domingo, 16 de janeiro de 2011

Marguerite Yourcenar, «Memórias de Adriano»

É estranho, a minha primeira imagem deste livro pertence a outro autor: é a do princípio do poema de Pessoa (sobre Antínoo): «era em Adriano fria a chuva fora», este verso é assim ou é parecido. Imagino o imperador encanecido, fora do seu palácio de mármore, no meio de nevoeiro e da chuva torrencial, a toga enlameada a roçar o chão, os pretorianos aos berros com ele, eh, volte para dentro imperador, ele ombros descaídos,  absorto, uma mão a tentar segurar parte do pano, da outra roendo as unhas, um homem como se fosse um naufrágio. A minha coisa com o livro de Yourcenar: Adriano, se não me falha a memória nisto, esperemos que não, penso que não, era um sábio, era um sofista, um animal político (para efeitos práticos inverta-se aqui a máxima de Aristóteles). O tipo mais poderoso do mundo, este mestre de marionetas que sabe quando está a puxar o fio e quando está a ser puxado, quanto deve condescender ou deixar que sejam com ele condescendente. Tudo calculado: o que ele sabe, o que ele pode saber, a sua vantagem sobre outros. E depois o que acontece é que este homem infinitamente sábio e hábil não se pode defender da vida. Antínoo é a sua terrível lição. A sua prova no labirinto. E Yourcenar conta-nos de como a vida o esmaga, que coisas se lhe escapam por entre os dedos, preciosa areia correndo, nada a pode deter, e de como ainda assim, há qualquer coisa nele que se escapa incólume. Não um ofício de memória, o que pode recordar e reclamar para si como tendo sido ele algures no tempo, é outra coisa, é por isso que o livro de Yourcenar é tão bom. Adriano. Há esta categoria de homens que guardam memórias, para quem a dada altura tudo o que podem recordar está destinado a tornar-se um veneno, o que foi bom e o que foi mau indiferentemente, porque para tudo eles conseguem calcular uma forma de posse. E Adriano até podia ter sido isso. Mas Adriano não é destes, é por isso que Yourcenar lhe escreveu as memórias. Adriano viveu, não para que pudesse guardar uma relação de tudo isso, memórias que a princípio alimentassem o seu desespero e depois a sua mesquinhez, mas viveu, isto é, foi inteiro em tudo quanto foi (Ricardo Reis) e compreendeu que havia uma parte em que apenas podia abdicar. Por isso uma das epígrafes (se não me falha a memória) do livro é: natura deficit, fortuna mutatur, deus omnia cernit, o que numa tradução eventualmente tosca quer dizer: a natureza falha-nos, a sorte muda, do alto um deus tudo observa. Isto que pertence ao deus, Adriano não reclama para si. Grava em mármore a imagem do que pôde amar, do que mais amou e era uma beleza tão terna tão efémera, como quem pudesse disputar com um deus o direito que lhe sobra, o de dizer: «isto é uma imagem de vida, eu sei quanto num corredor qualquer do tempo isto é belo, com uma parte da minha teimosia e arrebatamento nisto contida, e continuará sendo». Quando discutimos sobre o imperecível, o possivelmente imperecível, lembro-me de Marguerite Yourcenar e lembro-me de Adriano.

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