Se um pintor quisesse juntar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo e a membros de animais de toda a ordem aplicar plumas variegadas, de forma que terminasse em torpe e negro peixe a mulher de bela face, conteríeis vós o riso, ó meus amigos, se a ver tal espectáculo vos levassem? Pois crede-me, Pisões, em tudo a este quadro se assemelharia o livro, cujas ideias vãs se concebessem quais sonhos de doente, de tal modo que nem pés nem cabeça pudessem constituir uma só forma. Direis vós que «a pintores e poetas igualmente se concedeu, desde sempre, a faculdade de tudo ousar». Bem o sabemos e, por isso, tal liberdade procuramos e reciprocamente a concedemos, sem permitir, contudo, que à mansidão se junte a ferocidade e que associem serpentes a aves e cordeiros a tigres. (...)
Em suma, faz tudo o que quiseres, contanto que o faças com simplicidade e unidade.
Horácio, Arte Poética, R. M. Rosado Fernandes (trad.), Editorial Inquérito, 2001.
É neste tom que abre o poema em verso que Horácio dedicou, possivelmente numa data posterior a 14, 13 a.C., aos Pisões, de tal forma que a sua Arte Poética é também conhecida como Epístola aos Pisões.
Enquanto na Poética, esse bloco de notas de Aristóteles, encontramos uma reflexão sobretudo teórica, virada para questões de teorização dos géneros e relativas a uma problemática das artes miméticas (de um modo muito geral), a Arte Poética é bastante prática: como escrever isto ou aquilo ou como não o escrever. De certa forma, pode-se dizer que é uma espécie de curso de Práticas de Escrita mas escrito por um dos maiores poetas da literatura latina e um dos mais influentes a moldar o imaginário poético da literatura ocidental.
Para mim existem três livros acerca de teorização poética na antiguidade que devem forçosamente ser lidos por alguém que se interesse por literatura ou por escrita: Arte Poética de Horácio, Poética de Aristóteles e o Íon de Platão. Podemos sempre querer escapar a tudo o que eles lá dizem, mas devemos conhecer estas obras, porque Platão, Aristóteles, Horácio fixaram e debateram as mesmas questões em relação à literatura que ainda hoje são debatidas por nós. Fizeram-no com uma acuidade notável e muita da nossa problematização (e dos nossos problemas) em relação à literatura são herdeiros deles: o que diferencia tragédia de épica? como , admitindo que existe uma fórmula, se deve escrever poesia e o que é poesia? há um poder pernicioso que torna a literatura «menos recomendável»? os poetas devem ser proscritos, banidos (aqui já estamos sobretudo no domínio da República mas também do Íon, que é dos três livros que indico o meu favorito) da cidade, por uma influência perniciosa que com as suas obras possam exercer? por que é que os homens apreciam tanto as artes miméticas? por que é que gostam de ver imitações de sofrimento?
Estas perguntas, que tipos como Platão, Horácio, Aristóteles colocaram, acabaram por nomear, delimitar e fixar o campo do nosso fascínio pela literatura, em toda a extensão do seu poder e influência. Definiram-na e fizeram dela uma arte. E não foi uma definição pacífica e regular, porque os homens e as suas paixões são sempre os mesmos, variando algumas condições consoante a época.
A estes três livros, de modo a traçar a influência e a história da discussão teórica da literatura na antiguidade, eu juntaria mais alguns, que ajudam a colocar a questão em perspectiva: alguns livros da República (de Platão), a Retórica (de Aristóteles, que detém o recorde de absoluto de livro-mais-escruciante-que-alguma-vez-tive-de-ler-na-vida) e creio que, ainda que para alguns um pouco à margem, entra nesta discussão o Do Sublime de Longino.
Não sou daquelas pessoas que têm a ilusão de que não se pode discutir literatura sem ler isto. Tal como não me conto entre aquelas pessoas que acreditam que é necessário ler Homero para escrever excelente poesia, embora ache que ajuda. Mas estas obras, de nomes tão pesados como Platão, Aristóteles, Horácio, Longino, ajudaram a explicar e a moldar o fascínio dos homens pela literatura. Ao nomeá-lo, criaram-no e ajudam-nos, hoje em dia, a saber o que estamos a discutir, quando discutimos uma fronteira de género ou se tal ou tal peça é uma tragédia ou uma comédia. Toda a literatura é um movimento de continuidade (mesmo onde há ruptura) e o mesmo sucede com a teoria literária. O romance foi durante séculos um género «proscrito», «novo», porque Aristóteles não o contemplou na sua teorização (à data o romance não existia).
Por vezes, sinto uma imensa curiosidade em saber o que ele teria escrito acerca do romance, trata-se, um pouco, do mesmo mecanismo que Borge nomeia, ao aludir à curiosidade que sentia em saber o juízo de John Donne sobre Shakespeare.
Em suma, faz tudo o que quiseres, contanto que o faças com simplicidade e unidade.
Horácio, Arte Poética, R. M. Rosado Fernandes (trad.), Editorial Inquérito, 2001.
É neste tom que abre o poema em verso que Horácio dedicou, possivelmente numa data posterior a 14, 13 a.C., aos Pisões, de tal forma que a sua Arte Poética é também conhecida como Epístola aos Pisões.
Enquanto na Poética, esse bloco de notas de Aristóteles, encontramos uma reflexão sobretudo teórica, virada para questões de teorização dos géneros e relativas a uma problemática das artes miméticas (de um modo muito geral), a Arte Poética é bastante prática: como escrever isto ou aquilo ou como não o escrever. De certa forma, pode-se dizer que é uma espécie de curso de Práticas de Escrita mas escrito por um dos maiores poetas da literatura latina e um dos mais influentes a moldar o imaginário poético da literatura ocidental.
Para mim existem três livros acerca de teorização poética na antiguidade que devem forçosamente ser lidos por alguém que se interesse por literatura ou por escrita: Arte Poética de Horácio, Poética de Aristóteles e o Íon de Platão. Podemos sempre querer escapar a tudo o que eles lá dizem, mas devemos conhecer estas obras, porque Platão, Aristóteles, Horácio fixaram e debateram as mesmas questões em relação à literatura que ainda hoje são debatidas por nós. Fizeram-no com uma acuidade notável e muita da nossa problematização (e dos nossos problemas) em relação à literatura são herdeiros deles: o que diferencia tragédia de épica? como , admitindo que existe uma fórmula, se deve escrever poesia e o que é poesia? há um poder pernicioso que torna a literatura «menos recomendável»? os poetas devem ser proscritos, banidos (aqui já estamos sobretudo no domínio da República mas também do Íon, que é dos três livros que indico o meu favorito) da cidade, por uma influência perniciosa que com as suas obras possam exercer? por que é que os homens apreciam tanto as artes miméticas? por que é que gostam de ver imitações de sofrimento?
Estas perguntas, que tipos como Platão, Horácio, Aristóteles colocaram, acabaram por nomear, delimitar e fixar o campo do nosso fascínio pela literatura, em toda a extensão do seu poder e influência. Definiram-na e fizeram dela uma arte. E não foi uma definição pacífica e regular, porque os homens e as suas paixões são sempre os mesmos, variando algumas condições consoante a época.
A estes três livros, de modo a traçar a influência e a história da discussão teórica da literatura na antiguidade, eu juntaria mais alguns, que ajudam a colocar a questão em perspectiva: alguns livros da República (de Platão), a Retórica (de Aristóteles, que detém o recorde de absoluto de livro-mais-escruciante-que-alguma-vez-tive-de-ler-na-vida) e creio que, ainda que para alguns um pouco à margem, entra nesta discussão o Do Sublime de Longino.
Não sou daquelas pessoas que têm a ilusão de que não se pode discutir literatura sem ler isto. Tal como não me conto entre aquelas pessoas que acreditam que é necessário ler Homero para escrever excelente poesia, embora ache que ajuda. Mas estas obras, de nomes tão pesados como Platão, Aristóteles, Horácio, Longino, ajudaram a explicar e a moldar o fascínio dos homens pela literatura. Ao nomeá-lo, criaram-no e ajudam-nos, hoje em dia, a saber o que estamos a discutir, quando discutimos uma fronteira de género ou se tal ou tal peça é uma tragédia ou uma comédia. Toda a literatura é um movimento de continuidade (mesmo onde há ruptura) e o mesmo sucede com a teoria literária. O romance foi durante séculos um género «proscrito», «novo», porque Aristóteles não o contemplou na sua teorização (à data o romance não existia).
Por vezes, sinto uma imensa curiosidade em saber o que ele teria escrito acerca do romance, trata-se, um pouco, do mesmo mecanismo que Borge nomeia, ao aludir à curiosidade que sentia em saber o juízo de John Donne sobre Shakespeare.
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