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segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Virá a morte e terá os teus olhos

Virá a morte e terá os teus olhos -
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, insone,
surda como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês em cada manhã
quando sobre ti só te inclinas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós
que és a vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos o remoinho mudos.

Cesare Pavese, Trabalhar Cansa, Carlos Leite (trad.), Livros Cotovia, 1997.

Conversar

Além disso, eu gostava de Nuto porque nos entendíamos e ele me tratava como amigo. Tinha já aqueles olhos tristes, de gato, e sempre que falava, concluía: «Se me engano, corrige-me». Foi assim que comecei a compreender que não se conversa apenas para dizer «fiz isto», «fiz aquilo», «comi e bebi», mas para exprimir uma ideia, para compreender o mundo. Dantes não tinha pensado nisso.

Cesare Pavese, A Lua e as Fogueiras, Manuel Seabra (trad.), Colecção Mil Folhas, Público, 2002.

Livros

Ele levantava aqueles livros, batia-lhes para tirar o mofo, mas, tendo-os um pouco nas mãos, elas gelavam. Eram coisas dos avós, do pai de Sor Matteo, que estudara em Alba. Havia-os escritos em latim, como o livro de missa, outros com figuras de mouros e animais, e foi deste modo que conheci o elefante, o leão, a baleia. Dentre eles Nuto escolhia algum e levava-o escondido debaixo do pull-over. «De qualquer maneira», dizia, «ninguém já pensa em usá-los.»
- Que vais fazer com isso? - tinha-lhe perguntado. - Em tua casa já não compram o jornal?
- São livros - disse ele. - Quanto mais se lerem melhor. Serás sempre um ignorante se não leres livros.

Cesare Pavese, A Lua e as Fogueiras, Manuel Seabra (trad.). Colecção Mil Folhas, Público, 2002.

sábado, 26 de setembro de 2009

Um Poema de Pavese: A casa

O homem só escuta uma voz calma,
com um olhar semi-cerrado, como se um suspiro
lhe soprasse no rosto, um suspiro amigo
que ascende, incrível, de um tempo que se perdeu.

O homem só escuta a voz antiga
que os seus pais, no seu tempo, terão escutado, clara
e recolhida, uma voz que, como o verde
dos charcos e das colinas, escurece ao anoitecer.

O homem só conhece uma voz de penumbra,
que afaga, que sobe nos tons calmos
de uma nascente secreta: bebe-a absorto,
olhos fechados, e não parece que a tenha perto.

É a voz que outrora demorou o pai
de seu pai e cada um dos mortos do seu sangue.
Uma voz de mulher que soa secreta
por sobre o limiar da casa, na escuridão que cai.

Cesare Pavese, Disaffections: Complete Poems 1930 - 1950, Geoffrey Brock (trad.), Copper Canyon Press, 2002.

(Versão minha, a partir do italiano e da tradução inglesa.)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Fumadores de Papel

Trouxe-me para ouvir a sua banda. Senta-se a um canto
e pega no clarinete. Começa um chinfrim infernal.
Lá fora, um vento furioso e as bofetadas, entre os relâmpagos,
da chuva fazem com que haja cortes de luz
de cinco em cinco minutos. Cá dentro, às escuras,
os rostos transtornados esforçam-se por tocar de cor
uma música de dança. Enérgico, o meu pobre amigo
dirige, lá do fundo. E o clarinete torce-se,
rompe a confusão dos sonos, eleva-se, alivia-se
como uma alma solitária, num silêncio seco.

Esses pobres cobres amolgam-se com demasiada frequência:
camponesas as mãos que primem os registos, camponesas
as cabeças teimosas que mal levantam os olhos da terra.
Miserável sangue, derreado, extenuado
de tanto lidar, sente-se mugir
nas notas, e o meu amigo dirige-os com dificuldade,
ele que tem as mãos calejadas de dar ao formão,
de manejar a galorpa, de dar cabo da vida.

Teve o seu tempo e camaradas e tem só trinta anos.
É dos de a seguir à guerra, que cresceram com fome.
Também ele veio para Turim, à procura duma vida,
e encontrou a injustiça. Aprendeu a trabalhar
nas fábricas sem um sorriso. Aprendeu a medir
pela sua própria fadiga a fome dos outros,
e em todo o lado encontrou injustiças. Tentou ter paz
caminhando ensonado pelas avenidas sem fim
durante a noite, mas apenas viu os candeeiros aos milhares,
lucidíssimos, sobre a iniquidade : mulheres roucas, bêbados,
fantoches cambaleantes, perdidos. Chegara a Turim no inverno,
no meio das luzes das fábricas e das nuvens de fuligem;
e sabia o que era o trabalho. Aceitava o trabalho
como um duro destino do homem. Mas que todos os homens
o aceitassem e houvesse justiça no mundo.
Mas encontrou camaradas. Sofria os longos discursos
e teve de os ouvir, à espera que acabassem.
Encontrou camaradas. Em todas as casas havia famílias.
A cidade estava cercada por eles. Sentiam no íntimo
um desespero tal que chegava para vencer o mundo.

Toca com secura esta noite, apesar dos músicos
que ensinou um a um. Não presta atenção ao fragor
da chuva nem à luz. O rosto severo,
mordendo o clarinete, fixa atento uma dor.
Vi-lhe estes olhos uma noite em que, sozinhos,
com o irmão, mais triste do que ele dez anos,
passávamos o serão a uma luz exígua. O irmão estudava
um torno inútil que ele mesmo construíra.
E o meu pobre amigo acusava o destino
que os tinha atado à galorpa e ao malhete
para sustentar dois velhos que não tinham pedido.

De repente gritou
que se o mundo sofria, se a luz do sol
arrancava blasfémias, não era o destino:
o culpado era o homem. Ao menos pudéssemos partir,
rebentar de fome em liberdade, dizer não
a uma vida que utiliza o amor e a piedade,
a família, o bocado de terra, para nos atar as mãos.

Cesare Pavese, Trabalhar Cansa, Carlos Leite (trad.), Livros Cotovia, 1997.

As avelaneiras

Mas não esperava não encontrar as avelaneiras. A novidade desencorajou-me a ponto que não chamei, não entrei na eira. Compreendi então o que significa não ter nascido num lugar, não o ter no sangue, não estar já meio sepultado ao lado dos velhos, tanto que uma simples mudança de cultivo não nos afecte. Certamente, ainda havia manchas de avelaneiras na colina. Podia ainda reencontrar-me.

Cesare Pavese, A Lua e as Fogueiras, Manuel Seabra (trad.). Colecção Mil Folhas, Público, 2002.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Os contos, «O Campo de Milho»

Durante o tempo de licenciatura, ganhei o hábito de ler livros de contos. Gosto tanto de contos que uma vez escolhi uma cadeira na faculdade só porque só se iam dar livros de contos. Nessa cadeira, para além da terminologia do Gérard Genette relativa à narrativa, aprendi a observar melhor uma coisa que para mim já era bastante óbvia: num conto todas as características de um escritor surgem mais concentradas porque a extensão do texto é menor, é preciso mais mestria para criar determinado efeito e para não o desperdiçar.
Um livro de contos de que gosto muito é o Férias de Agosto, de Cesare Pavese (acerca do qual escrevi mais detalhadamente em tempos). Neste livro Pavese escreve uma frase exactamente contrária a uma que foi escrita por Borges. Borges escreveu num texto intitulado «Posse de Outrora» o seguinte: Só é nosso aquilo que perdemos. Pavese escreve num dos contos desta obra (já não me lembro qual): só é nosso aquilo que sempre foi nosso.
Há textos nesta colectânea que nos deixam perceber de que forma deveria surgir ao autor o momento da escrita, de que forma ele o percebia. Por exemplo, quando, num dos contos, o narrador diz:«No entanto, a ideia do mar veio-me a mim, não a ele. Gosto não sabe o que é a gente pôr-se diante de uma casa e olhar para ela até que já não se pareça com uma casa.» (Este excerto pertence ao conto «O Mar»).
Deixo-vos um excerto, tirado de um conto intitulado «O Campo de Milho»:

O que me diz o campo de milho nos breves instantes em que ouso contemplá-lo é o que diz aquele que se fez esperar e sem o qual nada se podia fazer. «Eis-me», diz simplesmente quem se fez esperar, mas ninguém se livra daquele olhar que se deita como a um patrão. Em vez disso, por entre as hastes baixas, deito ao céu um olhar furtivo, como quem olha para além do objecto, quase esperando que este se descubra por si, bem sabendo que nada pode garantir que isso já não o refreie e que um gesto demasiado brusco pode fazer transbordar funestamente todas as coisas. Nada me deve aquele campo para que eu possa fazer outra coisa além de calar-me e deixá-lo entrar em mim. E o campo e os caules secos a pouco e pouco sussurram-me e fixam-se-me no coração. Entre nós não surgem palavras. As palavras foram ditas há muito.

Cesare Pavese, in "O Campo de Milho", Férias de Agosto, Ana Hatherly (trad.), Quasi Edições, 2008.