sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Lisboa, 1971

O chauffer de taxi queixava-se da vida.
Ganha 400$00 por semana, o patrão conta
que ele se arranje do a mais com as gorjetas.
Os meus amigos morrem de cancro,
de tédio, de páginas literárias,
vi um rapaz sem as duas mãos que perdeu
na guerra (e o ortopedista ria-se de que ele
só queria por enquanto "calçar" uma
das que, artificiais, lhe preparou tão róseas).
As pessoas esperam com surda raiva e muita paciência
o autocarro, aumento de ordenado, a chegada
de Paracleto, bolsas da Gulbenkian.
Mas o chauffer de taxi contou-me que
discutira com um asno e lhe dissera:
"...V. que nesse tempo ainda andava em fuga
de colhão para colhão do seu pai,
para ver se escapava a ser filho da puta..."
E é isto: andam de colhão para colhão
a ver se escapam - e muitos não escapam.
E os outros não escapam aos que não escaparam.

Jorge de Sena, Exorcismos, 1972

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