domingo, 1 de janeiro de 2012

O dificultoso empenho

Sermão dos Bons Anos
Pe. António Vieira
Pregado em Lisboa, na Capela Real, no dia 1 de Janeiro do ano de 1642

Postquam consummati sunt dies octo, ut circumcideretur puer, vocatum est nomen eius Iesus, quod vocatum est ab angelo, priusquam in utero conciperetur. Luc. 2.1

Em um Mundo tão avarento de bens, onde apenas se encontra com um bom dia, ter obrigação de dar bons-anos, dificultoso empenho! Deus, que é autor de todos os bens, os dê a Vossas Reais Majestades felicíssimos (mui altos e mui poderosos Reis e Senhores nossos) com a vida, com a prosperidade, com a conservação e aumento de estados que as esperanças do Mundo publicam, que o bem da Fé Católica deseja, que a Monarquia de Portugal há mister e que eu hoje quisera prometer e ainda assegurar.

Em um Mundo, digo, tão avarento de bens, onde apenas se encontra com um bom-dia, ter obrigação de dar bons-anos, dificultoso empenho! E na minha opinião cresce ainda mais esta dificuldade, porque isto de dar bons-anos, entendo-o de diferente maneira do que comummente se pratica no Mundo. Os bons-anos não os dá quem os deseja, senão quem os assegura. A quantos se desejaram nesta vida, a quantos se deram os bons-anos, que os não lograram bons, senão mui infelizes? Segue-se logo, própria e rigorosamente falando, que não dá os bons-anos quem só os deseja, senão quem os faz seguros. Esta é a dificuldade a que me vejo empenhado hoje, que o tempo e o Evangelho fazem ainda maior. Em todo o tempo é dificultoso cousa segurar anos felizes; mas muito mais em tempo de guerras e em tempo de felicidades. Se o dia dos bens é véspera dos males; se para merecer uma desgraça, basta ter sido ditoso, quem fará confiança em glórias presentes, para esperar prosperidades futuras? Se a campanha é uma mesa de jogo onde se ganha e se perde; se as bandeiras vitoriosas mais firmes seguem o vento vário que as meneia, quem se prometerá firmeza na guerra, que derruba muralhas de mármore? E como a guerra e a felicidade são dois acidentes tão vários; como a Fortuna e Marte são dois árbitros do Mundo tão inconstantes, como poderei eu seguramente prometer bons-anos a Portugal, em tempo que o vejo por uma parte com armas nas mãos, por outra com as mãos cheias de felicidade? Se apelo para o Evangelho, também parece que promete ameaças, mais que esperanças; porque nos aparece nele um cometa abrasado e sanguinolento, ut circumcideretur puer, e os cometas desta cor sempre foram fatais aos reinos e formidáveis às monarquias.

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