sábado, 5 de dezembro de 2009

O chão geme sob os seus passos — os da mulher — quando dança e ela sorri enquanto dança, apesar do frio que faz, de Agosto ser tão frágil que quase o esquecemos, de depois de amanhã tudo voltar ao corropio regular, a gravata azul, pela semana fora, os dias iguais. Mesmo as nossas caras são, regra geral, iguais de um dia para o outro. O tempo é subtil, alvenaria negativa subtil é o seu ofício. Desfaz as pedras lentamente, por dentro faz coisas que passam desapercebidas, subitamente rui a ala direita, o corpo seriamente soçobrante, a arfar, com medo, e ainda a face reconhecível, só um pouco diferente: o tempo caiu sobre ela pesadamente, visivelmente, anos passaram num instante numa dor no peito, um lado da cara arruinado, a perna amotinada, ou foi lá dentro, uma dor cá dentro, uma mínima ruína, um acréscimo ameaçador, a desarmonia do contraponto no número igual. Como se um traço de sangue riscasse a pauta até então tocada repetidamente em compasso regular. Tocam outras teclas, ociosas pela falta de uso, ou só há muito tempo atrás, uma criança traquinas só para ver o que acontece, antes da ruína se tornar manifesta. Só nisto os contemporâneos estão em desvantagem: não há um nome para amaldiçoar. A desgraça vai e vem como as estações do ano.
Talvez por isso eu desça pela manhã. Não sou um homem amargo. O gato olha para mim, deitado sobre o dicionário de grego aberto. Fecha os olhos, a minha mão na cabeça desperta um ronronar, abre os olhos, um resfolegar pesado, contente.
Só há fome. O frio salda-me por dentro. Sou indiferente, amigável, ausente. Sou velho ainda. Ainda não. Sei o frio nas mãos. Sei a fome nas mãos. Escrevo por frio e fome.

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