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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Probabilidade

Um medo maior acerca a ilha
Medo que o encanto se quebre
e o desmoronamento se propague
aos elementos que do mar a ergueram.

Será que existem inventores
solicitados pela sua invenção?
A ilha, indiferente a construtores,
afirma-se na sua missão

de renovar espantos singulares.
O próprio medo é renovador
quando percorrido pela intempérie
que sopra das ilhas implacáveis.

Ruy Cinatti, Lembrança para S. Tomé e Príncipe 1972, Instituto Universitário de Évora, 1979

domingo, 29 de agosto de 2010

Frustração

Contra o inverno fatídico.
Contra o verão sem pão.
Contra a primavera - era
que foi por quem nunca espera,
resta-
-me, compadecido,
o chão
do outono com frutos maduros
ainda à mão.

Contra - sou eu que procuro
perdão -
por não ter usufruído
senão outono
e o inverno - estação
de frio fatídico.

O que me resta - contra - não mitiga
penas de tempo perdido:
frutos maduros
ainda à mão.

Ruy Cinatti, Corpo - Alma, Colecção Forma, Editorial Presença, 1994.

sábado, 28 de agosto de 2010

Tinha febre mesmo...

Vamos então padecer
com os pés no tecto
do vão do quarto-mansarda
e um toque pulmonar
para garantir legenda
tão nobre!

Tácito: estreptomicina
em que ninguém acredita
senão pelo telefone
quando um amigo nos confirma
a cura.

Lendo Selma Lagerloff,
acredito em tudo,
mesmo no médico.
Acredito, sobretudo,
nos patecos a voar
e num miúdo chamado
Nils Holgerson.

Vamos repousar
contando as tábuas do tecto
plano inclinado.
Pode ser que chova
e o dilúvio inunde
o meu quarto.

Com estreptomicina e Selma
os tempos mudam por certo.
Tácito: tábuas do tecto
quando naufragar.

Ruy Cinatti, Tempo da Cidade, Colecção Forma, Editorial Presença, 1996.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Tentação

A noite incandescente e turva
de luzes de néon, de portas que se abrem
e penetram o escuro de uma noite
que julga estar subindo escadas,
afigura-se-me oculta
como tantas outras indefinidas coisas
- vozes vindas dos corredores da infância.

Ruy Cinatti, Tempo da Cidade, Colecção Forma, Editorial Presença, 1996.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

A cega-rega

Meus pés desandam em tontas pontas
sobre campo de amarelecido milho
lá longe entre colinas e savanas
de árvores de glaucas folhas, brancos os troncos.
De tanto dançar perdi a conta
dos anos e drogo-me de música.
Uma flauta canta e o seu soprador
é um velho ágil que me tem amor
no meu Timor, adorada ilha...

(Não verei mais a ilha dos veados,
Jaco chamada, onde morrem de sede
meus sonhos, as minhas realidades,
como se falasse contra uma parede
e de longe molhasse os lábios numa fonte seca...)

16/2/77

Ruy Cinatti, 56 Poemas, Relógio d'Água, 1992

Enigma

A noite, o vácuo, o nevoeiro
aceso em minhas lucilentas cinzas.
O pássaro veloz que se despenha
nas águas, e um peixe abica
e nele estrebucha, de possesso,
arrebatado ainda e... - ó conquistas!
Maior avanço, ora supõe causas
inadmissíveis, conquanto exactíssimas
como o quadrilátero entreaberto
num círculo, acme da vida.
O voo segue e chega-se aos astros.
Ícaro cai, os mares ressuscitam-no.

30/6/77

Ruy Cinatti, 56 Poemas, Relógio d'Água, 1992

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Prenúncio

Eis que retorno à terra de ninguém,
à minha triste pátria angustiada,
para com ela celebrar alguém
num novo ano pleno de jornada
e cantarei a chuva anunciada
e o fogo fruste e o que lembrado
alumiar ensimesmadas faces
e outras de tenra profecia.
O mito grava, a palavra ofende.
A noite desce, a manhã ascende.
Um novo ano cresce no meu peito,
incerto, adrede, como folha ao vento
ou o vulto-susto de uma adaga,
ó sinistra ave,
ó flor colhida, nomeada,
ó Cristo salvador, meu amor íntimo!

Ruy Cinatti, 56 Poemas, Relógio d'Água, 1992

Memória antiga

Puseram a dormir Protesilaus
ao longo do Helesponto: ali, outrora,
do pó do seu corpo que os lavradores lavraram
plátanos gémeos cresceram então,
erguidos pelas ninfas e altos, orgulhosos
mais que as árvores de Helas. Dia a dia
suas ramagens treparam e os raminhos espiaram
os campos onde em tempos Tróia foi
e secaram, de súbito.

Ruy Cinatti, 56 Poemas, Relógio d'Água, 1992

terça-feira, 20 de abril de 2010

Conselho

Não se perturbem com textos,
meus estudantes!

Aprendam a ler com os dedos
até doer.
Com o pensamento
até nada saber.

Tento, firmeza, dizer.
Palavras, tempo.

Aprendam a ler
o texto geral.

Voltem à Natureza, meus estudantes,
e ledos, lede
o que não se imprime.

Ruy Cinatti, Archeologia ad Usum Animae, Colecção Forma, Presença, 2000

Poema extraído de «A Paixão»

Quando os deuses terríveis nos acordam,
quando a planície ao longe dorme,
quando a lua acontece sem que o luar a sinta,
quando o silêncio dói,
quando o ruído morre,
quando ouço passos de quem já não caminha,
quando os homens nos deixam
e a morte nos revolta,
quando já não há quando, nem porquê, nem onde,
quando as palavras ainda se queixam
e um medo passa pelos olhos enxutos,
oh, o silêncio, esse ladrar de cães nas trevas,
...................................................dentes brancos
o halo de mistério
das tristes mulheres de sexta-feira santa
que perpassam ao longo destas linhas!...

Ruy Cinatti, Archeologia ad Usum Animae, Colecção Forma, Presença, 2000

A um amigo morto

A tua casa morreu.
Só tu vives ainda.

Morreu porque apodreceu
a flor nascida
na terra do cativeiro.

Mas tu vives na memória.
Bates às portas
do tempo.

És livre.

Só por isso te acompanho.
Em tua casa não entro.

Ruy Cinatti, Archeologia ad Usum Animae, Colecção Forma, Presença, 2000