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segunda-feira, 6 de maio de 2013

o purgatório acabou

   ela estendida na cama a coçar a barriga da perna e eu a hesitar se a atirava ou não pela varanda para assistir aos nove andares da queda, ao remoinho das saias, aos molinetes dos braços, eu, após o baque no alcatrão, a tirar um espumante comemorativo da despensa, a informar o bicho

- Podes sair do reposteiro, gato, que o purgatório acabou

   finalmente dona do meu tempo, finalmente silêncio, finalmente sossego, o regresso a casa sem promessa de inferno, sem lágrimas nem gritos a aguardarem-me


António Lobo Antunes, A morte de Carlos Gardel

sexta-feira, 3 de maio de 2013

     e no entanto as trevas acumulavam-se na sala a partir da praia lá em baixo (o nosso andar fica quase todo o tempo muito acima do sol), as sombras das gaivotas deslocavam-se no tecto, devorando a lâmpada na trança do fio como uma lágrima inflamada e eu aqui, com medo da noite, sozinha à tua espera, com medo do rumoroso silêncio sem arbustos que a noite traz consigo, atenta ao assobio do elevador, ao som da chave na porta, à tua voz

António Lobo Antunes, A morte de Carlos Gardel

segunda-feira, 29 de abril de 2013

até não sobrar de Lisboa senão o grito dos pavões nas colinas desertas

um desses broches baratos, de cercadura cromada, que representam um perfil de mulher de vaso grego, e eu a pensar, Iolanda, que detesto o Aquário, que detesto aquelas salas de peixes beiçudos, que preferia ir ver o mar a Caxias ou a Algés onde os esgotos vomitam a cidade no rio, becos inteiros, casinhas, esplanadas, senhoras à janela, carvoarias e tabernas, até não sobrar de Lisboa senão o grito dos pavões nas colinas desertas.

António Lobo Antunes, A ordem natural das coisas

quinta-feira, 18 de abril de 2013

a celebração pânica



Cada vez mais me parece que a literatura deve ser um festival das palavras, uma celebração pânica (no sentido grego), uma festa pagã, e os personagens simples vozes que deslizam cantando ou cochichando páginas fora.

António Lobo Antunes, D'este viver aqui neste papel descripto

domingo, 14 de abril de 2013

"Ontem, não, sábado, na consulta, perguntei a idade a um velho muito velho, com um pau a servir de bengala em cada mão. Respondeu o Séneca que nós os brancos é que sabemos escrever, e que eles, os pretos, só sabem nascer! Há-de haver Homeros neste fim do mundo de pantanosas areias... A gente ouve coisas que nos deixam em estátuas de sal!" 

António Lobo Antunes, D'este viver aqui neste papel descripto

sexta-feira, 5 de abril de 2013

"A casa, agora. Eu gostava de a ver forrada de prateleiras para os livros por todos os lados, com algum - pouco - espaço livre para os quadros, e para o retrato fundamental do JOYCE!"


António Lobo Antunes, D'este viver aqui neste papel descripto
(aerograma de 6 de Maio de 1971)

domingo, 31 de março de 2013

E nada disto importa

O dia da despedida, lembro-me dele como de uma coisa que se tivesse passado durante uma anestesia; o cansaço, o sono, a saudade, a agitação entravam e saíam de mim numa leveza gasosa. Já nem me lembro bem da família que lá estava e não estava. Mas, do barco, procurei-te sem te encontrar: uma tia Luísa minúscula disse-me, por gestos, que te tinhas ido embora, e foi só então que eu tive a certeza de que me ia embora. Fui para o camarote e sentei-me na cama e ouvia os gritos e os choros sem pensar em nada, e não chorei porque um homem não chora. E nada disto importa porque nos temos um ao outro até ao fim do mundo. Ao barco chegavam constantemente telegramas, recebi dois da tua família mas nenhum de ti. Ainda fui várias vezes ao comissariado mas não havia lá mais nada para mim.

António Lobo Antunes, D'este viver aqui neste papel descripto. Cartas da guerra.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

concertinas, arrecadas, romarias e o mar logo ali

e eu, que nunca fui à Galiza, que nunca na vida subi acima de Alcobaça, a empatá-lo, consoante o cavalheiro me ordenou, Claro que sim, bichano, a Galiza é mais ou menos como o Minho, tudo muito verde, concertinas, arrecadas, romarias e o mar logo ali, nos dias de folga entretens-te com as cegonhas, garanto-te que o que não falta são cegonhas, cada chaminé tem uma, de joelho no ar, e ele, fascinado, a suspender a colher da sobremesa, Ai sim?

António Lobo Antunes, Tratado das paixões da alma

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A ordem e a morte

        - Éramos só três empregados nesse tempo, meu capitão, lembrou-se o soldado, baixinho, binoculando enternecido o nevoeiro doce do passado. Um velho a quem faltavam três dedos, que estivera preso há muitos anos por bater num polícia e conduzia a camioneta a cair aos pedaços, pulando, em sucessivos terramotos de lata, por todos os buracos das ruas, eu, e um tipo magro que não falava nunca, de esposa internada por ataques no hospital. Depois as coisas melhoraram, comprámos duas furgonetas e metemos onze funcionários, incluindo uma senhora de óculos, constipadíssima, que vinha ao fim da tarde emendar as asneiras da escrita do meu tio, e pôr tudo a limpo num livro de capa preta, encadernado como os dos notários e os das igrejas. A pouco e pouco os dossiers foram diminuindo, a desordem decrescendo, apareceram canetas novas em cima da mesa, um mata-borrão, flores num copo de água, e o velho, assustado com a limpeza, meio tonto como se não reconhecesse o local, bufava de angústia perante aquele insólito exagero de asseio, a suspirar, meu capitão, pelo seu casulo de lixo.
        - Quase não ia a casa nas primeiras semanas, disse-me o tenente-coronel. Tudo tão direitinho, desabitado, sem defeito nenhum, recordava-me, não sei porquê, a morte. Em pequeno com as caveiras e as tíbias e os fantasmas e os corpos estendidos nos caixões do costume: se pensava nisso era sempre um quarto excessivamente arrumado, com os objectos exageradamente no lugar, que aparecia. Ou então a máquina de costura antiga da minha avó, num canto, perto da janela, com um cesto de roupa por coser ao lado, a sombra do candeeiro na parede e uma completa ausência de pessoas. É isso, a ausência das pessoas, entende, que me assusta: o silêncio das praças à noite, sem ninguém, os corredores nos quais os próprios passos caminham, inquietantes, ao nosso encontro, e onde, quando tossimos, a bronquite nos regressa à garganta, desagradável e azeda como um vómito engolido.

António Lobo Antunes, Fado Alexandrino, Publicações D. Quixote, 2007

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Caralho de guerra

Caralho de guerra caralho de guerra caralho de guerra, sou paisano de novo por uns dias e viajo na geografia mansa do teu corpo, no rio da tua voz, na sombra fresca das tuas palmas, na penugem de peito de pomba do teu púbis, mas eu e Xana e tu chuva de sábado é que somos ainda verdade, o choro súbito da nossa filha na noite dos lençóis a acordar-nos, os biberões aquecidos na cozinha em noites de angústia e de esperança, não, oiça, hoje, quando me deito, o futuro é um nevoeiro fechado sobre o Tejo sem barcos, é um grito aflito ocasional na bruma, viverei muito tempo dentro dos teus gestos

António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, BisLeya, 2008.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O escuro

O escuro cavava-se de galerias, de corredores, de degraus que os sons penetrava numa angústia desesperada, folheando sombras, deslocando rostos, remexendo as gavetas vazias do silêncio em busca do eco de si mesmos, tal como por vezes nos encontramos, aterrados e surpresos, nos objectos esquecidos nas prateleiras dos armários a lembrarem-nos quem fomos numa insistência cruel.

António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, BisLeya, 2008.

sábado, 6 de agosto de 2011

Sem nome #4

         pronunciando uma única ocasião e ele a julgar que imensas, a estrangeira loira constantemente a partir, o pingo no sapato
         - Se conseguíssemos adivinhar o que lhe vai na cabeça
         e não conseguiam claro, nunca viram a estrangeira loira nem o afinador e a dúvida sobre se ele os viu ou os criou apenas, nenhuma visita no quarto que o distraísse de si, o pingo no sapato
         - As pessoas hão-de permanecer um mistério
         e mistério nenhum, as pessoas idênticas aos besouros e ás vacas, os besouros queimam-se na lanterna do alpendre e as vacas tremem uma tarde ou duas, tombam tremendo, desistem das tremuras, enterram-se e só então nos espantamos que tão grandes, moem não erva, paciência, a erva um disfarce, tal como me alimento de paciência hoje, se necessitasse de um braço não tinha, de uma perna não havia mas o pulso continuava a empurrá-lo para diante sem que existisse um adiante, existia a parede a cada momento mais próxima e nada atrás dela salvo a avó
         - O que tu emagraceste

domingo, 31 de julho de 2011

O que há para compreender

         e a surpresa e o terror não no meu neto, em mim, a bomba da água do coração tão rápida e o que trazia eram restos de sapatos de um palhaço afogado, imaginei que um saxofone a seguir ao sapato e o saxofone dissolvido no fundo, conheço desconsolos nas coisas, não conheço nas pessoas e portanto não me queixo, o que é o desconsolo aliás, não tenho ocasião para me entristecer ou não há o espaço no meu peito que a tristeza requer apesar de eu vazio ou seja não vazio porque uma vela num castiçal antigo que a prima que tomava conta de mim plantava à cabeceira, uma palma na minha testa a garantir
         - Quando cresceres compreendes
           recordo-me de perguntar
         - O que há para compreender?


António Lobo Antunes, Sôbolos Rios Que Vão, D. Quixote, 2010.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A diferença inicial que separa a noite da madrugada

Quando só uma visão mil vezes mais aguda do que a pode dar a natureza seria capaz de distinguir no oriente do céu a diferença inicial que separa a noite da madrugada, o almuadem acordou. Acordava sempre a esta hora, segundo o sol, tanto lhe fazendo que fosse verão como inverno, e não precisava de qualquer artefacto para medir o tempo, nada mais que uma mudança infinitesimal na escuridão do quarto, o pressentimento da luz apenas adivinhada na pele da fronte, como um ténue sopro que passasse sobre as sobrancelhas ou a primeira e quase imponderável carícia que, (continuem a ler por vós, que isto está na pág. 17)

José Saramago, História do Cerco de Lisboa, Caminho, 2008 (8ª edição).
Lobo Antunes tem um momento parecido com este, ao dizer, nem me lembro já onde, «acordo ao som da luz».

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Na parede havia um calendário

Na parede havia um calendário parado em julho de mil novecentos e trinta e cinco, daguerreótipo que o bolor devorara, lamparinas de azeite, santinhos, uma ovelha de barro ao centro da mesa a passar o seu oval de crochet, até eu juntar dinheiro para uma casa na Cuca, meter cinco dias de férias e te levar comigo para uns lençóis como estes em que definho à tua espera, submergido pela bronquite do marujo e por barlaventos e sotaventos que ignoro e me angustiam, por brisas de tempestade, por promontórios intactos procurados pela tremura exaltada das bússolas.

António Lobos Antunes, As Naus, D. Quixote, 2006.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Lixboa

mas palavra que nunca pensei que Lixboa fosse este dédalo de janelas de sacada comidas pelos ácidos do Tejo, as vacas sagradas destes rebanhos de eléctricos, estas mercearias de saquinhos de amêndoas e de garrafas de licor, palavra que imaginava obeliscos, padrões, mártires de pedra, largos percorridos pela brisa sem destino da aventura, em vez de travessas gotosas, de becos reformados e de armazéns nauseabundos, palavra que imaginava uma enseada repleta de naus aparelhadas que rescindiam a noz-moscada e a canela, e afinal encontrei apenas uma noite de prédios esquecidos a treparem para um castelo dos Cárpatos pendurados no topo, uma ruína com ameias em cuja hera dormiam gritos estagnados de pavões.

António Lobo Antunes, As Naus, D. Quixote, 2006

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

E recordei-me de quantas vezes

Segui a pé, de sombrinha aberta, na direcção das escadas que os relâmpagos mostravam para tudo recair depois numa noite triste e enervada. O aparelho correu ao longo da pista quase sem luzes e ergueu-se acima da nódoa opaca do mar. Quer dizer: não se topava o que quer que fosse salvo o reflexo de nós próprios nas janelas mas eu sabia que era o mar, e recordei-me de quantas vezes, em pequeno, olhei aquelas ondas a lembrar-me de Goa.

António Lobo Antunes*, As Naus, D. Quixote, 2006

*a.k.a. «the big dark giant Lobos (sic) Antunes», como lhe chamou Steiner, quando há um ano atrás falou na sua cerimónia de doutoramento honoris causa da U.L. A primeira frase deste excerto das naus lembra-me uma cena do The Big Sleep.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

medo

«Queria pedir-lhe que não saísse daqui, me acompanhasse, ficasse comigo deitada aguardando não só a manhã mas a próxima noite, e a outra noite, e a noite seguinte, porque o isolamento e a solidão se me enrolam nas tripas, no estômago, nos braços, na garganta, me impedem de me mover e de falar, me tornam num vegetal agoniado incapaz de um grito ou de um gesto, à espera do sono que não chega. Fique comigo até que eu, finalmente, adormeça, me afaste de si numa dessas inexplicáveis reptações frouxas com que os afogados oscilam nas vazantes, me estenda de bruços, de boca na almofada, babando na barriga da fronha palavras indistintas, me afunde no poço pantanoso de uma espécie de morte, a ressonar o meu grosso coma de pastilhas e de álcool.»
António Lobo Antunes, Os cus de Judas