terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Ainda a propósito de cavalos e de Aquiles

Há na Ilíada um ciclo em que a morte dos maiores heróis da obra é sucessivamente predita: Pátroclo prediz a morte de Heitor pouco antes de ser morto por este, Heitor prediz a morte de Aquiles aquando do combate com este. Também um dos cavalos de Aquiles, Xanto, lhe anuncia a morte próxima.
Homero cria na morte o motivo que une todas as suas personagens: a morte, a dor da perda de um ente querido, são coisas que indiferentemente unem os homens, é por isso que há aquela cena final, em que o pai (Príamo) e o assassino do seu filho (Aquiles) choram os dois juntos na mesma tenda. Nada os divide naquele instante: nem o destino, nem a idade, nem o facto de um ser grego e o outro troiano. São os dois a mesma coisa, a mesma matéria: homens e condenados a perder o que mais amaram, o que mais quiseram.
Príamo, o ancião, rei de Tróia, chora na tenda de Aquiles não só um filho muito amado, mas o melhor dos guerreiros troianos, o seu sucessor natural, o símbolo máximo da cidade de Tróia, o príncipe que se devia ter tornado rei.
Aquiles, vendo Príamo, recorda-se de seu pai, Peleu, e sabe que o destino que pesa sobre si, aquele que lhe foi fixado, é igual ao de Heitor, e sabe que o seu pai, longe de Tróia, na Ftia, irá conhecer a mesma dor de Príamo. (Na Ilíada nem os deuses têm capacidade de escapar ao que é fixado pelo destino, nem Zeus pode salvar o seu filho, Sarpédon, da morte em Tróia.)
Eis como Homero nos deixa com dois inimigos reduzidos à igualdade.
A máxima tragédia de Aquiles é que ele sempre fora um inadaptado, um elemento que não se podia identificar e, logo, não se podia ligar a outros. Filho de um mortal, Peleu, e de uma deusa, Tétis, ele, pela sua força, pela sua beleza, pela sua velocidade, não era um homem. Mas aquilo que o separava dos homens não era suficiente para fazer dele um deus, logo, ele não era uma coisa nem outra, não pertencia nem a um mundo nem a outro.
No exército dos aqueus, ele tem um superior hierárquico, um homem mais poderoso que ele, Agamémnon. Mas Agamémnon não o excede em força, até pode ser mais poderoso, mas não mais forte, na prática, Aquiles é o líder natural do contigente dos gregos, e é por isso que se retira do exército assim que contrariado pelo rei de Micenas. Não é uma causa comum o que o trouxe até Tróia, mas uma profunda ânsia de glória.
O momento final de Aquiles na Ilíada é o único momento em que ele sabe onde está, quem é, o que será depois. E que esse momento lhe tenha sido trazido por um seu inimigo natural é um dos aspectos que fez da Ilíada um livro perfeito, um livro imortal.
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Quando pela primeira vez estudei a Ilíada numa cadeira de literatura grega ,o meu professor na altura, Frederico Lourenço, começou a aula dizendo aquele cliché: a Ilíada é o primeiro livro da história do Ocidente. E imediatamente acrescentou: para primeiro livro, não valia a pena ser uma coisa tão elaborada. Tinha razão.

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