sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

um espectáculo que não pedimos

I
como aqueles jogadores de sabre
que horas a fio se debatem por um fio presos
tão austeros nas suas roupagens brancas
os seus rostos escondidos por negras máscaras de rede
uma vez por outra em esforço algum grita
uma maneira de dança só ritmo e movimento
nada mais quase

II
o entardecer desce à terra vermelha
detendo-se no vermelho barro dos tijolos na manhã
no porto junto ao canal está o que resta do último sol do dia deixar
para trás o quarto de namorados pequeno desarrumado agora vazio
paredes amarelecidas quantas horas por sobre o ombro nos fitam

III
que espécie de horas por sobre o ombro nos fitam
pedia-te uma descrição cheia de pormenores vividos
recordarias por exemplo os candeeiros acesos
por entre o nevoeiro na avenida das dez da manhã
o rapaz ruivo e sardento chutando uma bola contra a ventania
o pavio ainda aceso o que restava do álcool ardendo
debaixo do balão de café um cheiro de alfazema e madeira velha
os dias decantados as bancadas brancas da cozinha

IV
o atleta que corre na noite das seis da tarde
todo vestido de negro vigiando a cada volta
o relógio mágico que lhe mede a pulsação
a distância percorrida em torno dos campos de rugby
onde um desajeitado coro encena um espectáculo
de sangue e lama um inútil espectáculo que não pedimos
que não saberíamos dizer que função cumpre no poema

V
com uma faca romba a mulher do andar de cima
arranjava o peixe deixava-o dentro de uma taça
de água salgada as escamas eram lançadas como cinza
pela janela eu ligava o rádio a que faltavam botões
trabalhava durante a manhã dançava tardes inteiras
estúpida súbita energia um presságio favorável
os anzóis das tardes onde nunca se enredaram os peixes
vermelhos que outros pescaram a alegria faz-se de pouco
às vezes basta um bilhete de cinema a hora marcada para sair

VI
pacientemente falhámos os encontros
combinados à boca do metro por túneis
subterrâneos cinzentos entrávamos
atrasados no labirinto da cidade uma respiração
que se acelera uma alegria de não sei porquê
efémera como flores que o tempo trespassa
todas as alegrias penso agora são efémeras
um deus que não sabemos se é generoso as distribui
acreditemos que sabiamente com alguma justiça
também as tempera de alguma tristeza como
a mulher no andar de cima funcho sal limão
o toque negro e vermelho de alguma pimenta

VII
para efeitos de sequência lógica do argumento
podias dizer agora que te  perdes em lojas
de especiarias esta indecisão que a espaços
visitas podias perguntar-te que procuras
mas é um lugar comum demasiado
comum para que lhe sobreviva qualquer poema
e até neste aristóteles reprovaria esse topos
mas penso que poderia sorrir a esta imitação desajeitada
feita com bonecos de papel e cera já o deus
que se apieda dos nossos dias nada sabe de ironia
podia até rir-se fingir que percebeu a graça
mas  na verdade a ironia é apenas nossa

VIII

como se nenhum fio nos prendesse pelas costas
somos como aqueles jogadores de sabre que por vezes
sentem ao avançarem contra o adversário que podem
tropeçar nas próprias sapatilhas escutam por isso
o roçar da borracha no chão esperam que seja o adversário
não eles a tropeçar ao fim do dia regressam
nos barcos da noite pelo canal aos quartos pequenos
onde tomam banhos de água tépida e se vestem para sair
não sem antes terem cuidadosamente reservado o bilhete de cinema
enquanto dançam de pés descalços no soalho de madeira a descolar
a encenação dos gestos é sempre repetida mas eles não diriam
(demasiado ingrato e impertinente) o peso exacto
do cobre nos dias  e outra coisa não podem sentir
que uma gratidão tão incerta planando na luz artificial

Tatiana Faia

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