terça-feira, 31 de agosto de 2010

Entre tantas novidades de rentrée

Poesia – uma antologia de Il Canzoniere, de Umberto Saba (selecção, tradução, introdução e notas de José Manuel de Vasconcelos).

(Entre tantos outros livros, anunciados para os próximos meses, que despertam interesse, caramba, o que eu quero ler este!)

Uma perífrase tão eficaz

A felicidade é uma característica da vida que exige o desaparecimento da vida para existir. Se a felicidade é uma qualidade global do homem, então é necessário esperar que a vida desse homem se cumpra com a morte.
Este paradoxo não é autónomo, é apenas um dos muitos paradoxos da globalidade, a que os gregos foram altamente sensíveis. O seu fundamento está gravado na língua: télos, a palavra grega por excelência, é ao mesmo tempo «perfeição», «cumprimento» e «morte». Na voz de Sólon falava a desconfiança dos Gregos em relação à cegueira de quem é feliz e a sua paixão pela lógica. Nunca se viu uma perífrase tão eficaz para dizer uma verdade que, na sua forma directa, seria demasiado crua, e que talvez nem sequer fosse uma verdade: que a felicidade não existe.

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

"Yojimbo" de Akira Kurosawa, 1961

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Este filme é tão bonito.

e descendo à desolação da planície

e descendo à desolação da planície
a folha foi deixada em branco sobre
o cinzento da mesa tudo
no silêncio perfaz a avassaladora
sombra dos dias as pequenas turvas
pedras de que se compõem os nossos dias
a forma como somos pouco mais que
tesserae a hesitação das suas muitas
cores sempre inconstantes

tu como a manhã
se pela efemeridade de um gesto
que na sua brevidade
nos trouxesse de volta
os iluminados campos de setembro

"The Graduate" de Mike Nichols, 1967


Excelente.

domingo, 29 de agosto de 2010

O levantamento de Portugal

O caso deu-se, segundo uns, no próprio dia 1 de Dezembro de 1640, segundo outros, terá ocorrido apenas no dia da aclamação de D. João IV, a 15 de Dezembro. Seja como for, o caso deu brado na época, e aparece referido em vários textos de propaganda a favor da Restauração de Portugal. Transcrevo da Restauração de Portugal Prodigiosa, que relata os milagres e prodígios associados à Restauração. É uma obra fundamental para o entendimento desta época crucial da nossa História, bem como da temática do Quinto Império, e por isso permanece inédita e desconhecida fora dos meios académicos, tal como a generalidade das outras do mesmo período.

Transcrevo respeitando a ortografia original, excepto nos casos de manifesto erro tipográfico.


Sahindo o Arcebispo da Sè na manhaã do Sabbado com os Conegos, fidalgos, & innumerauel gente, que se ajuntou em hum momento, leuaua diante hum clerigo a Cruz Archiepiscopal, chegãdo a jũto da porta da Igreja de Sancto Antonio, lhe pediraõ algũas pessoas lãçasse a bençã, elle pondo os olhos no Crucifixo lhe pedio quizesse bendiçoar aquelle Pouo. Dizẽ algũas pessoas que então despregou o Sancto Crucifixo a mão direita que tinha pregada na Cruz.

Porém o que todos viraõ olhando pera o Senhor neste passo, foi, que a mão direita estaua despregada, & com o braço em algũa distancia da Cruz, do que dantes ninguem dera fè, sabendose, que da Sé sahiraõ pregadas ambas as mãos com tarraxas. Com esta admirauel demonstraçaõ do Senhor, conceberaõ os prezẽtes mui grande consolaçaõ em suas almas, & a tiueram por claras prendas de o Senhor os auer de defender, & perpetuar na liberdade principiada.

Nos campos de Ourique mostrou Christo Senhor nosso claramente, que o leuantamento de Portugal a Reyno era obra sua, como dissemos no capitulo quinto da primeira parte, quando escolheo o Inuictissimo Rey Dom Affonso Henriquez para Rey de Portugal, e empenhou sua diuina palaura, que nele, & seus descẽdentes estabeleceria seu Imperio, & na decima sexta geraçam attenuada tornaria a por os olhos de sua misericordia.

Nesta Cidade de Lisboa, cabeça do Reyno desprega da Cruz o mesmo Senhor em publico sua mão direita leuantando com ella a Portugal attenuado, caido, & prostrado por terra, desempenhando desta sorte a palaura, que dera a seu primeiro Rey, pois em Principe Portuguez herdeiro de seu Real sangue, de nouo vẽ seus diuinos olhos estabelecendo, & confirmando nelle o Imperio Lusitano, conforme o prometera pelo Sancto Iob, operi manuum tuarum porriges dexteram.

(...)

A este admirauel sinal da mão direita do Senhor podemos atribuir a paz, & quietaçaõ, em que tudo ficou despois de Sua Magestade acclamado Rey, & naõ auer mais sangue, nem mais morte em hũa tam subita & nunca vista mudança de hum Reyno, estando viuo o possuidor delle.


Gregório de Almeida, Restauração de Portugal Prodigiosa, Lisboa, 1643
Parte II, cap. IV, pp.272-273.


Um laço

...continuava a ser um laço, porque tudo o que de forte nos assalta é um laço...

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

"District 9" de Neill Blomkamp. 2009



















Grande início, segunda parte not so great.

Frustração

Contra o inverno fatídico.
Contra o verão sem pão.
Contra a primavera - era
que foi por quem nunca espera,
resta-
-me, compadecido,
o chão
do outono com frutos maduros
ainda à mão.

Contra - sou eu que procuro
perdão -
por não ter usufruído
senão outono
e o inverno - estação
de frio fatídico.

O que me resta - contra - não mitiga
penas de tempo perdido:
frutos maduros
ainda à mão.

Ruy Cinatti, Corpo - Alma, Colecção Forma, Editorial Presença, 1994.

Call it a day


save

sábado, 28 de agosto de 2010

"Double Indemnity" de Billy Wilder, 1944

Tinha febre mesmo...

Vamos então padecer
com os pés no tecto
do vão do quarto-mansarda
e um toque pulmonar
para garantir legenda
tão nobre!

Tácito: estreptomicina
em que ninguém acredita
senão pelo telefone
quando um amigo nos confirma
a cura.

Lendo Selma Lagerloff,
acredito em tudo,
mesmo no médico.
Acredito, sobretudo,
nos patecos a voar
e num miúdo chamado
Nils Holgerson.

Vamos repousar
contando as tábuas do tecto
plano inclinado.
Pode ser que chova
e o dilúvio inunde
o meu quarto.

Com estreptomicina e Selma
os tempos mudam por certo.
Tácito: tábuas do tecto
quando naufragar.

Ruy Cinatti, Tempo da Cidade, Colecção Forma, Editorial Presença, 1996.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Sophia



Parte 2 aqui.

Tentação

A noite incandescente e turva
de luzes de néon, de portas que se abrem
e penetram o escuro de uma noite
que julga estar subindo escadas,
afigura-se-me oculta
como tantas outras indefinidas coisas
- vozes vindas dos corredores da infância.

Ruy Cinatti, Tempo da Cidade, Colecção Forma, Editorial Presença, 1996.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Compensa

"Du Rififi chez les Hommes", de Jules Dassin, 1955

Ítaca, n.º1

Se ‘Ítaca’ é ponto de partida, de chegada, ou iluminadora metáfora da própria viagem, eis o que pode ser fútil querer averiguar. Pelos trilhos estéticos e ensaísticos que parecem apostados em sulcar, estes «cadernos de ideias, textos e imagens» surgem como um projecto a seguir com atenção. A esse respeito, convém assinalar a interessante interacção suscitada entre linguagem icónica e verbal ao longo das suas páginas.
As rubricas cobrem áreas como a poesia, original e em tradução, o ensaio e a narrativa. Embora o ponto forte da revista não se situe na poesia – as páginas mais fortes são as consagradas ao ensaio –, é possível resgatar alguns versos mais impressivos de Luís Filipe Nunes, por uma certo domínio no manejo da imagem e do verso – «O dia está em derrocada,/ dentro em breve o desabamento será total» – e de Tatiana Faia, mercê de uma contenção prosódica, um estro classicizante, sem excessivas mesuras – «veio o deus e pousa a mão no teu ombro/ brinca ensaia a sombra perto/ segreda-te uma promessa ao ouvido/ um eco lento/ que repete uma voz de água/ mas ficas só e de vidro quando te espelhas/ na proximidade vaga dos corpos». Merecem referência as traduções de Catulo, a cargo de J.P. Moreira – às quais, queiram os fados, poderá juntar-se o restante ‘corpus’ catuliano, numa integral que se espera não leve muito a ver a luz do dia –, o trabalho de André Simões, com poetas árabes, como Adónis ou Mahmud Darwîsh, ou os poemas de Quasimodo, em tradução de Miguel João Ferreira. Atente-se nas curiosas micro-narrativas de Luís Ene e na sólida ficção de Rui Manuel Amaral. Refira-se o estudo de José Pedro Serra, uma detida consideração da palavra, nas suas incidências e repercussões, como veio do devir histórico, leito da cultura, motor de infinitos ecos. De notar, o extenso ensaio de Fernanda Gil Costa, que, «a propósito de ‘As Benevolentes’ de J. Littell», assina uma poderosa incursão na questão do mal, estanciando em obras como as de Coetzee ou Don DeLillo.

Texto de Hugo Pinto Santos

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

The Part of Ourselves that Likes Quiet

Acabado de Chegar



Ama-me mais uma vez, Atena, o mais possível.

Na noite mais desesperante para os Aqueus, quando se encontram encerrados nos seus barcos devido ao assalto dos sitiados, quando, juntamente com Diomedes, está para partir na arriscada missão de ir colher algum segredo ao acampamento inimigo, chega a Odisseu o grito de uma garça invisível. É Atena que revela a sua presença. Então, Odisseu dirige-se à deusa que sempre esteve a seu lado. Pronuncia poucas palavras secas e íntimas, menos de metade daquelas que, logo a seguir, Diomedes lhe dirigirá. Odisseu não recorda antecedentes paternos nem promete sacrifícios. Diz à deusa: «Ama-me mais uma vez, Atena, o mais possível»

Roberto Calasso
, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

Call it a Day

terça-feira, 24 de agosto de 2010

...tu vais ficar
no rosto de quem amas
não com palavras de pedra...

Andrei Voznessenski, Antimundos, Cadernos de Poesia 12, Tradução de Clara Schwarz da Silva, Versão de Armando da Silva Carvalho, Publicações Dom Quixote, 1970.

"The Professional" de Luc Besson, 1994

Maybe



































Se um dia tivesse uma livraria gostava que se parecesse com esta. Numa fase mais ambiciosa do projecto podiam ser quiosques assim, dispersos por toda a cidade, que ficassem abertos até muito tarde, pontos luminosos que ao fim das tardes se enchessem de algumas pessoas.
Uma coisa mesmo boa é, naqueles fins de tarde de Inverno, quando de repente começa a chover, e se está em caminho, poder entrar numa livraria.
A fotografia foi gamada daqui.

Jean-Paul

Call it a Day

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Goya

Eu - Goya
a quem o inimigo alcançou junto à cratera
em voo na direcção do campo perdido.

Eu - O Desgosto.

Eu - garganta da guerra,
nas principais cidades
no Inverno de 1941.

Eu - A Fome.

Eu - o pescoço
da mulher enforcada cujo corpo balouça
como um sino na praça vazia.

Eu - Goya.

Ó uvas da punição!
Apontei, viril, para Ocidente -
sou as cinzas de quem não foi convidado!
Nas tábuas do céu preguei estrelas duras -
duras como pregos.

Eu - Goya.

1959

Andrei Voznessenski, Antimundos, Cadernos de Poesia 12, Tradução de Clara Schwarz da Silva, Versão de Armando da Silva Carvalho, Publicações Dom Quixote, 1970.

"The Man Who Wasn't There" de Joel Coen, 2001

3.

Quem saberá como e por que nasce uma vocação para a solidão?
Giorgio Bassani

traz pela mão a bicicleta e ouve-se o barulho
do dínamo roçando na roda na outra mão dois
três livros e caminha com pequenos passos
apressados a verdade é que este rapaz
não poderia suportar outra palavra
mais nenhuma hora passada debaixo
de luzes eléctricas a biblioteca fechada
sobre o seu silêncio sepulcral
ele desta violência que impele o corpo
nunca conformado à cadeira onde fica horas a fio sentado
pouco sabe mas segue sempre o impulso de fugir
resta-lhe por isso avançar concretamente sobre
a sombra branca do muro os segundos passando
com um ritmo doido de roda de bicicleta
o tempo torna-se de repente tolerável
indo para sul antes da corrente das palavras é preciso
ter olhado e seguido o rio próximo e tê-lo visto
fechado na verdura cega dos pássaros que cantam
concreto como o instinto de um movimento
que em plena solidão dispara e dispersa
o contágio de deixar morrer a tarde imóvel
o movimento é na verdade a única coisa que acontece
oh e se guardares esta imagem se ela
inundada de palavras correr para a memória
se ficar onde anos mais tarde a puderes ir buscar
recorda-te dele assim sem pena e sem mágoa trepando ao muro
acenando um breve não antes de se lançar para o outro lado do tempo
a alegria breve de seguir o primeiro impulso o limite atravessado

sábado, 21 de agosto de 2010

Não!!!

...

Silêncio

Isto é um lago perto da fronteira.
São três pinheiros.

Aqui se concentrou
o espanto
de vidas, de nuvens e de alturas.

Andrei Voznessenski, Antimundos, Cadernos de Poesia 12, Tradução de Clara Schwarz da Silva, Versão de Armando da Silva Carvalho, Publicações Dom Quixote, 1970

O que eu gosto desta canção!

"Le Samouraï", de Jean-Pierre Melville, 1967



























Este filme tem uma fotografia mesmo bonita. Tudo o resto parece ser colateral à imagem, mas não deixa de ser um bom filme, uma espécie de pequeno conto: a história de um assassino que conhecesse muito bem uma cidade e tivesse o estranho hábito de, no meio da sua solidão, manter um pássaro numa gaiola. Até que percebemos que o pássaro é uma prefiguração de si próprio.

It might as well be spring

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Stan Getz, Tommy Potter, Al Haig, Nova Iorque, 1949

"Metropolis" de Fritz Lang, 1927

Respirar é já consentir

Um sábio levantar-se-á mais prontamente para impedir uma porta de bater do que para se opor a um homicídio que se cometa sem grande alarido numa divisão ao lado. É que quem dedica a sua vida aos cálculos e à meditação conhece o preço do silêncio. Cabe aos eternos distraídos entregar-se às distracções...
*
Nada de orgulhos. Respirar é já consentir. Seguir-se-ão outras concessões, todas ligadas umas às outras. Aqui está uma. Basta, detenhamo-la.

Henri Michaux, Antologia, Margarida Vale de Gato (trad.), Relógio d'Água, 1999.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Nem tudo é duro no crocodilo. Os pulmões são esponjosos e ele sonha à beira-rio.
*
A cada século a sua missa. De que é que está à espera para instituir uma grandiosa cerimónia do fastio?
*
A árvore não se interessa pelo delírio do pássaro.
*
Quem esconde o seu louco, morre sem voz.
*
Quem canta em grupo há-de meter, quando lhe pedirem, o seu irmão na prisão.

Henri Michaux, Antologia, Margarida Vale de Gato (trad.), Relógio d'Água, 1999.


Chet Baker em Nova Iorque, 1956

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Catulo LXVII: à conversa com uma porta

Catulo:
ó tu que és estimada pelo doce marido, estimada pelos pais,
salve, e que prosperes nas boas graças de Júpiter,
ó porta, de ti dizem que prestaste bons serviços a Balbo
outrora, quando o velhote aqui vivia,
mas, conta-se, que, pelo contrário, tens servido mal o filho, 5
desde que o velho esticou o pernil e te fizeram casar1.
diz-nos por que se conta que mudaste
e abandonaste a antiga fidelidade ao teu senhor.

Porta:
não é (assim agrade a Cecílio, a quem agora pertenço)
culpa minha, embora se diga que é minha, 10
nem ninguém pode falar de nenhuma falta da minha parte,
mas esta gente é assim, é a porta que faz tudo,
sempre que se acha qualquer coisa que não está bem
todos me dizem «porta, a culpa é tua!»

Catulo:
não basta dizer isso numa única palavra, 15
é preciso fazer com que se sinta e veja.

Porta:
e como? ninguém pergunta ou faz por saber!

Catulo:
nós queremos saber: não hesites em contar-nos.

Porta:
então, para começar, que ela tenha sido trazida virgem até nós
é falso. o seu anterior marido não lhe tinha tocado, 20
a sua adagazinha pendia mais lânguida do que uma tenra beterraba
e nunca se levantou até meio da túnica;
mas o pai violou o leito do filho,
assim se conta, e desonrou a pobre casa,
talvez porque a sua mente ímpia ardia com um amor cego, 25
ou porque o filho era de semente estéril e impotente,
e num lado ou noutro se tivesse de arranjar com mais nervo
aquilo que serve para desatar o cinto virginal.

Catulo:
é um pai extraordinariamente dedicado o que descreves,
que até molha o colo do filho!2 30

Porta:
e, no entanto, não só disto diz ter conhecimento
Bríxia3, situada sob o miradouro de Cicno,
que o loiro Mela4 atravessa com sua branda corrente,
Bríxia, mãe amada da minha Verona,
mas fala também de Postúmio e do amor de Cornélio, 35
com os quais ela cometeu vergonhoso adultério.
aqui alguém dirá: «como ficaste tu a saber destas coisas, porta,
a quem não é permitido nunca abandonar a soleira do teu senhor,
nem escutar o povo, mas, presa a este lintel,
não fazes mais nada senão abrir e fechar a casa?» 40
muitas vezes a ouvi contar, em voz baixa,
sozinha com as criadas, estes seus crimes,
dizendo os nomes que dissemos, porque achava
que eu não tinha língua nem ouvidos.
para além destes acrescentou mais um que eu prefiro 45
não nomear, para que não franza as sobrancelhas vermelhas.
é um tipo alto, que teve outrora problemas
por causa da falsa gravidez de um ventre fictício5.

Notas:
1. I.e., desde que a casa se tornou dos recém-casados, do filho de Balbo e da sua mulher.
2. Eufemismo para «que até se vem no colo que pertence ao filho!»
3. A actual cidade de Bréscia.
4. Rio que corre junto a Bréscia.
5. Aparentemente o indivíduo visado teria, para receber uma herança que estipulava que o beneficiário deveria ter filhos naturais, obrigado a mulher a simular gravidez e, ao mesmo tempo, adoptado uma criança, que faria depois passar por sua. O engano foi descoberto e o sujeito teve de responder em tribunal.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

o meu pior pesadelo (André, tens mesmo de ver isto!)

'M' de Fritz Lang, 1931

Há pouco estava a pensar neste quadro

























A história do quadro é contada aqui. A coisa que nele mais me impressiona, à parte ser um pouco frustrante estarem todos vestidos à moda da época de Caravaggio, é que sempre me pareceu que tudo isto se passa num momento de silêncio absoluto. Que o Cristo nunca chega a pronunciar palavra nenhuma, limita-se a olhar com aquele ar determinado e a apontar para Mateus e, no momento em que ele levantar os olhos, distraído por um instante pela impressão que algo em redor dele se passa, vai simplesmente levantar-se e seguir o outro. Citando um amigo, trata-se de uma coisa do Caravaggio.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

De «Pensando no fenómeno da pintura»

Rostos de infância, dos medos de infância cujo enredo e o objecto nos esquecemos mais depressa do que a sua memória, rostos que não acreditam que tudo se tenha resolvido com a passagem à idade adulta, que ainda temem o terrível retorno.
Rostos da vontade, talvez, que nos precede sempre e tende a predeterminar todas as coisas; rostos também da busca e do desejo.

Henri Michaux, Antologia, Margarida Vale de Gato (trad.), Relógio d'Água, 1999.

sábado, 14 de agosto de 2010

"Fury" de Fritz Lang, 1936


Para usar uma expressão que está em voga, este filme é um murro no estômago.

Ao contrário das personagens dos romances

Ao contrário das personagens dos romances, vinculadas a um único gesto, as figuras dos mitos passam por muitas vidas e muitas mortes. Mas em cada uma dessas vidas e dessas mortes estão compreendidas, e repercutem-se, todas as outras.

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

E ele lê


Quando pensamos nisso, estes animês têm inúmeros pontos em comum com a épica homérica. Este excerto é de um episódio de Naruto, da autoria de Masashi Kishimoto.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Achei por bem partilhar


O resto está em muitas partes no YouTube.

O que podemos saber da história de uma interacção social e cultural

Eis um livro sobre o assunto de que gostei vivamente. Fica um excerto:

The study of the literature and the various groups within Judaism of the late Second Temple period is a most fertile field for studying such identity matters, and one which is also of crucial significance for the subsequent history of Jews and Christians. How could different groups develop and maintain their identity within the challenge of Hellenistic and early Roman culture? Was there a common ‘Jewish’ identity, and how could it be defined? What about the images of ‘others’? And how could some of those ‘others’ adopt a Jewish lifestyle or identity, at the same time that other others, from within, abandoned their inherited identity? Finally, how were the world-views and beliefs of the emerging groups of Jesus-followers related to different aspects of Jewish identity?

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

"Oci Ciornie" de Nikita Mikhalkov, 1987


Não era esta a cena que queria deixar aqui. Era uma quase do final.

Apropriadamente livro do dia

Blake in Paradise. (Blake morreu a 12 de Agosto de 1827.)

Um excerto de a «A Carta»

Não nos reconhecemos nos silêncios, não nos reconhecemos nos uivos, nem nas nossas grutas, nem nos gestos dos estrangeiros. À nossa volta o campo é indiferente e o céu sem intenções.
Olhámo-nos ao espelho da morte. Olhámo-nos ao espelho do selo violado, do sangue que corre, do impulso decapitado, no espelho carbonizado das afrontas.
Regressámos às fontes glaucas.

Henri Michaux, Antologia, Margarida Vale de Gato (trad.), Relógio d'Água, 1999.

Hoje acordei assim

Fim do dia

Andar à procura dos óculos que estão na cara.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A tentação é sempre discordar

Most underrated & overrated authors, segundo o Guardian. Aqui e aqui, respectivamente. Via aqui.

Medo do deserto

Estes homens riem. Riem.
Agitam-se. No fundo, não ultrapassam um grande silêncio.
Dizem «lá». Estão sempre «cá».
Não se vestem de qualquer maneira para chegar.
Falam de Deus, mas é com as suas folhas.
Lamentam-se. Mas é só vento.
Têm medo do deserto.

Henri Michaux, Antologia, Margarida Vale de Gato (trad.), Relógio d'Água, 1999.

The djinns? The camels? The metamorphoses?

Hesitação

Apolo e Diónisos vivem muitas vezes à beira dessa linha, na parte divina e na parte humana, e geram a hesitação nos homens, aquele sair de si próprios a que parecem dar ainda mais importância do que ao facto de serem homens, mais ainda do que à própria vida.

Roberto Calasso
, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

"His Girl Friday" de Howard Hawks, 1940

















Gostei, mas não me impressionou.

Geoffrey Hill, Oxford Professor of Poetry

Atenas ama os culpados

Um toque de trompa, à noitinha, provocava uma tentação entre os bebedores. «O Rei bebe, a Rainha ri». Mas bebiam sem falar, sem cantar, sem orar. Muitos estavam recolhidos, sob muitos tectos, cada qual com a sua caneca. E no entanto havia o mesmo silêncio que o arauto ordenava durante o sacrifício. As crianças tinham também a sua mesa e a sua caneca, mas calavam-se. Um hóspede invisível estava entre eles: Orestes, o impuro, que um dia procurara refúgio em Atenas. Ninguém ousara acolhê-lo, mas também ninguém ousara escorraçá-lo. Atenas ama os culpados. Sentado sozinho a uma mesa, com uma caneca só para ele, o matricida bebera em silêncio. E assim se passara o primeiro dia de festa, o Coe.

Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

"The Rape of Europa" de Richard Berge, 2006

Quando Ariadna fixou o seu olhar no estrangeiro

«Como em Creta, é costume as mulheres assistirem aos jogos, Ariadna, que estava presente, ficou estupefacta ao ver aparecer Teseu, e admirou a sua bravura quando ele venceu todos os adversários, um após o outro». Quando Ariadna fixou o seu olhar no estrangeiro, Creta acabou. Antes de ser traída, Ariadna traíu a sua ilha.

Roberto Calasso
, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.

Madrid (Pormenores)

Tarquinio Merula - Ruggiero





Tarquinio Merula (1595-1665)
Interp: Jordi Savall

Ciaccona - Tarquinio Merula (int.: Il Giardino Armonico)



Tarquinio Merula (1595-1665)
Tony Judt.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Onde quer que esteja

Onde quer que esteja, em qualquer lugar
na Terra, escondo dos outros a certeza de
que não sou daqui.
Como se tivesse sido enviado para absorver
o máximo das cores, sons, cheiros, sabores,
provar de tudo o que é
reservado ao Homem, converter o vivido
num registo mágico e levá-lo para lá, de onde
parti.

Czeslaw Milosz in Alguns Gostam de Poesia: Antologia: Czeslaw Milosz e Wislawa Szymbroska, Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves (trad.), Cavalo de Ferro, 2004

terça-feira, 3 de agosto de 2010

"True Romance" de Tony Scott, 1993

Catulo LI

LI
ele parece-me semelhante a um deus,
ele, se tal é lícito, parece-me superar os deuses,
esse que se senta perante ti e que continuamente
contempla e escuta

teu doce riso, que ao pobre de mim 5
arrebata todos os sentidos: pois no momento,
Lésbia, em que te olho, nada resta


mas a língua fica dormente, cortante pelos membros
uma chama desce, com um som interno 10
zunem os ouvidos, toldam-se as gémeas
vistas de noite.

o ócio, Catulo, é-te prejudicial:
por causa do ócio exultas e em demasia te excitas.
o ócio foi que primeiro reis e prósperas 15
cidades perdeu.

Notas:
O poema é uma «adaptação» latina do fr. 31 Lobel-Page de Safo.
Alguns críticos entendem que a estrofe final não pertence a este poema.
A edição seguida foi a de Thomson: D.F.S. Thomson, Catullus, University of Toronto Press, Toronto, 1997.

Felicidade

Que luz tão quente! Da rósea baía
Vê-se a China dos mastros, o repouso das cordas
Na neblina matinal. Lá, onde o riacho
Se infiltra no mar, perto da pequena ponte, o som da flauta
Mais além, debaixo do arco das ruínas antigas,
Vão dois vultos pequeninos,
Um deles de lenço vermelho. Há árvores,
Torres e montanhas às primeiras horas do dia.

Czeslaw Milosz in Alguns Gostam de Poesia: Antologia: Czeslaw Milosz e Wislawa Szymbroska, Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves (trad.), Cavalo de Ferro, 2004

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

"The Usual Suspects" de Bryan Singer, 1995

Instantâneos de uma nora

6.Negrito
Quando ao som da lira Corina cantanem as palavras nem a música lhe pertencemsó o longo cabelo descendo-lhe pelo rosto, só a cançãode seda nos joelhose estesajustados no reflexo de um olhar.
Atenta, trémula e insatisfeita, anteuma porta destrancada, essa gaiola das gaiolas,diz-nos, tu pássaro, tu máquina trágica -será isto fertilisante douleur? Aprisionadapelo amor, para ti a única acção natural,estarás tu de gume mais afiadopara forçar os segredos da cripta? ter-te-á a Naturezamostrado a sua contabilidade doméstica, nora,que os seus filhos nunca viram?

Adrienne Rich, Uma Paciência Selvagem, Maria Ramalho e Monica Andrade (trad.), Livros Cotovia, Lisboa, 2008

domingo, 1 de agosto de 2010

Catulo XXVIII

XXVIII
companheiros de viagem de Pisão, comitiva sem um tostão,
que trazeis uma bagagenzinha bem leve de se carregar,
ó excelente Verânio e tu, meu Fabulo,
como andam vocês? acaso aquele
panhonha vos fez passar muito frio e fome? 5
nas vossas tabuinhas vê-se no lugar do ganhozito
algum encargo, como me sucedeu, que ao seguir o meu
pretor registei mais despesa do que lucro?
ó Mémio, bem me fodeste tu a teu bel-prazer,
com o pau todo como e durante o tempo que quiseste! 10
mas, tanto quanto vejo, tiveste igual
sorte: pois com um caralho não menor
levas agora. procura o auxílio de amigos de bem!
mas que a vós muitos males os deuses e deusas
dêem, vergonha de Rómulo e Remo! 15

"Sunset Blvd." de Billy Wilder, 1950



















Tão cruel.