(…) o pior foi quando eu, no mês de
Março, subi a casa do humilde Súrikov para ver como eles tinham
deixado “enregelar”, segundo a expressão dele, a criança, e sem
querer soltei uma risada sobre o cadáver do seu bebé e voltei a
explicar a Súrikov que “a culpa era dele próprio”. Aí, os seus
lábios de joão-ninguém tremeram e, agarrando-me com uma mão pelo
ombro, apontou-me a porta e disse-me em voz baixa “Saia!” Saí e
gostei de sair, de ter sido expulso, naquele mesmo momento em que ele
me expulsava adorei, imediatamente; mas, mais tarde, as palavras dele
ao expulsar-me, quando as recordava, produziam em mim ainda durante
muito tempo, a impressão grave de uma estranha e desdenhosa piedade
por ele, uma piedade que não me apetecia nada sentir. Mesmo no
momento de ele ser insultado daquela maneira (sei que o insultei, o
ofendi, mesmo sem ter essa intenção), mesmo nesse momento o
homenzinho foi incapaz de zangar-se! Não foi por zanga que lhe
tremeram então os lábios, juro: agarrou-me no braço e pronunciou o
seu magnífico “saia!” sem qualquer zanga. Havia nele dignidade,
mesmo muita dignidade (o que até nem dizia muito bem com ele, pelo
que havia também muita comicidade na situação), mas não havia
zanga. Acho que começou então, de repente, a desprezar-me. Desde
então, por duas ou três vezes, quando o encontrava nas escadas,
tirava-me o chapéu, o que nunca fizera dantes, mas não parava ao pé
de mim, como era seu hábito, antes me passava ao lado, todo confuso.
Mesmo que me desprezasse, fazia-o à sua maneira: “desprezava
humildemente”.
Fiódor Dostoiévski, O Idiota. Nina Guerra e Filipe Guerra (trad.), Editorial Presença, 2001.
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