e param os carros na
via oposta, para que
o gato, tolhido de reumático, passe para o outro
lado, marcando com um leve e dorido andar a sua vida
velha. Também os poemas são deste modo
aprendem na velhice
todo o saber da terra; a luz
de uma nobreza que
não tendo mais do que estreitas estrias de vida, é,
em si mesmo, sinal de toda a vida.

João Miguel Fernandes Jorge, O Barco Vazio, Colecção Forma, Editorial Presença, 1994

Sem comentários:

Enviar um comentário