domingo, 23 de janeiro de 2011

«E penso que deixarei de ver-te»

Há uma imagem no Hino Homérico a Apolo, que já aqui mencionei de resto, em que se fala do espectáculo que era a visão dos Jónios em Delos. Durante o tempo do festival em honra do deus Apolo eles desciam à ilha, vindos de um lugar que hoje é  na Turquia (a Jónia é hoje a Anatólia), e durante dias cantavam, dançavam, organizavam concursos de pugilato nas avenidas principais da ilha. Era um espectáculo vê-los com as suas mulheres e filhos, de tal forma que o poeta os compara aos deuses. Um apontamento à margem da música, feito com uma enorme concisão. Homero não diz mas quer dizer: estes homens na sua alegria são absolutos, ficam fora do tempo no modo como honram um deus, na sua encantatória celebração de Febo, deus dos oráculos, da música e das setas. 
Lembra-me agora outra coisa isto, esta imagem do espectáculo que era ver os Jónios em Delos.  Lembra-me duas linhas numa música de Leonard Cohen: "New York is cold but I like where I'm living, there's music on Clinton Street all through the evening". Podiam ser só duas imagens diferentes de duas avenidas onde houve música, em dois lugares e em dois tempos do mundo muito distantes e muitos diferentes. O único paralelo a estabelecer, nem esse sequer suficientemente sólido, seria o de que Leonard Cohen e Homero são dois tipos de perfomers parecidos, ambos story-tellers e song-writers. Mas parece-me que  os dois excertos falam ambos do mesmo, este fascínio do homem perdido na música, a afinidade que podemos sentir por uma imagem de canto e dança, uma coisa tão distante, tão arredada da nossa finitude, a música como intervalo de tudo onde o tempo se suspende sob as nossas cabeças e somos espectaculares, íntegros, inteiros, como os deuses sem morte, disse Homero ao ver os Jónios, melhores no nosso melhor instante do que a  própria passagem do tempo. E isto fez-me pensar noutra coisa. 
Fez-me pensar naqueles versos de Ruy Belo em «Muriel», quando ele diz qualquer coisa como «eu aprendi a ver na minha infância/ vim mais tarde a saber a importância desse verbo para os gregos», e um ou dois versos antes, penso, ele tinha escrito «e penso que deixarei de ver-te». Ruy Belo fala aqui do verbo oráo. Para os gregos, o tempo perfeito de oráo, ver, que se diz oida, não significa só eu vi, significa eu sei. Ruy Belo evoca esta dupla certeza, esta tristeza dupla, o homem em absoluto como em Homero, que é o homem inebriado na música em Leonard Cohen, são em Ruy Belo este que se quebra, o que sabe que deixará de te ver. A alusão a um verbo que tem de estar no passado para significar saber e para apontar a inexorabilidade do futuro é, ainda assim, um uso do tempo que o transgride. 
Pensei  então que estas três coisas falavam todas da mesma, parece que há um momento algures no tempo em que o tempo não nos pode esmagar. E tirando como conclusão uma premissa que sei falsa, enquanto fazias sinal a um táxi para que nos trouxesse de novo de volta a casa, noite fria e desagradável, peça de merda no CCB (Mãe Coragem e Seus Filhos de Brecht, Brecht não merecia aquilo), lembrei-me do carpe diem de Horácio. Penso que nunca nos deixaremos de ver enquanto entre nós houver esta vaga, incerta, tão gasta e sem vergonha, máxima do Augustano, a música em Clinton Street, a Madrid de Ruy Belo, os Jónios em Delos. Todas as coisas em que nos podemos sentir gratos sem saber muito bem a quê e não importar, isso que é outra coisa maior, a generosidade necessária à vida que Homero tão bem explanou no mais cruel dos poemas, a Ilíada, claro, pensei então que nenhum deus seria melhor par de Homero, melhor metáfora dos homens, do que esse tão cruel quanto belo Apolo. Podemos deixar de ver e saber, mas não nos pode ser tirado o ter vivido já.

1 comentário:

  1. Lindo texto.
    Lembrei-me de Linceu, o argonauta de olhos de lince, capaz de penetrar os sólidos.
    Em Pluto (210), Cremilo promete:
    βλέποντ᾽ ἀποδείξω σ᾽ ὀξύτερον τοῦ Λυγκέως.
    "I'll make you more sharp-sighted than Lynceus", na tradução de O'Neill.
    Mas, pensando cá, será que isso seria mesmo bom?
    Abraço.

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