- Éramos só três empregados nesse tempo, meu capitão, lembrou-se o soldado, baixinho, binoculando enternecido o nevoeiro doce do passado. Um velho a quem faltavam três dedos, que estivera preso há muitos anos por bater num polícia e conduzia a camioneta a cair aos pedaços, pulando, em sucessivos terramotos de lata, por todos os buracos das ruas, eu, e um tipo magro que não falava nunca, de esposa internada por ataques no hospital. Depois as coisas melhoraram, comprámos duas furgonetas e metemos onze funcionários, incluindo uma senhora de óculos, constipadíssima, que vinha ao fim da tarde emendar as asneiras da escrita do meu tio, e pôr tudo a limpo num livro de capa preta, encadernado como os dos notários e os das igrejas. A pouco e pouco os dossiers foram diminuindo, a desordem decrescendo, apareceram canetas novas em cima da mesa, um mata-borrão, flores num copo de água, e o velho, assustado com a limpeza, meio tonto como se não reconhecesse o local, bufava de angústia perante aquele insólito exagero de asseio, a suspirar, meu capitão, pelo seu casulo de lixo.
- Quase não ia a casa nas primeiras semanas, disse-me o tenente-coronel. Tudo tão direitinho, desabitado, sem defeito nenhum, recordava-me, não sei porquê, a morte. Em pequeno com as caveiras e as tíbias e os fantasmas e os corpos estendidos nos caixões do costume: se pensava nisso era sempre um quarto excessivamente arrumado, com os objectos exageradamente no lugar, que aparecia. Ou então a máquina de costura antiga da minha avó, num canto, perto da janela, com um cesto de roupa por coser ao lado, a sombra do candeeiro na parede e uma completa ausência de pessoas. É isso, a ausência das pessoas, entende, que me assusta: o silêncio das praças à noite, sem ninguém, os corredores nos quais os próprios passos caminham, inquietantes, ao nosso encontro, e onde, quando tossimos, a bronquite nos regressa à garganta, desagradável e azeda como um vómito engolido.
- Quase não ia a casa nas primeiras semanas, disse-me o tenente-coronel. Tudo tão direitinho, desabitado, sem defeito nenhum, recordava-me, não sei porquê, a morte. Em pequeno com as caveiras e as tíbias e os fantasmas e os corpos estendidos nos caixões do costume: se pensava nisso era sempre um quarto excessivamente arrumado, com os objectos exageradamente no lugar, que aparecia. Ou então a máquina de costura antiga da minha avó, num canto, perto da janela, com um cesto de roupa por coser ao lado, a sombra do candeeiro na parede e uma completa ausência de pessoas. É isso, a ausência das pessoas, entende, que me assusta: o silêncio das praças à noite, sem ninguém, os corredores nos quais os próprios passos caminham, inquietantes, ao nosso encontro, e onde, quando tossimos, a bronquite nos regressa à garganta, desagradável e azeda como um vómito engolido.
António Lobo Antunes, Fado Alexandrino, Publicações D. Quixote, 2007
para mim o melhor romance dele. um monumento.
ResponderEliminarAté agora, sem dúvida o melhor que li dele.
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