Penso nas coisas que poderiam existir e não existiram.
O tratado de mitologia saxónica que Beda não escreveu.
A obra inconcebível que talvez a Dante fosse dado entrever,
Depois de corrigir o último verso da Comédia.
A história sem a tarde da Cruz e a tarde da cicuta.
A história sem o rosto de Helena.
O homem sem os olhos, que nos ofereceram a lua.
Nas três jornadas de Gettysburg a vitória do Sul.
O amor que não partilhámos.
O dilatado império que os Viquingues não quiseram fundar.
O orbe sem a roda ou sem a rosa.
O juízo de John Donne sobre Shakespeare.
O outro corno do Unicórnio.
A ave fabulosa da Irlanda, que está em dois lugares ao mesmo tempo.
O filho que não tive.
Jorge Luís Borges, in História da Noite, Obras Completas: 1975 - 1985, Fernando Pinto do Amaral (trad.) Editorial Teorema, 1998.
Borges, se fosse vivo, faria hoje 110 anos, nasceu a 24 de Agosto de 1899. Transcrevi este poema porque é um poema dele de que gosto muito, e que permite ver alguns dos aspectos que são muito próprios da poesia de Borges: a sua imensa erudição, que era , em minha opinião, sempre apoiada e alimentada pela sua imaginação.
É preciso ter imaginação para aludir a outras possibilidades da história: a história sem o rosto de Helena, sem a tarde da cicuta, sem a obra que Dante podia ter escrito e não escreveu porque é surpreendido pela morte... Há uma beleza melancólica nas possibilidades que Borges sugere. Nomear o que não foi é olhar para trás e ver a outra face da moeda, há uma beleza grave em tudo isso. O que podia ter sido é a impossibilidade, e o poema termina com o verso «O filho que não tive», há um lamento pessoal que torna este poema comum a toda a gente, para o sujeito-poético (como nos ensinam na escola que se chama quem fala no poema, se bem que às vezes discordo desta terminologia) foi o filho que ele não teve. O leitor lê o último verso e pensa no que para ele poderia ter sido, o que já se perdeu e é hoje impossível. E depois sente-se um certo alento, há muitas coisas importantes que podiam ter sido e não foram.
É isso que eu gosto em Borges, ele nomeia sempre e demonstra algo de belo e precioso ao seu leitor, regra geral de uma forma inesperada. Sempre achei Borges não um Homero, mas uma espécie de Vergílio. Ele era mesmo muito parecido com Vergílio, na erudição, na imensa consciência da arte que subjaz à escrita, no perfeccionismo, no enredo intricado e colorido das suas histórias. Se eu não tivesse aprendido com Vergílio que haec sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt, tinha lido, por exemplo «O outro», conto de O Livro de Areia, e tinha ficado a saber. «O Outro», de resto, é à sua maneira uma espécie de «Things That Might Have Been», e um dos melhores contos de Borges.
O tratado de mitologia saxónica que Beda não escreveu.
A obra inconcebível que talvez a Dante fosse dado entrever,
Depois de corrigir o último verso da Comédia.
A história sem a tarde da Cruz e a tarde da cicuta.
A história sem o rosto de Helena.
O homem sem os olhos, que nos ofereceram a lua.
Nas três jornadas de Gettysburg a vitória do Sul.
O amor que não partilhámos.
O dilatado império que os Viquingues não quiseram fundar.
O orbe sem a roda ou sem a rosa.
O juízo de John Donne sobre Shakespeare.
O outro corno do Unicórnio.
A ave fabulosa da Irlanda, que está em dois lugares ao mesmo tempo.
O filho que não tive.
Jorge Luís Borges, in História da Noite, Obras Completas: 1975 - 1985, Fernando Pinto do Amaral (trad.) Editorial Teorema, 1998.
Borges, se fosse vivo, faria hoje 110 anos, nasceu a 24 de Agosto de 1899. Transcrevi este poema porque é um poema dele de que gosto muito, e que permite ver alguns dos aspectos que são muito próprios da poesia de Borges: a sua imensa erudição, que era , em minha opinião, sempre apoiada e alimentada pela sua imaginação.
É preciso ter imaginação para aludir a outras possibilidades da história: a história sem o rosto de Helena, sem a tarde da cicuta, sem a obra que Dante podia ter escrito e não escreveu porque é surpreendido pela morte... Há uma beleza melancólica nas possibilidades que Borges sugere. Nomear o que não foi é olhar para trás e ver a outra face da moeda, há uma beleza grave em tudo isso. O que podia ter sido é a impossibilidade, e o poema termina com o verso «O filho que não tive», há um lamento pessoal que torna este poema comum a toda a gente, para o sujeito-poético (como nos ensinam na escola que se chama quem fala no poema, se bem que às vezes discordo desta terminologia) foi o filho que ele não teve. O leitor lê o último verso e pensa no que para ele poderia ter sido, o que já se perdeu e é hoje impossível. E depois sente-se um certo alento, há muitas coisas importantes que podiam ter sido e não foram.
É isso que eu gosto em Borges, ele nomeia sempre e demonstra algo de belo e precioso ao seu leitor, regra geral de uma forma inesperada. Sempre achei Borges não um Homero, mas uma espécie de Vergílio. Ele era mesmo muito parecido com Vergílio, na erudição, na imensa consciência da arte que subjaz à escrita, no perfeccionismo, no enredo intricado e colorido das suas histórias. Se eu não tivesse aprendido com Vergílio que haec sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt, tinha lido, por exemplo «O outro», conto de O Livro de Areia, e tinha ficado a saber. «O Outro», de resto, é à sua maneira uma espécie de «Things That Might Have Been», e um dos melhores contos de Borges.
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