sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Uma nota sobre José Saramago

Uma vez, falando sobre Beckett, disse-me um professor que no fim de lidos aqueles textos o que ficava era a respiração. Como depois de uma longa corrida, não sobra mais nada, só o arquejar, a noção de um ritmo vital. Com Saramago penso que é um pouco ao contrário, a respiração não é o que fica depois do texto, o que em teoria não se chama mas é chegar ao horizonte de expectativa (ora aqui uma terminologia teórica com a qual poderia compactuar), a respiração contém-se no texto.  
O meu teórico da literatura favorito dizia que o romance era a épica de um mundo sem deus, daí a maior parte dos romances assumirem a forma da biografia ou neles serem relatados factos biográficos. Isto nem sempre é linear, obviamente. Argumenta ele que o objectivo disto é produzir uma imitação de vida, numa busca por uma totalidade entre homem e universo que ficara perdida para sempre, desde que a filosofia viera fazer umas quantas perguntas à poesia (passagem da épica para a tragédia). Saramago subverte isto, porque nos seus textos constantemente se diz «o divino não está fora de nós, não está numa forma fora da vida, o divino somos nós». É maravilhoso isto. Essa é uma coisa de que gosto muito em Saramago, o antropocentrismo. Há romances dele que são muito «renascentistas», descaradamente à Pico della Mirandola: magnum miraculum est homo (De Hominis Dignitate Oratio, tinha 23 anos quando escreveu esta frase Pico). E gosto da maneira como às vezes ele trava a respiração dos seus próprios textos porque há uma intuição que ele vê de relance e que o força a deter-se, como acontece numa conversa que ele encena no Memorial do Convento, vão duas personagens a falar sobre música (Domenico Scarlatti à conversa com Bartolomeu Lourenço de Gusmão?), a música o silêncio o silêncio a música, às tantas o italiano diz: «Disse o italiano, encolhendo os ombros, Fica o silêncio depois da música e depois do sermão, que importa que se louve o sermão e aplauda a música, talvez só o silêncio exista verdadeiramente.» É uma intuição perfeita, entretecida no tecido do texto, quase que nem damos por ela, atravessa-nos como se estivéssemos a respirar, como quem pusesse pé numa música. Isto faz parte da poesia. As melhores coisas em literatura são sempre poesia.

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