domingo, 28 de fevereiro de 2010

Uma versão do sétimo poema de «La poesia delle rose»

E não. Deixa que se precipitem os últimos rios de um irónico inferno
num rumor de fontes, de quedas de água.
Antes regressasse um só curso de água, o verdadeiro.
Deixa que me abandonem agora as alegorias.
Tu devias ter sabido antes, como eu agora sei,
que regressarias ao frio, ao desejo, ao espinho,
à palavra despida de significado, a uma possível e lenta
ciência, ao sol que despe de cor o Indo e o Nilo,
pétala de história imperceptível.

Mas como poderei distinguir amanhã
as rosas fenecidas, as vivas? Afasto-me daqui
onde me tomou, e regressará, minha loucura:
também para essa peço justiça e amor.
Para ti que ainda dormes: quero que nada te perca.
Ainda que sempre, ainda que sem piedade, o romper da aurora,
que tão débil faz a luz na lonjura,
de um ponto mais alto destrua a tua mais alta esperança,

ainda que o pequeno esmague o mais pequeno,
ainda que cetónias dilacerem o futuro
com as suas insignificantes presas, ainda que culpa e esperança
sejam duas faces de um só mal que nos separa e obstina,
longe, para lá dos salgueiros que nos maceram
e que povoam estes lugares, o ar será sempre este, fino e negro.

Vida longa para a rosa da primavera. Vida longa
para a erva, para as flores, para os beijos, para a dor.

(Versão minha de) La Poesie delle rose, 7, de Franco Fortini. Poema incluído em Italian Poetry: 1950 to 1990, Ridinger and Renello (eds.), Dante University Press, 1996.

The stories of Heinrich von Kleist

Zé, depois de O Combate com o Demónio, talvez isto te interesse.

Lines Writen in Dejection

When have I last looked on
The round green eyes and the long wavering bodies
Of the dark leopards of the moon?
All the wild witches, those most noble ladies,
For all their broom-sticks and their tears,
Their angry tears, are gone.
The holy centaurs of the hills are vanished;
I have nothing but the embittered sun;
Banished heroic mother moon and vanished,
And now that I have come to fifty years
I must endure the timid sun.

W.B. Yeats, The Wild Swans at Cole, publicado pela primeira vez em 1917.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Alguém aceita uma alma
como um fenómeno natural;
sabes que o país é um luto,
um caos conquistado.

A madeira negra,
a madeira vermelha e
a garrafa de leite
são uma medida vertical, útil.
Exprimem o triângulo da dor;
às vezes observam e persistem
como uma infância que recria, ao ar
livre, o seu telhado e o seu país, porque
a família fixa com pateras
as suas pequenas facas.

Toda a gente se deita com toda a gente,
e o homem com a mulher - do outro
lado da rua.

Gérard de Cortanze, O Movimento das Coisas, Isabel Aguiar Barcelos (trad.), Campo das Letras, 2002

Esperar

The Lost Books of the "Odyssey"

Ela oscila e regressa,
a emoção.
Que é uma curva geométrica.
Ela é presa transtornada dos movimentos
contrários, da cabeça
conhecendo apenas a base pontiaguda.
Ela permanece de pé. Integra
o desequilíbrio, e nada vem pintar
a sua inscrição espacial, nada que não seja
quadrado ou redondo: uma lâmina da barba,
madeira exótica, tábuas, um
lintel, um precioso líquido sobre
a figura adormecida cheia de vento.

Gérard de Cortanze, O Movimento das Coisas, Isabel Aguiar Barcelos (trad.), Campo das Letras, 2002

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Ele dizia que a flecha não tinha podido atingi-lo
além do desgosto
que a bruma era uma queimadura(...)

Gérard de Cortanze, O Movimento das Coisas, Isabel Aguiar Barcelos (trad.), Campo das Letras, 2002
Ítaca actualizada.
Permanece aberta diante de mim,
incansável.
No teu destino de reflexos. Na
tua tristeza profunda. Saberás
um dia bruscamente transpor este
universo de invernos,
este espaço de corredores de escudos de raptos?
Quem saberá dar-te este voo suave, ou esta
terna pálpebra de prados e de altas noites, ou
esta metamorfose dos silêncios nos teus rins?
Quem? Entre a nova onda mascarada?
Em aparência, em hortênsia, em cinzas?

Gérard de Cortanze, O Movimento das Coisas, Isabel Aguiar Barcelos (trad.), Campo das Letras, 2002

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

8 1/2


Uma das minhas grandes falhas em relação a filmes de Fellini. Nunca o vi. (Vamos ver se esta semana resolvo isso.)Aqui fica o trailer original.
Nas suas cabeças:
mastros, um cardume
de xarrocos,
um regresso com a urgência do
sangue.
Com um terror súbito:
sabes por que
amaste?

Gérard de Cortanze, O Movimento das Coisas, Isabel Aguiar Barcelos (trad.), Campo das Letras, 2002

[Só uma vez agarrei esse momento]

Só uma vez agarrei esse momento
em que alguma coisa começa
mesmo, ao centésimo de segundo.
O meu coração parou por um
centésimo de segundo, as veias
todas pararam e um cabelo
rompeu, primaveril, na cabeça.

Alguém fugira num labirinto
sem saber que era labirinto
e por todo o tempo da vida
se enganou sem remédio, era
um daqueles casos em que o tempo
era espaço. E o amor era miragem.

E deixo eu o que estou a fazer,
por mais importante que seja,
para ir completar o que falta
num poema? Pois deixo, imagine-se:
o que falta num poema. Sem juízo
não se faz o que antes se fazia.

Esse centésimo de segundo demorou
uma eternidade, aproveitei
para cantar um hino à imortalidade
dos grandes poetas, dentro desse segundo
depois te amei desalmadamente.

Helder Moura Pereira, Mútuo Consentimento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005

Um amigo meu perguntou-me se me andava a divorciar quando me apanhou a ler este livro. Ele é de Direito.
Fora, os dramas do dentro são
renúncias heróicas,
lutas em que se fala do Homem
e do seu gosto pela Simetria.

Gérard de Cortanze, O Movimento das Coisas, Isabel Aguiar Barcelos (trad.), Campo das Letras, 2002

Gene Tierney
























Segundo me parece, qualquer coisa entre a Laureen Bacall e a Elizabeth Taylor.

Homer on Life and Death

Incluo-me na lista de palermas que acha que não se pode pensar em mortes heróicas em literatura sem se pensar na Ilíada de Homero. Se sois como eu, eis um de muitos clássicos sobre o assunto. Gosto especialmente deste. A começar pelo título.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Sete da tarde

e eu aqui, com o «menino de sua mãe», no plaino abandonado, que a morna brisa aquece. Ele, coitado, de balas trespassado, parece que duas de lado a lado - consta que jaz morto e arrefece. E eu a ponderar se já trabalhei o suficiente para poder conceder a mim mesma ir lá abaixo beber um café.
A ele (ao menino da sua mãe, entenda-se) raia-lhe a farda o sangue. Ficou ali tal qual como os inimigos o apanharam: no plaino onde fulminado caiu e se deixou estar - de braços estendidos, alvo, louro, exangue, corpo travado em plena marcha para se fazer de mármore, porque tenho a certeza que este menino não pode já ser de carne.
Pessoa imputa-lhe a culpa de com um olhar vazio (perdido) fitar o céu. O céu que, de acordo com a predicação que lhe atribui o sujeito poético da enunciação, que não do poema (esse é o agente referido como «o menino da sua mãe»), é cego. O menino da sua mãe não era cego, mas ficou, ou ficaram-no.
E parece que, para piorar a coisa, era jovem, muito jovem. E, ainda pior, o mais precioso tipo de filho - o único. E a mãe (a do Pessoa, parece) dera-lhe um nome (apontamento para designar uma espécie de código entre mãe e filho, o que denota intimidade) e ele o mantivera, mantivera-o, creio, porque se tornam preciosos para os filhos os nomes que as suas mães lhes chamam (or so they say), e este era (notar o sumo cuidado materno despendido e expresso na expressão que se segue) o «menino da sua mãe».
Eu não era o «menino da sua - nem da minha - mãe» porque sou menina e havia mais irmãos, o que pode justificar a menor diligência em empregar nomes afectuosos para denominar os filhos, e sobretudo porque se deu o caso de haver um irmão antes de mim, assim, parecido com este menino do Pessoa, que era moreno, cabelo e olhos escuros, primogénito não filho único, parecido comigo e tudo, que caiu morto, mas não num plaino abandonado aquecido por uma brisa morna, antes num hospital em Londres e, lugar onde regra geral pertencem os meninos, nos braços de sua mãe.
Ao menino de sua mãe, o do Pessoa, cai-lhe da algibeira a cigarreira breve. (O meu irmão não fumava.) A cigarreira do do Pessoa está boa e inteira. Nenhum problema com a cigarreira. Respira saúde, ele é que não. Parece que já não serve (nem para o exército e, extrapolação fácil, nem para a vida). E depois para acabar de nos rachar à machadada o coração, Pessoa vai-nos contar que na outra algibeira, quase a roçar o solo, há a brancura embainhada de um lenço, cuidado de criada velha, que trouxe o jovem soldado, quando ele era menino, ao colo.
Lá longe, em casa, rezavam para que ele regressasse cedo e bem. Desperdiçou-se um rapaz, jaz morto, apodrece. (Filha da putice que, na enunciação de Pessoa, ou na do sujeito poético do poema, como quiserem, para mim às vezes é tudo a mesma coisa, como dizia, filha da putice que é expressa pela paráfrase «malhas que o império tece.») Mais um menino de sua mãe. Ou melhor, menos um menino de sua mãe. Note-se neste passo o talento de Pessoa enquanto poeta: o tipo junta meia dúzia de palavras e sem empregar uma única vez, ao longo de todo o poema, a palavra dor, deixa nele gente que, mal o poema acabe, vai endoidecer de dor. Morrer de dor.
Como se rouba a alguém o que esse alguém tem de mais precioso, eis o assunto deste poema e o que ele nos ensina (ou, o que não é nunca bem a mesma coisa, o que nós aprendemos com ele). Só há, na verdade, um crime, e esse é o roubo, todos os outros são uma variação deste (ouvi isto num filme), repare-se: ao menino da sua mãe, roubaram-lhe a vida. À sua mãe, roubaram-lhe o menino e consequentemente a vida.

Se não roubar depressa este trabalho, rouba-me ele a mim.

O menino da sua mãe

No plaino abandonado
Que a morta brisa aquece,
De balas traspassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio (1914 - 1935), Assírio & Alvim, 1998
Em ti desejava captar
a águia e os seus instintos.
Poder pintar o nevoeiro
da claridade solar.

Sinto que em ti palpita
o meu pensamento.

Depois do silêncio
virá uma fuga húmida.
Depois da tua natureza: uma curva
que respira. Os teus lábios
livres - purificados.

Gérard de Cortanze, O Movimento das Coisas, Isabel Aguiar Barcelos (trad.), Campo das Letras, 2002

Notorious, 1946































Vês? Este é o Carry Grant, que não é o Gary Cooper (justamente, no ano de 1946 e em companhia de Ingrid Bergman). Um dos melhores pares da história do cinema. Não fiques aí parado. Se nunca viste, vai ver.

Lerici

Shelley was drowned near here. Arms at his side
He fell submissive through the waves, and he
Was but a minor conquest of the sea:
The darkness that he met was nurse not bride.

Others make gestures with arms open wide,
Compressing in the minute before death
What great expense of muscle and breath
They would have made in they had never died.

Byron was worth the sea's pursuit. His touch
Was masterful to water, audience
To which he could react until an end.
Strong swimmers, fishermen, explorers: such
Dignify death by thriftless violence -
Squandering with so little left to spend.

Thom Gunn, Collected Poems, Faber and Faber, 1993

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

People will forget Shakespeare.
He will lie with George Formby
and me, here where the swine root.
Later, the solar system
will flare up and fall into
space, irretrievably lost.

For the loss, as for the life,
there will be no excuse, there
is no justification.

Thom Gunn, Collected Poems, Faber and Faber, 1993

Sarpédon

















«Vai tu agora, ó Febo amado, e limpa o negro sangue
de Sarpédon; tira-o do meio dos dardos e depois leva-o
para muito longe. Dá-lhe banho nas correntes do rio
e unge-o com ambrósia, veste-o com roupas imortais.
Entrega-o a dois pressurosos portadores para o levarem,
Sono e Morte, dois irmãosm eles que rapidamente
o porão na terra fértil da ampla Lícia,
onde seus irmãos e parentes lhe prestarão honras fúnebres,
com sepultura e estela: pois essa é a honra devida aos mortos.»

Homero, Ilíada, Frederico Lourenço (trad.), Livros Cotovia, 2005

Sarpédon, filho de Zeus, rei da Lídia, quase se torna uma excepção entre os homens: o pai, momentos antes de ele morrer, pensa arrebatá-lo do combate contra Pátroclo. Mas Hera chama-o à razão: se Zeus salvasse o filho, iria contra o destino que lhe tinha sido fixado. E Zeus, curvado por pesada dor, deixa que a morte se abata sobre Sarpédon, lançando em seguida uma chuva de sangue sobre a terra.
O episódio da Ilíada demonstra (se considerado anacronicamente) que o destino para os gregos era uma instituição democrática: uma lei à qual nem os deuses escapavam. É também dos poucos momentos na Ilíada em que imaginamos Zeus de pescoço curvado.
Há gritos inúteis.
Por isso, devo sondar
os movimentos,
as aventuras,
as intuições,
as montanhas verdes desdobradas...
Hoje, senti
nos meus ossos
cinco almas ferozes e confusas.
Mas não te despertei.
Dormias, entre
lençóis de tesouras entraçadas.
Dormias.
Não me atrevi a tocar-te.
As chamas e os olhares
destas cinco almas ferozes
e confusas teriam
jantado à tua mesa - e o drama
da obscuridade deve escapar-te.

Gérard de Cortanze, O Movimento das Coisas, Isabel Aguiar Barcelos (trad.), Campo das Letras, 2002

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

You are welcome to Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mão e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Cesariny, Uma Grande Razão: Os Poemas Maiores, Assírio & Alvim, 2007
Cur de Constantini donatione composui?...Hoc tantum consideres velim, non odio pape adductum, sed veritatis, sed religionis, sed cuiusdam etiam fame gratia motum, ut quod nemo sciret, id ego scisse solus viderer.*

Isto é Lorenzo Valla a discorrer acerca daquele que é um dos mais famosos feitos da sua carreira de filólogo: a oratio em que refuta a doação de Constantino. O curioso acerca desta afirmação é que este homem acaba por conter nela todo o seu carácter, quem ele mais intimamente era. É ao mesmo tempo uma coisa assustadora (esta acuidade de se delinear a si próprio a meio de uma divagação) e do caraças.

*Qualquer coisa como (e perdoem-me se esta tradução do latim não estiver swell mas eu sou ao contrário dos copistas da Idade Média - latinum est, non legitur): Por que fui eu escrever acerca da doação de Constantino?...Considera isto bem, não fui movido por ódio ao papa, antes por [amor] à verdade, à religião; mas também por um certo desejo de fama: para mostrar que, aquilo que ninguém sabia, isso, eu unicamente [o] sabia.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

«The ghost and Mrs. Muir» de Joseph Mankiewicz, 1947





















«You come of age very quickly through shipwreck and disaster.»
no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história de amor só até ao pescoço


e no pais no pais que engraçado no pais
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora ai está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)

diz que grandeza de alma. Honestos porque
Calafetagem por motivo de obras.
relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no pais onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato

Cesariny, Uma Grande Razão: Os Poemas Maiores, Assírio & Alvim, 2007

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A Grécia Arcaica


Sexta-feira, 5 de Março,
Às 18h no Teatro Académico Gil Vicente em Coimbra

Coisas que sempre me fizeram confusão

Enquanto um professor (mestre seria talvez o melhor termo) que em tempos tive, aqui há dias especulava com que alfinete se tinha cegado Édipo (se com o dele próprio se com o que pertencia a Jocasta) e se se havia cegado com um ou dois alfinetes (só com o dele, só com o de Jocasta, ou recorrendo a ambos), uma dúvida de índole semelhante acabou por me ocorrer.
Na Ilíada, Aquiles perde as suas armas (é o equipamento de Aquiles que Pátroclo envergava quando é morto por Heitor e este, se a memória não me falha, apodera-se delas) e a sua mãe, Tétis, pede a Hefesto que lhe forje novas armas, ao que o deus acede (magnífico trabalho de magnífico artífice e é, de resto, famosa a descrição do escudo).
Partindo do princípio que Aquiles ao matar Heitor recupera as armas que eram suas, que armas são objecto de disputa entre Ulisses e Ájax? As que primeiro pertenceram a Aquiles e com as quais foi morto Pátroclo?, as que lhe forjou o deus? ambas?
Como se poderá saber a resposta a estas questões, tão inúteis quanto desafiantes?

The George Bests of the moral domain

Being human is something you have to get good at, like playing the trombone or tolerating bores, and the vicious are those who have never got the hang of it. They are tenderfoots in the art of living, as botching and crackhanded as a dog waltzing on its hindlegs. The virtuous, by contrast, are those who are successful in the business of living, and what Christians call saints are the virtuosi, the George Bests or Pavarottis of the moral domain.

Terry Eagleton, Sweet Violence: the idea of the tragic, Blackwell Publishing, 2003

discurso ao príncipe de epaminondas, mancebo de grande futuro

Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem.

Cesariny, Uma Grande Razão: Os Poemas Maiores, Assírio & Alvim, 2007

Das certezas absolutas

Nos tempos de Pavese havia certezas absolutas: Verrà la morte e avrà i tuoi ochi (poucas expressões na vida me impressionaram tanto quanto esta). Ou melhor, no tempo de Pavese não havia certezas absolutas. Parece, contudo, que os melhores poetas as têm sempre. Podem tê-las.
Sucede também muitas vezes terem tendência a, em seguida, enfiarem uma bala nos cornos.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

julião os amadores

Já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de olhos fechados a
................passagem do vento
dizia eu ........dizia eu
que é sobre a missa branca do teu peito que se erguem os palácios
................rasos de água
no escuro..... no escuro
alguém nos levará tocando-nos com um dedo nós trémulos,
................deitados, sem dizer palavra, morreremos de ter-nos
................conhecido tanto
e depois?..... e depois?
depois o halo de uma fita azul o martelo esquecido sobre a pedra
...............de um sonho
mas os salões?........ e a casa?
e o cão que nos seguia?

o teu rosto meu rosto
este homem alto
........................................o Sol

Cesariny, Uma Grande Razão: Os Poemas Maiores, Assírio & Alvim, 2007

Coração, coração

O coração não sabemos exactamente o que faz na vida psíquica (...)

María Zambrano, A Metáfora do Coração e Outros Escritos, José Bento (trad.), Assírio & Alvim, 2000

Lisboa, 1971

O chauffer de taxi queixava-se da vida.
Ganha 400$00 por semana, o patrão conta
que ele se arranje do a mais com as gorjetas.
Os meus amigos morrem de cancro,
de tédio, de páginas literárias,
vi um rapaz sem as duas mãos que perdeu
na guerra (e o ortopedista ria-se de que ele
só queria por enquanto "calçar" uma
das que, artificiais, lhe preparou tão róseas).
As pessoas esperam com surda raiva e muita paciência
o autocarro, aumento de ordenado, a chegada
de Paracleto, bolsas da Gulbenkian.
Mas o chauffer de taxi contou-me que
discutira com um asno e lhe dissera:
"...V. que nesse tempo ainda andava em fuga
de colhão para colhão do seu pai,
para ver se escapava a ser filho da puta..."
E é isto: andam de colhão para colhão
a ver se escapam - e muitos não escapam.
E os outros não escapam aos que não escaparam.

Jorge de Sena, Exorcismos, 1972

Tempo parado

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Catarina dixit e é como está dito.

Realidade

Porque a realidade é, em princípio, o lugar onde os seres se encontram porque aí se descobrem ao entrar. O lugar que põe, inexoravelmente, os seres a descoberto.
E a realidade, fragmentária e inesgotável, dá-se com o tempo, no tempo. O homem desperta com o seu ser na realidade transitiva, lugar de descoberta, trato e encontro. A realidade é caminho tal como o tempo.

María Zambrano, O Sonho Criador, Maria João Neves (trad.), Assírio & Alvim, 2006
Impossível saber-se até onde irá connosco a nossa confiança
Ficaste, mão que aperto todas as manhãs para atravessar incólume
..................os espaços vazios

Cesariny, in «autografia II», Uma Grande Razão: Os Poemas Maiores, Assírio & Alvim, 2007

a um rato morto encontrado num parque

Este findou aqui sua vasta carreira
de rato vivo e escuro ante as constelações
a sua pequena medida não humilha
senão aqueles que tudo querem imenso
e só sabem pensar em termos de homem ou árvore
pois decerto este rato destinou como soube (e até como não soube)
o milagre das patas – tão junto ao focinho –
que afinal estavam juntas, servindo muito bem
para agatanhar, fugir, segurar o alimento, voltar atrás de repente,
.............quando necessário

Está pois tudo certo, ó “Deus dos cemitérios pequenos”?
Mas quem sabe quem sabe quando há engano
nos escritórios do inferno? Quem poderá dizer
que não era para príncipe ou julgador de povos
o ímpeto primeiro desta criação
irrisória para o mundo – com mundo nela?
Tantas preocupações às donas de casa – e aos médicos – ele dava!
Como brincar ao bem e ao mal se estes nos faltam?
Algum rapazola entendeu sua esta vida tão ímpar
e passou nela a roda com que se amam
olhos nos olhos – vítima e carrasco

Não tinha amigos? Enganava os pais?

Ia por ali fora, minúsculo corpo divertido
e agora parado, aquoso, cheira mal.

Sem abuso
que final há-de dar-se a este poema?
Romântico? Clássico? Regionalista?

Como acabar com um corpo corajoso e humílimo
morto em pleno exercício da sua lira?

Cesariny, Uma Grande Razão: Os Poemas Maiores, Assírio & Alvim, 2007
Faraó frágil.

Frustration

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Ítaca: espaço online actualizado.

Lançamento Adiado

Caríssimos,
é com pesar que este post informa que o lançamento do nr.º1 da ítaca
, previsto para dia 20 de Fevereiro, por motivos alheios à nossa vontade, terá de ser adiado para data a anunciar em breve.
Portanto, vocês que compraram bilhetes de avião para vir de Itália, Espanha, França, Inglaterra, Rússia, Grécia, Eslovénia, China, Uganda, África do Sul, Argentina, Arábia Saudita, México, Afeganistão, Angola, Alemanha, Dubai e Burkina Fasso: tudo sossegado em casa até nova data ser anunciada.
Pelo sucedido, as nossas mais sinceras desculpas,
pelo conselho editorial da ítaca,

Tatiana Faia

Ulisse

Nella mia giovinezza ho navigato
lungo le coste dalmate. Isolotti
a fior d’onda emergevano, ove raro
un uccello sostava intento a prede,
coperti d’alghe, scivolosi, al sole
belli come smeraldi. Quando l’alta

marea e la notte li annullava, vele
sottovento sbandavano più al largo,
per fuggirne l’insidia. Oggi il mio regno
è quella terra di nessuno. Il porto
accende ad altri i suoi lumi; me al largo
sospinge ancora il non domato spirito,
e della vita il doloroso amore.

Umberto Saba, Mediterranee, 1947

«Up in the air» de Jason Reitman, 2009


Vai ver. Eu podia dizer que era engraçado...mas não é bem isso.
Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove)
e vejo um gato branco à janela de um prédio bastante alto
Penso que a questão é esta: a gente - certa gente - sai para a rua,
cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem glória
e há gatos brancos à janela de prédios bastante altos!
Contudo e já agora penso
que os gatos são os únicos burgueses
com quem ainda é possível pactuar -
vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!
Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a...
Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou inteiramente
o gato
mas de gato para cima - nem pensar nisso é bom!
Propalam não sei que náusea, retira-se-me o estômago só de olhar
para eles!
São criaturas, é verdade, calcule-se,
gente sensível e às vezes boa
mas tão recomplicada, tão bielo-cosida, tão ininteligível
que já conseguem chorar, com certa sinceridade,
lágrimas cem por centro hipócritas.

Cesariny, Uma Grande Razão: Os Poemas Maiores, Assírio & Alvim, 2007

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Mas todos os infernos conhecidos do homem são-no somente enquanto pré-histórica e profética antecipação.

María Zambrano, O Sonho Criador, Maria João Neves (trad.), Assírio & Alvim, 2006.

My Favorite Things

Sento-me, deito-me, levanto-me,
tudo em pensamento.
Em nenhum lugar tenho paz,
Com meu conflito me atormento.

Andreas Tscherning, Melancholey Redet Selber, Rostock, 1655. Citado por Walter Benjamin em Origem do Drama Trágico Alemão, traduzido por João Barrento.

Dias de chuva

Uma cena de «Bluebeard's eighth wife» de Ernst Lubitsch, 1938

De manhã

Quando as luzes
não vibrarem na pele
quem colará às tuas ancas
as suas mãos quem
percorrerá
com vastas palavras
o que pertence
agora aos beijos
quando acordar
deste paraíso nocturno
e te abandonar quem
quem será
a tua companhia.

José Ángel Cilleruelo, Antologia, Joaquim Manuel Magalhães (trad.), Averno, 2005

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Pecado

Não eram tentações estas coisas, não, mas consolações piedosas da sua alma, a satisfação do que lhe fugira, a plenitude do que não tivera, a saciedade do que não bastara, a conquista do que jamais pudera ter sido seu. Pecado é sonhar com o futuro: desejar a mulher que se viu neste instante, querer com fúria o que é dado a outros, invejar furiosamente, como coisa que nos foi roubada, a felicidade alheia que está dançando, sem vergonha, diante dos nossos olhos que param a vê-la.

Jorge de Sena, «Super flumina Babylonis», A Arte de Jorge de Sena: Uma Antologia, Jorge Fazenda Lourenço (ed.), Relógio d'Água, 2004

3

Salto o muro de pedra, tenho
cuidado com vidros partidos
no túnel de ervas daninhas
e pregos saídos nas tábuas.
Na parede deixa uma marca
de cobra depois de soltar-se
e uma feia mancha escura
de antigas humidades. Chumbo.
Pesa como o diabo e pagam
a pronto sem haver perguntas.
Morto hotel que ninguém reclama.
Como um hóspede de então sigo
as tubagens quarto a quarto.
Sorrio: chumbo; não memória.

José Ángel Cilleruelo, Antologia, Joaquim Manuel Magalhães (trad.), Averno, 2005

Erros meus

Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente. Perdição. Amor somente. Como a poesia é falsa e verdadeira. Como ela diz não dizendo, e é não dizendo que diz. Como da nossa alma não sabemos nada antes de escrevê-la, e como não é dela que sabemos depois de ter escrito. A perdição procura-se, como um homem se despe para se banhar no mar, a modos que Leandro atravessando o Helesponto. E o amor somente bastaria, como o momento em que tudo se esquece, tudo desaparece, tudo se evapora, ao calor que abrasa e que só dura um instante mas um instante em que o tempo se suspende, se petrifica num espaço e numa forma, e todo o verdadeiro espaço foge velozmente, correndo pelos tempos fora até que é ele o tempo que se suspendeu. Apenas como isso, porque é uma imagem do supremo amor, aquele que existe além do tempo e do espaço, além das esferas, além daquele poço terrível.

Jorge de Sena, «Super flumina Babylonis», A Arte de Jorge de Sena: Uma Antologia, Jorge Fazenda Lourenço (ed.), Relógio d'Água, 2004.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

3.

Nasce na tua língua e na minha língua
de estrangeiro. Nasce no riso
cúmplice e no número do quarto
que esqueceste escrito no meu jornal.
Ou nasce na noite amiga
onde os corpos perdem a sua fronteira.
Nasce nos teus olhos e nasce nos meus olhos.

E a tua língua é a estrangeira
na minha boca e roda a minha língua
pela alcatifa até afundar-se nas tuas ancas,
até atravessar os rios com os teus pés.
E resvalam as minhas mãos pelo declive
da tua pele, e nas minhas ancas
afunda-se a tua língua e atravessaste rios
com os meus sonhos. Os teus pés nos meus lábios
e o meu pescoço sobre as tuas costas
e as tuas pernas por cima do meu peito.
E sinto o meu corpo estrangeiro
e o teu meu, enquanto nasce
o que cresce sem ter anos nem dias.

Então aprendi que depressa
de nada ia servir a inteligência.

José Ángel Cilleruelo, Antologia, Joaquim Manuel Magalhães (trad.), Averno, 2005

Eis por que gosto de Wolfgang Iser:

porque aos poucos me vou tornando em textos de outros - neles sem embaraço me vou deparando non solum sed etiam com certas circunstâncias da minha vida. (Uma solidão em suspenso: ninguém pode pensar o mesmo que tu, exactamente ao mesmo tempo, como se estivesse dentro da tua cabeça, mas, por vezes, aqui ou ali, esta ou outra identificação.)

O segredo

Entraste na noite
pelo lado da solidão.
A ela contas que sais com eles
a eles que sais com ela.
Encaminhas o velho Renault 4
para certo lugar desabitado
da cidade.
Fizeste entrar um corpo,
acenderam um cigarro enquanto
procuras um retiro pelas sombras.
Silencias a sua voz quando quer falar-te,
com um gesto decides
forma de desejo.
Entraste num corpo
pelo lado da solidão.
Por um instante sentiste-te bem
mas não o dizes,
embora não consigas reprimir
uma carícia no vidro embaciado.
Atrás da porta que fechou deixa-te
um rastro de perfume ignóbil
que aspiras com deleite:
como o símbolo o queres
para quando queimar a claridade
da manhã.

José Ángel Cilleruelo, Antologia, Joaquim Manuel Magalhães (trad.), Averno, 2005

Súbita, estranha





















admiração por este estranho Lorenzo Valla que me coube em sorte.

Esboço de caminhante sem rosto

A vida que soçobra
e a respiração de ladrilhos que ao passar
se crava nas têmporas,
ninguém que abrace este corpo
desventurado por avenidas
de uma cidade que conserva,
tal e qual os homens, as ruínas.

Os bares que sem atenção o acolhem
e o misturam com sonhos encobertos,
raparigas que sorriem. A vida
foi esvaziando este coração
ébrio da urina com que os deuses
matam lentamente
aqueles a quem não amam.

José Ángel Cilleruelo, Antologia, Joaquim Manuel Magalhães (trad.), Averno, 2005

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Stranger Song

Arcobaleno

Inzuppa 7 pennelli nel tuo cuore di 36 anni finiti ieri, 7 aprile,
E rallumina il viso disfatto delle antiche stagioni.
Tu hai cavalcato la vita come le sirene nichelate dei caroselli da fiera,

In giro,
Da una città all'altra, di filosofia in delirio,
D'amore in passione, di regalità in miseria :
Non c'è chiesa, cinematografo, redazione o taverna che tu non conosca;
Tu hai dormito nel letto d'ogni famiglia.

Ci sarebbe da fare un carvevale
Di tutti i dolori
Dimenticati, von l'ombrello, nei caffè d'Europa,
Partiti tra il fumo, coi fazzoletti, negli sleeping-cars diretti al nord, al sud.

Paesi, ore,
Ci sono voci che accompagnano pertutto come la luna e i cani;
Ma anche il fischio di una sirena
Che rimescola i colori del mattino
E dei sogni
Non si dimentica, né il profumo di certe notti affogate nelle ascelle di topazio.

Queste fredde giunchiglie che ho sulla tavola accanto all'inchiostro,
Eran dipinte sui muri della camera n. 19 dell'Hotel des Anglais a Rouen :
Un treno passeggiava sul quai notturno
Sotto la nostra finestra
Decapitando le botti del vino di Sicilia;
E la Senna era un giardino di bandiere infiammate.

Non c'è più tempo :
Lo spazio
E' un verme crepuscolare che si ragghiaccia in una goccia di fosforo :

Ogni cosa è presente :
Come nel 1902 tu sei a Parigi in una soffitta,
Coperto da 35 centimetri quadri di cielo
Liquefatto nel vetro dell'abbaino;
La Ville t'offre ancora ogni mattina
il boquet fiorito dello Square de Cluny;
Dal boulevard Saint Germain, scoppiare di trams e d'autobus,
Arriva, la sera, a queste campagne, la voce briaca della giornalaia
Di rue de la Harpe :
"Paris-curses", "l'Intransigeant", "la Presse".
Il negozio di Chaussures Raoul fa sempre concorrenza alle stelle;
E mi accarezzo le mani tutte intrise dei liquori del tramonto
Come quando pensavo al suicidio, vicino alla casa di Rigoletto.

Si, caro!
L’uomo più fortunato è colui che sa vivere nella contingenza al pari dei fiori:
Guarda il signore che passa
E accende il sigaro, orgoglioso della sua forza virile
Recuperata nelle quarte pagine dei quotidiani,
O quel soldato di cavalleria galoppante nell’indaco della caserma
Con ciocchetta di lilla fra i denti.
L’eternità splende in un volo di mosca.
Metti l’uno accanto all’altro i colori dei tuoi occhi;
Disegna il tuo arco:
La storia è fuggevole come un saluto alla stazione;

E l’automobile tricolore del sole batte, sempre più invano,
Il suo record fra i vecchi macchinari del cosmo.
Tu ricordi, insieme ad un bacio seminato nel buio,
D’una vetrina di librario tedesco, Avenue de l’Opéra,
E della capra che brucava le ginestre
Sulle ruine della scala del palazzo di Dario a Persepoli.
Basta guardarsi intorno
E scriver come si sogna,
Per rianimare il volto della nostra gioia.
Ricordo tutti i climi che si son carezzati alla mia pelle d’amore,
Raggianti al mio desiderio:
Nevi,
Mari gialli.
Gongs,
Carovane:
Il carminio di Bombay e l’ora bruciato dell’IRAN
Ne porto un geroglifico sull’ala nera.
Anima girasole, il fenomeno convergere in questo centro di danza;
Ma il canto più bello è ancora quello dei sensi nudi.

Silenzio, musica meridiana,
qui e nel mondo poesia circolare :
L'oggi si sposa col sempre
nel diadema dell'iride che s'alza.
Siedo alla mia tavola, e fumo e guardo :
Ecco una foglia giovane che trilla nel verziere difaccia;
I bianchi clombi volteggiano per l'aria come lettere d'amore buttate dalla finestra;
Conosco il simbolo, la cifra, il legame
Elettrico
La simpatia delle cose lontane;
Ma ci vorrebbero delle frutta, delle luci e delle moltitudini
Per tendere il festone miracolo di questa pasqua.
Il giorno si sprofonda nella conca scarlatta del'estate;
E non ci sono più parole
Per il ponte di fuoco e di gemme.

Giovinezza, tu passerai come tutto finisce al teatro
Tant Pis! Mi farà allora un vestito favoloso di vecchie affichés.

Ardengo Soffici (gamado daqui, onde existe uma tradução inglesa, também lá estão outros seis insignes e valorosos poetas.)

Prazer

Versa, 18 de Fevereiro de 1917

Sinto em mim a febre
desta
plenitude de luz

Acolho este
dia como
o fruto que se torna doce

Esta noite
terei
um remorso como um
uivo
perdido no
deserto

Giuseppe Ungaretti, Vida de um Homem, Hiena Editora, Luís Pignatelli, Hiena Editora, 1987
God no. Not again.

World Press Photo, 2010

Os vencedores. Aqui.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A quem possa interessar

Festa do livro antigo e usado a 1 €: de 15 A 27 de Fevereiro - 2ª a SÁBADO das 9 às 18h00 na rua de São Vicente, 14-C à Graça (Lisboa). Ler mais aqui.

Das questões fundamentais


(Uma cena fundamental de The Fountainhead de King Vidor, 1949, e não só.)

O amor no chão

O vento da outra noite derrubou o Amor
Que, no mais misterioso recanto do parque,
Nos sorria, ao esticar malignamente o arco,
E cujo ar nos fez meditar com fervor!

O vento da outra noite derrubou-o! O mármore
com o sopro da manhã, disperso, gira. É triste
Olhar o pedestal, onde o nome do artista
Se lê com muito esforço à sombra de uma árvore,

É triste ver em pé, sozinho, o pedestal!
Melancólicos vêm e vão pensamentos
No meu sonho, onde o mais profundo sofrimento
Evoca um solitário futuro fatal.

É triste! — E mesmo tu, não é? ficas tocada
Plo cenário dolente, embora te divirtas
Com a borboleta rubra e de oiro, que se agita
Sobre a alameda, além, de destroços juncada.

Paul Verlaine, Poemas Saturnianos e Outros, Fernando Pinto do Amaral (trad.), Assírio & Alvim, 1994. Tirado de aqui.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Agonia

Morrer como as sedentas cotovias
na miragem

Ou como a codorniz
uma vez atravessado o mar
nos primeiros arbustos
porque de voar
já não tem desejos

Mas não viver de lamentos
como um pintassilgo cego

Giuseppe Ungaretti, Vida de um Homem, Hiena Editora, Luís Pignatelli, Hiena Editora, 1987

Yellow Cat

Contra a «abibliografação»

1. Não o escrevas se sentes que não tens nada a dizer.
2. Não o escrevas se estás demasiado impressionado com o teu próprio brilhantismo e tens esperança que outros também venham a ficar maravilhados com a tua inteligência, especialmente se essa for a tua única motivação para o escrever.
3. Não o escrevas se o vais fazer just for petty annoyance em relação ao tipo que escreveu sobre o assunto antes de ti.
4. Não o escrevas se acima de tudo não estiveres à procura de iluminar a verdade sobre o assunto sobre o qual pretendes debater. De tudo o que tenho lido, aprendi que ainda é tolerável se a verdade que te propões procurar for uma daquelas mesquinhas, de ordem pessoal e altamente idiossincrática (estas às vezes conseguem ser as melhores de todas).
5. Não o escrevas se não tens vontade de estudar a fundo o que quer que seja necessário estudar para que o possas escrever.
6. Não o escrevas se não tiveres vontade de no fim ficares exposto ao necessário contraditório de quem quiser ou puder discutir contigo a ideia que defendeste.
7. Não o escrevas se não sentires rigorosamente nada em relação ao assunto com que te debates. Se for um assunto neutro, se não te diz nada, diria que é preferível que nem lhe pegues.
8. Se não vais trazer rigorosamente nada de novo ou propor um ponto de vista ligeiramente diferente, que possa esclarecer qualquer coisa nova em relação ao assunto, não o escrevas.
9. Se vais dar erros ortográficos na língua estrangeira que terás de manipular para o escrever, ou, mais simplesmente, se sabes que dás erros ortográficos ou se tens dúvidas de sistematização para evitar calinadas, procura quem perceba do assunto antes de o escreveres e pede-lhe que te explique o que não percebes, ou não o escrevas.
10. Se o vais escrever porque querias era pertencer à bibliografia activa mas achas que o teu talento vai deixar siderados os gajos da bibliografia passiva, sucedendo, ao mesmo tempo, achares secundário o conteúdo do que tens a dizer, não o escrevas.

Porque, para acabares a escrever coisas da ordem desta: «Não é preciso escrever, muito menos ser Pessoa para se sentir melancolia. Até o Zé da esquina e o Zé do centro da rua e o Zé que varre a calçada, sabe que o pensamento dói. Evidentemente que sim - Todo [sic] o poeta é um melancólico. E Bernardo Soares, o poeta que o não foi, seria ainda melancólico por esta falência.» - acredito (e esta é só a minha opinião) que mais vale que não o escrevas.

Dez Livros...

...que davam videojogos. Aqui.

Aldus Manutius, printer and publisher

The contributions of Aldus Manutius to European culture are manifold, his publication of the vast Greek Aristotle (1495-8) and of the Opera of Poliziano (1498) chief among them. The Aldine Greek types brought about something signally lacking up to that point, a distinctively humanist style of presentation of Greek texts. Aldus combined in one person the figures of humanist-scholar and printer-publisher, thus setting the stage for the great scholar printers of the next century, the Frobens and the Estiennes. Behind all his varied and not always successful enterprises lay a simple, and for centuries very powerful idea: the humanist conviction that good letters lead, under God's guidance, to good men.

Martin Davies, "Humanism in Script and Print in the Fifteenth century", The Cambridge Companion to Renaissance Humanism, Jill Kraye (ed.), Cambridge University Press, 1996.

(Como se pode ver, um tipo inteligente este Aldo Manuzio.)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Housism

Despite what you may've learned in Hebrew school or from Jimmy Cliff, sometimes the bigger they are... the harder they kick your ass.

O que sinto nestes dias cinzentos:

Como dizia Petrarca

Not far into his twenties, Petrarch left Italy and attached himself to the papal court in Avignon. From there in 1333 he visited Paris and Liège, and at Liège he discovered the speech for Archias, which he copied out in his own hand. Eighteen years later, when a Florentine friend offered him more speeches of Cicero's, he thanked him with a copy of Pro Archia, which he describes in his covering letter (Variae 45)as 'a speech full of wonderful compliments to poets'. There speaks the first poet since Statius to be crowned on the Capitol, who in the adress he composed for the occasion in 1341 quoted Cicero's view that poets are born by divine favour, not made (Pro Archia 18).

Michael D. Reeve, "Classical Scholarship", The Cambridge Companion to Renaissance Humanism, Jill Kraye (ed.), Cambridge University Press, 1996.

A melhor explicação que li acerca disto (poets are born ... not made), ainda que seja uma explicação cum grano salis, continua a ser a de Platão no Íon. Olho para trás, e já devem ter passado uns cinco anos desde que o li, mais coisa menos coisa, e esse texto continua a parecer-me uma maravilhosa reflexão acerca do que é um poeta, do que é o ofício de poeta, cum grano salis e tudo. O Pro Archia é outra coisa, nunca me esqueço de que é retórica.
Prémios Autores.

Aunque tu no lo sepas

Como la luz de un sueño,
que no raya en el mundo pero existe,
así he vivido yo
iluminado
esa parte de ti que no conoces,
la vida que has llevado junto a mis pensamientos...

Y aunque tú no lo sepas, yo te he visto
cruzar la puerta sin decir que no,
pedirme un cenicero, curiosear los libros,
responder al deseo de mis labios
con tus labios de whisky,
seguir mis pasos hasta el dormitorio.

También hemos hablado
en la cama, sin prisa, muchas tardes
esta cama de amor que no conoces,
la misma que se queda
fría cuanto te marchas.

Aunque tú no lo sepas te inventaba conmigo,
hicimos mil proyectos, paseamos
por todas las ciudades que te gustan,
recordamos canciones, elegimos renuncias,
aprendiendo los dos a convivir
entre la realidad y el pensamiento.

Espiada a la sombra de tu horario
o en la noche de un bar por mi sorpresa.
Así he vivido yo,
como la luz del sueño
que no recuerdas cuando te despiertas.

Luis García Montero, Habitaciones Separadas, Visor Libros, 1994.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O museu da Acrópole em Atenas. Mais aqui. (Porque tenho nostalgia de lugares onde nunca estive e de nenhum tanto quanto da Grécia.)

Olympic Swimmers

XXXIV

Acabou-se o estranho, com quem, tarde
na noite, regressavas, palra e palra.
Ninguém haverá já que me aguarde,
preparado o meu lugar, bom o que é mau.

Acabou-se a afectuosa tarde;
tua grande baía e teu clamor, o palratório
com tua mãe já tão cansada
que nos oferecia um chá pleno de tarde.

Acabou-se por fim tudo: as férias,
tua obediência de peitos, tua maneira
de pedir-me que não me vá embora.

E acabou-se o diminutivo, para
minha maioridade na infinita dor,
e o nosso ter nascido assim sem causa.

César Vallejo, Antologia Poética, José Bento (trad.), Relógio d'Água, 1992






















Às vezes não te acontece isto: ficares preso à luz de uma imagem como a um poema?

Tenho um medo terrível

Tenho um medo terrível de ser um animal
de branca neve, que sustentou pai
e mãe, com sua única circulação venosa,
e que, neste dia esplêndido, solar e arquiepiscopal,
dia que representa assim a noite,
linearmente
elude este animal estar contente, respirar
e transformar-se e ter dinheiro.

Seria enorme mágoa
que eu fosse homem até esse ponto.
Um disparate, uma premissa ubérrima
a cujo jugo ocasional sucumbe
o gozo espiritual da minha cinta
Um disparate... Entretanto,
é assim, para cá da cabeça de Deus,
na tabela de Locke, de Bacon, no lívido pescoço
da besta, no focinho da alma.

E na lógica aromática,
tenho esse medo prático, neste dia
esplêndido, lunar, de ser aquele, este talvez,
a cujo olfacto cheira a morto o solo,
o disparate vivo e o disparate morto.

Oh espojar-se, estar, tossir, enfaixar-se,
enfaixar a doutrina, as têmporas, de ombro a ombro,
afastar-se, chorar, dá-lo por oito
ou por sete ou por seis, por cinco ou dá-lo
pela vida que possui três potências.

22 Out. 1937

César Vallejo, Antologia Poética, José Bento (trad.), Relógio d'Água, 1992


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Acabado de ouvir

Eu gostei do Nine porque sou gay e, logo, gosto de musicais.

Curiosidade

Resignação

Durante a minha infância imaginava
o Ko-Hinor, luxo persa e papal,
Heliogábalo e Sardanapalo!

Sobre os tectos de ouro o desejo urdia,
Entre os perfumes e as melodias,
Hárens sem fim, pálpaveis paraísos!

Hoje, mais calmo e não menos vibrante,
Mas conhecendo a vida que nos quebra,
Tive de refrear a minha febre
Sem me resignar muito, no entanto.

Seja! A grandeza não é pròs meus dentes,
Mas não me interessa a escória, as cortesias!
Insisto em odiar mulheres bonitas,
Rimas toantes e amigos prudentes.

Paul Verlaine, Poemas Saturnianos e Outros, Fernando Pinto do Amaral (trad.) Assírio & Alvim, 1994

domingo, 7 de fevereiro de 2010

A angústia

Nada em ti me comove, Natureza, nem
Faustos das madrugadas, nem campos fecundos,
nem pastorais do Sul, com seu eco tão rubro,
A solene dolência dos poetas, além.

Eu rio-me da Arte, do Homem, das canções
Da poesia, dos templos e das espirais,
Lançadas para o céu vazio plas catedrais.
Vejo com os mesmos olhos os maus e os bons.

Não creio em Deus, abjuro e renego qualquer
Pensamento, e nem posso ouvir sequer falar
Dessa velha ironia a que chamam Amor.

Paul Verlaine, Poemas Saturnianos e Outros, Fernando Pinto do Amaral (trad.) Assírio & Alvim, 1994
Melancholy in this sense is the character of mortality.

Robert Burton, Anatomy of Melancholy, Lawrence Bobb (ed.), Michigan University Press, 1965.

«The Paradine Case» de Alfred Hitchcock, 1947























(A Alida Valli ficou agarrada a este papel...)

Licáon

I
a luz entre as persianas fere-lhe os olhos
ele toma pelo pulso o peso da noite
entre mãos o desconforto a manhã demasiado rápida
rapaz curvando a cabeça ao canto inferior dos pássaros
e ainda entretecido nas vozes de mulheres que cantam

este: licáon, o mais jovem dos filhos de príamo
ao amanhacer não sabe
(erros seus? Má fortuna?)
quanto de um dia escuro
pelos braços lhe vem subindo
e sobre o peito se cerra já

ele como todos os outros
ainda inteiro e já eivado de sombra
vai pela planície
pela margem do rio avança
em sangue e saibro
um instante a mais de sol

II
depois de todas as palavras se estilhaçarem
contra a angústia sobrevém um respirar de luz
em pequenos quartos paredes brancas
a vida ao contraste do peso do bronze
quanto de ti ensurdece e se vai perdendo
em gestos que a neblina esbate

o canto das mulheres é uma água já demasiado tarde
e a luz entre as persianas fere
o hábito velho de desde o princípio
ter aprendido a fechar os olhos
nunca rente às janelas te ter ocorrido
ao quebrar das lâminas
a luminosidade interior

Tatiana Faia

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Invictus

Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

William Ernest Henley, daqui.

Formação para o Assédio

Uma formação para o assédio?
Exactamente. Há estágios para aprenderem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio de formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato durante as reuniões, etc.. E, no fim do estágio, o director do estágio deu a todos a ordem de… matar o seu gato.


Está a descrever um cenário totalmente nazi...
Só que aqui ninguém estava a apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato. Seja como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma descompensação aguda e eu tive de tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas os outros 14 mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser impiedoso, uma aprendizagem do assédio.

Penso que há bastantes empresas que recorrem a este tipo de formação – muitas empresas cujos quadros, responsáveis de recursos humanos, etc., são ensinados a comportar-se dessa maneira.

Tirado daqui.

[palavras para alegrar o coração pelo fim-de-semana fora]

"Os poetas da Antologia Grega dizem-nos de maneira inequívoca que, à medida que a pilosidade do adolescente vai aumentando, a sua atracção sexual vai diminuindo. Grande parte dos epigramas subordinados a este tema apresentam-nos um amante desolado e, talvez, um pouco repugnado pela chegada de pêlos vários em partes diferentes do corpo do amado. (Os pêlos públicos, porém, não são objecto de queixa.) O aparecimento da barba é tido como o momento decisivo, a partir do qual o papel do amante "passivo" é, além de indesejável, moralmente condenável. Num poema (XII.228), o amante convence o amado de que a idade em que ele está é a idade própria para aceitar o papel passivo; por outro lado, noutro epigrama (XII.225), há um amante que acusa outro de manter relações com amados demasiados velhos. Os pêlos são referidos de muitas maneiras: como um castigo que Némesis dá aos rapazes arrogantes (XII.186, 193, 229); como a razão pela qual ontem o amado era Troilo e hoje é Príamo (XII.191). "Assim como uma linda flor murcha com o calor, a beleza murcha com um pêlo" (XII.195)."

Frederico Lourenço, "Os Poemas de Estratão de Sardes", in Novos Ensaios Helénicos e Alemães, Lisboa, 2008
Ermo,
o sol dá lugar às lágeas
lisas da noite, açoitada de vento.
Prende a imobilidade da morte
sob o vaguear incessante, asas
do anjo, a vida do insecto,
cobre plantado na coroa do outeiro.

João Miguel Fernandes Jorge, Pelo Fim da Tarde, Quetzal Editores, 1989

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A habilidade mais simples

The village floated and bulged, crimson clay oozing from its gloomy wounds. The first star flashed above me and tumbled into the clouds. The rain whipped the willow trees and dwindled. The evening soared into the sky like a flock of birds and darkness laid its wet garland upon me. I was exhausted, and, crouching beneath the crown of death, walked on, begging fate for the simplest ability - the ability to kill a man.

Isaac Babel, Red Cavalry, Nathalie Babel (ed.), Peter Constantine (trad.), Norton, 2003

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Uma porta anuncia
o deserto, a memória, o desejo.
Rasgada folha que resta no livro.

João Miguel Fernandes Jorge, Pelo Fim da Tarde, Quetzal Editores, 1989






























Katharine Hepburn, fotografia de Bob Willoughby.
save

Os Arautos Negros

Há pancadas tão fortes na vida... Eu sei lá!
Pancadas como do ódio de Deus; como se sob elas
a ressaca de todo o sofrimento
estagnasse na alma... Eu sei lá!

Poucas, mas acontecem...Abrem leivas escuras
no rosto mais duro e no dorso mais forte.
Serão talvez os potros de átilas selvagens;
ou os arautos negros que nos envia a Morte.

São as profundas quedas dos Cristos da nossa alma,
de uma fé adorável que o destino blasfema.
Tais pancadas sangrentas são as crepitações
de um pão que à porta do forno se nos queima.

E o homem...Pobre...Pobre! Volta os olhos, como
quando em seu ombro uma palmada o vem chamar,
volta os seus olhos loucos, e todo o já vivido
como um charco de culpa estagna em seu olhar.

Há pancadas na vida tão fortes...Eu sei lá!

César Vallejo, Antologia Poética, José Bento (trad.), Relógio d'Água, 1992

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O que quero problematizar em tudo isto:

Le beau peut-il être triste? La beauté a-t-elle partie liée avec l'éphémère et donc avec le deuil? Ou bien le bel objet est-il celui qui revient inlassablement après les destructions et les guerres pour témoigner qu'il existe une survivance à la mort, que l'immortalité est possible?

Julia Kristeva, Dépression et Mélancolie, Éditions Gallimard, 1987
Guardem, também, silêncio as
flores do limoeiro, a laranjeira.
Não sou uma única voz
na manhã do dia que findara.

João Miguel Fernandes Jorge, Pelo Fim da Tarde, Quetzal Editores, 1989


























Toshiro Mifune e Machiko Kyo numa cena de Rashomon de Akira Kurosawa.
Voltou o rosto
e viu o outro: a cabeça
baixa, os braços estendidos,
mãos sobre os joelhos.
Contemplou-o sob o peso da
amargura.
Disse-lhe o nome.
Uma única palavra,
áspera corda na claridade da noite.

João Miguel Fernandes Jorge, Pelo Fim da Tarde, Quetzal Editores, 1989
Vê isto. (Thanks Eve.)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Acabado de ouvir

Qual Proust qual carapuça, o Falcao é que é.

Mastroianni

Questão arrumada

O principal problema para se relacionar com a poesia é ser supérfluo o que se possa dizer acerca dela. E, contudo, a consciência de nada haver para dizer acumula um sem fim de textos onde, de cada vez, mais uma continua a infinda fala sobre essa questão: a poesia.
E começa por aqui: a poesia não é uma questão. É tão-só o uso que por alguns é feito das palavras.

Joaquim Manuel Magalhães, Rima Pobre, Editorial Presença, 1999

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Uma cena de «In a Lonely Place» de Nicholas Ray, 1950



Parece que Nicholas Ray, à data em que filmou In a Lonely Place, se estava a divorciar de Gloria Grahame. Quando chegou o momento de filmar a última cena, Ray resolveu que o filme não podia terminar como ele tinha originalmente planeado, de modo que pediu a Humphrey Bogart e a Gloria Grahame que improvisassem a cena.
Vivi nesta casa muitos anos.
Agora mudaram já decerto a fechadura
e as pequenas coisas que fazem uma casa.
As chaves já não as trago
ao lado dos meus gestos.

Mudaram os móveis
deitaram foram as cortinas
e as paredes
trazem agora um calendário novo.

Uma casa é sempre
caliça cheiros alianças.
Eu avanço sobre o silêncio de
ainda
esperar por ti.

João Miguel Fernandes Jorge, À Beira do Mar de Junho, Na Regra do Jogo, 1982

Richard Burton

"And Now for Something Absolutely Different"

Aqui a vida é uma poeira arrastando.
As lanças deixam ficar por toda a parte
alguma coisa do seu calor
mesmo se o nevoeiro envolve o corpo.

Suporto o sol a trajectória do tiro
o agasalho farrapo onde embalo a noite
do acampamento
é o próprio frio desdobrando a mesquinha

morte. Morte chega aos olhos a tua cor
e apaga-os.
Os ratos. Os ratos brancos e cegos de
Mafra estão aqui nestes corredores e

nestas pedras. Carregando de poeira
aqui a vida todos a trazem à altura do
coração e a perdem nos caminhos e dizem
aos vossos destinos

mas o destino aqui não se lê nem escreve.
Histórias de coragem e expiação
contadas almas que cumpriram o tempo do
medo comum a paz impraticável ou o verso.

João Miguel Fernandes Jorge, À Beira do Mar de Junho, Na Regra do Jogo, 1982