sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Imagens num espelho quebrado

Agora que posso já saber que minha vida está feita,
na penumbra deste quarto adormecido
que dá para o jardim da minha distante adolescência
(ainda roçam os vidros
os jasmins, as asas dos pássaros)
olho-a reflectida nos fragmentos quebrados deste espelho
que não sobreviveu ao seu passar
pausado e velocíssimo;
vêem-se as imagens sem voz
e o estranho perdido acha-as estranhas.

E é o que vejo agora tudo quanto vivi?
Devo roubar palavras, ou inventá-las, e conceder
ao mundo esse fulgor que teve,
pois tudo para mim acaba, neste quarto,
ao ver o meu rosto quebrado
em todos os pedaços deste espelho quebrado.
E onde se perderam o amor e a dor,
esta pequena verdade de ter sido?

Como salvá-la em sua inutilidade,
antes que me atirem para onde tudo está anulado,
e nem sequer o sonho
será capaz de fiar a imagem fantasmal, que o dia
desvanece?

Salvá-la-eis vós,
que vedes o que o olho agora, neste texto rasgado,
no instante vão deste feliz bater de pálpebras
que é toda a substância do ser que vos sustenta?

Deus passeia a negra fumarada do seu corpo
pelo jardim estéril do Espaço curvado
(e caem de suas mãos os sóis, e estas centelhas tristes
que brilham, e que somos nós, e se apagam),
com a Verdade que a ele só pertence.
Esse Deus fantasmal que cria e desconhece, e que
caminha
com bengala de cego.

Francisco Brines, A Última Costa, José Bento (trad.), Assírio & Alvim, 1997

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