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terça-feira, 17 de julho de 2012

Poder e interesse

Onde estão o poder e o interesse dos poetas? Têm a sua origem em estados oníricos. E estes surgem porque o poeta é o que é em si mesmo, porque soa uma voz na alma dele que tem uma força equiparável à das sociedades, do Estado e dos regimes. Ninguém se torna interessante com a loucura, a excentricidade ou outras coisas do género, mas em virtude do poder de cancelar a distracção, a actividade e o ruído do mundo e porque se mostra capaz de ouvir a essência das coisas.

Saul BellowO Legado de Humboldt, Salvato Telles de Menezes (trad.), Quetzal, 2012.

sábado, 16 de junho de 2012

A nossa escola de liberdade

Por razões estéticas, mas não só, não posso aceitar a concepção da morte assumida pela maioria das pessoas e que também adoptei durante quase toda a minha vida; por razões estéticas, portanto, sou obrigado a negar que uma coisa tão extraordinária como a alma humana possa apagar-se para sempre. Não, os mortos estão à nossa volta, excluídos do mundo pela nossa denegação metafísica da sua existência. Quando os milhares de milhões que somos dormem à noite nos nossos respectivos hemisférios, os mortos aproximam-se de nós. As nossas ideias devem servir-lhes de alimento. Somos os seus campos de cereais. Mas somos estéreis e eles morrem de fome. Contudo, não se enganem. Os mortos observam-nos, observam-nos nesta Terra, que é a nossa escola de liberdade. No próximo reino, onde as coisas são mais claras, a clareza carcome a liberdade. Na Terra somos livres precisamente devido à confusão, ao erro, às admiráveis libertações, e também devido à beleza, à maldade e à cegueira. Tudo isto vem sempre acompanhado pela benção da liberdade.

Saul Bellow, O Legado de Humboldt, Salvato Telles de Menezes (trad.), Quetzal, 2012.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Uma história de cama

Ontem estava a ler um poema de Luis García Montero (em tradução de Nuno Dempster) que se fixava no contraste entre um grupo de velhotas num café - diz-se que associadas na ordem da má língua, e do té con limón - e que de repente se calam e param a olhar, porque na mesa ao lado está uma rapariga a contar uma história de cama, com pormenores hábeis e no contar dessa história, diz García Montero, há uma «maneira de sentir a vida/ que penetra e dissolve a luz de igreja,/ a humilhação do frio nos joelhos». Não podia de verdade dizer em quantos níveis de sentido este poema me é caro, é uma coisa que começa no seu sentido mais literal e mais óbvio e vai avançando por outros sentidos que lhe vou pondo ou vendo. Um deles é uma coisa engraçada e prende-se, não só mas também, com o facto de, basicamente, estar há dois meses fechada numa biblioteca (ah, então a minha identificação está ligada ao poema enquanto génio libertador, cujo único horizonte de referência é na verdade a minha vidinha, o aspecto idiossincraticamente biográfico - errado, é verdade é isso, mas não é só isso). 
Uma das maneiras de ler este poema poderia ser ver aqui o contraste entre um saber meramente livresco e a vida, o enredo da vida, sendo que as velhotas são o saber livresco e a rapariga é essa habilidade para acima de tudo estar vivo. Um modo de viver os livros que não se ligue e não parta para encontrar ou ferir ou criar um eco naquilo que para nós é mais vital - o sentido encontrado ou a procurar, o acumular de meras referências, digamos, para massacrar os outros com a nossa erudição ou com a nossa inteligência hipertrofiada,  é equivalente a ser uma velhinha a quem, percorrida uma vida inteira, tudo o que restou foi a ordem do chá com limão e da má língua. Não estou, por outro lado, a dizer que só aquilo que se liga aos nossos horizontes mais imediatos, aquilo que estabelece uma relação connosco é o que devemos perseguir, não é também isso, porque não podemos viver sem a possibilidade de nos espantarmos com as coisas (é por isso que não podemos querer saber tudo - tudo seria previsível, a vida seria brutalmente chata). A rapariga que conta a história de cama está também ligada ao acto de contar alguma coisa. Mas há uma harmonia entre os dois equilíbrios que as velhas falham. Essa coisa que a expressão «uma maneira de sentir a vida» sintetiza. Para quê encher livros ou cadernos de palavras, bibliotecas de livros se não por isto, o que quer isto possa ser, para apontar para a vida? Quanto mais penso nestas questões, mais me inclino para pensar que este é o aspecto mais básico (e, note-se bem, não o mais utilitário) da nossa relação com a literatura (um burocrata da literatura - a.k.a. tão burocrata de merda como todos burocratas - talvez lhe chamasse «a especificidade do literário» ou alguma treta deste género). Não o prescritivo - deve ser o aspecto mais básico mas o idiossincrático - para mim é e para já não vejo outra maneira que me dê mais jeito para me relacionar com a literatura. 
A melhor coisa acerca do Legado de Humboldt do Bellow é que não é a vida que toma existência pela literatura (estamos todos a gritar por um deusinho alado que não virá mas que nos torna uma espécie de sociedade secreta tão fixe - na verdade, a maior parte do tempo o deus mais evidente é aquele bastante visível do poema de Kavafis, o que abandona António, o deus como mediador e símbolo da perda, da morte, da destruição e do modo como lidamos com estas coisas), é que em Bellow é pela literatura que se vai chegando à vida, a way to make amends with it.

domingo, 27 de maio de 2012

Alguma academia

- Como explica, senhor Citrine, a ascensão e queda de Von Humboldt Fleischer?
- Jovens, que pretendeis fazer com os dados sobre Humboldt: publicar artigos e dar um empurrão às vossas carreiras? Isso é capitalismo puro e duro.

Saul Bellow, O Legado de Humboldt, Salvato Telles de Menezes (trad.), Quetzal, 2012.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Leitura

Muitas vezes roubava dois exemplares dos livros que ele encomendava e ficava com um para ler, por curiosidade. Passei algumas tarde difíceis e maçadoras por causa disso.
Nunca me senti culpado por abandonar textos que não se deixassem ler com entusiasmo, pois certamente não guardaria nada deles, e segui a intuição de Padilla de não me torturar com o que não viesse facilmente. Afinal, ainda não estava em nenhum ramo particular, apenas a experimentar coisas diversas.

Saul Bellow, As Aventuras de Augie March, Quetzal, 2011

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Post idiossincrático

Para os dois que neste blog amam Bellow (a segunda parte de uma entrevista dada em 1988, que tinha permanecido inédita).

sábado, 9 de janeiro de 2010

[Citação]

.....Declarations, resolutions, treaties, theories, congresses, bones of kings, Cromwells, Loyolas, Lenins and czars, hordes of India and China, famines, huddles, massacres, sacrifices, he made me see; Jerusalem against Titus, Hell when Ulysses visited, Paris when they butchered horses in the street. Dead Ur and Memphis. Atoms of near silence, the dead acts, that formed a collective roar. Macedonian sentinels. Subway moles. Mr. Kreindl shoving a cannon wheel with his buddies. Grandma and legendary Lausch in his armor cutaway having an argument in the Odessa railroad station the day the Japanese war broke out. My parents taking a walk by the Humboldt Park lagoon the day I was conceived. Flowery springtime.
.....And I thought there was altogether too much of this to live with. Better forget it, in part. The Ganges is there with its demons and lords; but you have a right also, and merely, to wash your feet and do your personal laundry in it. Or even if you had a good car it would take more than a lifetime to do a tour of all the Calvaries.

Saul Bellow, The Adventures of Augie March

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

um parágrafo de "Dangling Man"

o sol fora coberto neve começava a cair
espargida sobre os poros negros do cascalho
e jazendo em finas tiras nos telhados inclinados
eu podia ver à distância do cimo deste terceiro andar
não longe havia chaminés
o seu fumo cinzento mais claro do que o cinzento do céu
e mesmo à minha frente renques de habitações pobres
armazéns cartazes luminosos bueiros sinais eléctricos
a arder palidamente carros estacionados carros
em movimento ocasionalmente o raro esboço de uma árvore
esses eu inspeccionei com a cabeça contra o vidro
era minha obrigação olhar e colocar a mim mesmo
a invariável questão onde uma partícula de algo algures
ou no passado que testemunhe a favor do homem
não poderia haver dúvidas de que esses cartazes
ruas trilhos casas frios e cegos estavam relacionados
com a vida interior e no entanto dizia a mim próprio
a dúvida era necessária havia vidas organizadas em torno
desses caminhos e casas e elas as casas
digo eram o análogo o que o homem criou
elas eram-no também por meios transcendentais
isso eu não conseguia conceder
tem de haver uma diferença entre coisas e pessoas
e até mesmo entre actos e pessoas
de outro modo as pessoas que aqui viviam
eram na verdade um reflexo das coisas
entre as quais viviam sempre procurei evitar culpá-las
daí a minha leitura diária dos seus jornais
nos seus negócios e políticas nas suas tabernas filmes
assaltos divórcios homicídios eu tentava constantemente
encontrar sinais inequívocos da sua humanidade comum

(recriação poética de um parágrafo de Dangling Man de Saul Bellow)