terça-feira, 12 de junho de 2012

Humildemente


(…) o pior foi quando eu, no mês de Março, subi a casa do humilde Súrikov para ver como eles tinham deixado “enregelar”, segundo a expressão dele, a criança, e sem querer soltei uma risada sobre o cadáver do seu bebé e voltei a explicar a Súrikov que “a culpa era dele próprio”. Aí, os seus lábios de joão-ninguém tremeram e, agarrando-me com uma mão pelo ombro, apontou-me a porta e disse-me em voz baixa “Saia!” Saí e gostei de sair, de ter sido expulso, naquele mesmo momento em que ele me expulsava adorei, imediatamente; mas, mais tarde, as palavras dele ao expulsar-me, quando as recordava, produziam em mim ainda durante muito tempo, a impressão grave de uma estranha e desdenhosa piedade por ele, uma piedade que não me apetecia nada sentir. Mesmo no momento de ele ser insultado daquela maneira (sei que o insultei, o ofendi, mesmo sem ter essa intenção), mesmo nesse momento o homenzinho foi incapaz de zangar-se! Não foi por zanga que lhe tremeram então os lábios, juro: agarrou-me no braço e pronunciou o seu magnífico “saia!” sem qualquer zanga. Havia nele dignidade, mesmo muita dignidade (o que até nem dizia muito bem com ele, pelo que havia também muita comicidade na situação), mas não havia zanga. Acho que começou então, de repente, a desprezar-me. Desde então, por duas ou três vezes, quando o encontrava nas escadas, tirava-me o chapéu, o que nunca fizera dantes, mas não parava ao pé de mim, como era seu hábito, antes me passava ao lado, todo confuso. Mesmo que me desprezasse, fazia-o à sua maneira: “desprezava humildemente”.

Fiódor Dostoiévski, O Idiota. Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Editorial Presença, 2001.

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