terça-feira, 4 de agosto de 2009

A fuga dos bichos

É extraordinário encontrar um livro no baú de um familiar antigo. O cheiro a guardado, aliado ao pó que desliza pelos dedos aventureiros, o amarelo das páginas, as letras impressas ao modo do antigamente, tudo isso faz com que o acto de ler seja motivo de regozijo. Bichos, livro de contos da autoria de Miguel Torga, foi uma das relíquias que encontrei no meio do pó que me coube de herança.

Um senhor que muito prezo já me havia avisado: «Nunca li Torga mas trata-se de um grande prosador.» Nem mais. O senhor André, sempre embebido pelos sonhos que nunca se chegaram a cumprir, não costuma falhar nestas coisas. É um céptico. Já viveu e conheceu muito.

O óbvio: Bichos é um livro no qual se conta a história de vários animais que, por serem inferiores ao Homem, ganham o nome de bichos. Nero, homónimo do imperador, nunca chega a ultrapassar a sua condição de cachorro. Mago, o gato, não consegue perceber o real alcance do seu mágico nome. Tenório, o galo, muito «Cá-que-rá-cá» faz mas não atinge o poder de macho. O medo controla-o. Enfim, todas as personagens animalescas desta pequena obra são sempre remetidas para a sua condição inferior. São maltratadas por um homem ainda menos racional que os bichos que aterroriza. Miura, o touro, é posto no meio de uma tourada e nunca percebe o que se passa à sua volta. Só sabe que tem de perseguir o manequim de lantejoulas, o toureiro. No entanto, a dor supera-o sempre. Vejamos: «Subitamente, abriu-se-lhe sobre o dorso um alçapão, e uma ferroada fina, funda, entrou-lhe na carne viva. Cerrou os dentes, e arqueou-se. Num ímpeto.» Uma engraçada estória de alienação mental está ligada à personagem do Senhor Nicolau, uma das únicas figuras humanas a serem figura central de uma narrativa: «As nações desabavam, sucediam-se guerras, a própria aldeia oscilava nos gonzos. Mas o senhor Nicolau alheio às paixões humanas, continuava a povoar os dias de libélulas e borboletas.»

Neste livro, Torga acaba por tratar de uma temática muito simples: a liberdade. Vicente, o corvo, não se resignando por estar fechado há quarenta dias nas arca de Noé e não se sentindo culpado pelas fornicações humanas, foge. É perseguido e castigado. Mas nunca desiste de ser livre, de se livrar da condenação terrena. Deus bem o quer castigar por ter fugido a Noé, mas Vicente não aceita a derrota. «Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.»

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