quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Catulo LXVII: à conversa com uma porta

Catulo:
ó tu que és estimada pelo doce marido, estimada pelos pais,
salve, e que prosperes nas boas graças de Júpiter,
ó porta, de ti dizem que prestaste bons serviços a Balbo
outrora, quando o velhote aqui vivia,
mas, conta-se, que, pelo contrário, tens servido mal o filho, 5
desde que o velho esticou o pernil e te fizeram casar1.
diz-nos por que se conta que mudaste
e abandonaste a antiga fidelidade ao teu senhor.

Porta:
não é (assim agrade a Cecílio, a quem agora pertenço)
culpa minha, embora se diga que é minha, 10
nem ninguém pode falar de nenhuma falta da minha parte,
mas esta gente é assim, é a porta que faz tudo,
sempre que se acha qualquer coisa que não está bem
todos me dizem «porta, a culpa é tua!»

Catulo:
não basta dizer isso numa única palavra, 15
é preciso fazer com que se sinta e veja.

Porta:
e como? ninguém pergunta ou faz por saber!

Catulo:
nós queremos saber: não hesites em contar-nos.

Porta:
então, para começar, que ela tenha sido trazida virgem até nós
é falso. o seu anterior marido não lhe tinha tocado, 20
a sua adagazinha pendia mais lânguida do que uma tenra beterraba
e nunca se levantou até meio da túnica;
mas o pai violou o leito do filho,
assim se conta, e desonrou a pobre casa,
talvez porque a sua mente ímpia ardia com um amor cego, 25
ou porque o filho era de semente estéril e impotente,
e num lado ou noutro se tivesse de arranjar com mais nervo
aquilo que serve para desatar o cinto virginal.

Catulo:
é um pai extraordinariamente dedicado o que descreves,
que até molha o colo do filho!2 30

Porta:
e, no entanto, não só disto diz ter conhecimento
Bríxia3, situada sob o miradouro de Cicno,
que o loiro Mela4 atravessa com sua branda corrente,
Bríxia, mãe amada da minha Verona,
mas fala também de Postúmio e do amor de Cornélio, 35
com os quais ela cometeu vergonhoso adultério.
aqui alguém dirá: «como ficaste tu a saber destas coisas, porta,
a quem não é permitido nunca abandonar a soleira do teu senhor,
nem escutar o povo, mas, presa a este lintel,
não fazes mais nada senão abrir e fechar a casa?» 40
muitas vezes a ouvi contar, em voz baixa,
sozinha com as criadas, estes seus crimes,
dizendo os nomes que dissemos, porque achava
que eu não tinha língua nem ouvidos.
para além destes acrescentou mais um que eu prefiro 45
não nomear, para que não franza as sobrancelhas vermelhas.
é um tipo alto, que teve outrora problemas
por causa da falsa gravidez de um ventre fictício5.

Notas:
1. I.e., desde que a casa se tornou dos recém-casados, do filho de Balbo e da sua mulher.
2. Eufemismo para «que até se vem no colo que pertence ao filho!»
3. A actual cidade de Bréscia.
4. Rio que corre junto a Bréscia.
5. Aparentemente o indivíduo visado teria, para receber uma herança que estipulava que o beneficiário deveria ter filhos naturais, obrigado a mulher a simular gravidez e, ao mesmo tempo, adoptado uma criança, que faria depois passar por sua. O engano foi descoberto e o sujeito teve de responder em tribunal.

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