segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Celan

A condenação platónica da poesia é inaceitável, mas devemos voltar sempre a enfrentá-la. A poesia que pede a si própria apenas a sua salvação corre o risco de imitar, satisfeita, as contradições, as misérias e talvez a banalidade do estado de alma pessoal que, segundo Platão excluem a busca do bem e da verdade. Obviamente, ninguém pode viver hoje o problema como o vivia Platão, mas uma poesia que apenas de si própria se alimenta pode pecar contra a poesia; como as quadras e as estrofes rimadas, também os fragmentos de palavras vacilantes no escuro podem repetir-se e regenerar-se até ao infinito do próprio tormento, transformando-se numa retórica, dilacerada mas não menos retórica por isso. O sacrifício de Celan é deste modo o exorcismo deste perigo. A impossibilidade de confiança impele-o a calar-se e a desaparecer, depois de ter deixado, a eventuais contemporâneos ou vindouros, o seu «manuscrito dentro de uma garrafa». Celan desapareceu na noite, nas águas do Sena, onde procurou a morte. Um seu verso diz «faço luz nas minhas próprias costas»; a poesia é este fulgor que indica o ponto onde ele e os seus versos desapareceram.

Claudio Magris, Danúbio, Miguel Serras Pereira (trad.), Quetzal, 2010

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