terça-feira, 7 de julho de 2009

A Cultura e o Satyricon de Petrónio

... Para mais, já está a crescer um futuro aluno teu, que será o meu pequeno Cícero. Já sabe dividir por quatro, se vingar, terás à tua beira um criadinho. Pois, sempre que tem um tempito livre, não levanta a cabeça dos livros. É espertote e de bom estofo, se bem que tem a mania da passarada. Já lhe matei três pintassilgos e disse que os tinha comido a doninha. Mas lá descobriu outras lérias e o seu maior prazer é pintar...
Petrónio, Satyricon, Delfim F. Leão (trad.), Livros Cotovia, 2005.

No mais famoso fragmento que até nós chegou do Satyricon, o "Festim de Trimalquião", Equíon, um dos libertos afirma que litterae thesaurum est (mais ou menos literamente: as letras é tesouro). Uma aguda consciência da importância da instrução num sujeito que, ao sintetizá-la, dá três erros de latim.
O caso é paradigmático em relação à oposição entre cultura e actividade económica que se desenha um pouco por toda a obra. Até porque este liberto, Équion, está a dar uma lição ao professor de letras, Agamémnon, o qual surge no início fazendo uma longa prelecção sobre o (mau) estado da educação no império romano. Porém este mesmo professor, sendo pago e precisando de ser pago, não tem qualquer escrúpulo em descer o nível de exigência para dar boas notas aos seus alunos.
Outro exemplo, que pode ajudar a configurar a imagem da relação que se estabelece entre cultura e actividade económica, é o de outra personagem, o poeta Eumolpo. Este Eumolpo já está habituado a ser apedrejado quando declama a sua poesia e a personagem principal, Encólpio, acede dar-lhe uma refeição a troco do seu silêncio.
Estes dois exemplos talvez sirvam para imprimir na mente do leitor a noção de que cultura e actividade económica não coincidem. No discurso do liberto que fala no parágrafo 46 (e onde se integra o excerto acima transcrito), vamos encontrar mais ou menos o mesmo tipo de opinião.
Este liberto é, à sua maneira, um iluminado. Sabe que é importante dar ao filho a educação que ele próprio não teve, mas também tem noção de que é necessário matar os pintassilgos ao rapaz, e desagrada-lhe o facto de este ter descoberto "outras lérias" em substituição do hobbie dos pintassilgos, ou seja, pintar, actividade da qual retira grande prazer - um jovem dado às musas, portanto. Isto apoquenta o pai, homem que, depreende-se, subiu a pulso (esta era uma característica da classe social dos libertos no império romano, que ascenderam largamente na época dos julio-claudianos, eram uma espécie de self-made men) e com muito pragmatismo à mistura. Não é educado, e pode até ser motivo de troça para os estudantes presentes no festim, mas o seu crédito é válido no forum.
Este antigo escravo, que construiu a sua prosperidade a partir da sua actividade económica, possui uma visão pragmática da educação e compra "uns alfarrábios vermelhos" para o filho "dar umas trincas no direito" (aliquid de iure gustare, mais um exemplo de mau latim), pois a educação é útil apenas até ao ponto em que serve para dar pão (habet haec res panem) e perniciosa se criar no rapaz atracção por pintura e pintassilgos. A própria imagem que este liberto tem dos professores denota isto, podem até ser muito educados, mas, em seu entender, os professores, embora sabendo as suas letras, não querem trabalhar ou ensinam mais do que sabem e aparecem em casa dos seus discípulos aos feriados e ficam contentes com quaisquer "restos" que apanhem (esta leitura é bastante literal, deriva de excertos como: ...scit quidem litteras, sed non uult laborare... ou ...est et alter non quidem doctus sed curiosus, qui plus docet quam scit. itaque feriates diebus solet domum uenire, et quicquid dederis, contentus est).
Mesmo a imagem que se dá das personagens principais, Encólpio, Ascilto ou Gíton (por exemplo), tende para a noção de que, embora a cultura até possa conceder uma certa superioridade na compreensão da vida, contudo, a actividade económica é que assegura a sobrevivência e, regra geral, ambas nunca se misturam.
Os libertos, incultos em relação a qualquer coisa que não seja a sua própria cultura, possuem prosperidade e julgam que a cultura é até impeditiva desta, o que o comportamento de Eumolpo ou de Agamémnon, por exemplo, parece confirmar.

Pertubador é o facto de uma visão que nos chega dos tempos do principado de Nero (a mais provável data de composição do Satyricon) permanecer tão actual.

2 comentários:

  1. Cá para mim a obra divide-se em dois grupos: os poetas e os não poetas. Ou és poeta ou és rico. "Ou és sábio ou és rico (com o sábio sentado á tua porta)."
    É muito irritante a obra estar fragmentada...

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  2. sim, nunca poderemos saber como acaba aquilo. e o pior é não se saber nada com certeza absoluta acerca dela. nem autor, nem época, nem sequer a época em que decorre a acção, etc.

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