quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Bouvard e Pécuchet

Perto do final da vida, Flaubert já não podia aturar duas das últimas personagens que criara. Falo de Bouvard e Pécuchet, que surgem no seu último romance, Bouvard e Pécuchet. O próprio Flaubert para escrever o livro não passou menos a horas a copiar enciclopédias do que Bouvard e Pécuchet passam no livro a estudá-las.
Isto deve-se ao facto de a obra se constituir da história de dois copistas que, porque um deles ganha uma herança, resolvem ir viver para o campo e lá praticar todas (mas todas mesmo) as experiências de qua se lembram: desde a medicina à pedagogia, passando pela museologia, pelo teatro, pela literatura. Como todas as experiências falham sempre, o livro é um labirinto, uma coisa diabólica, que parece que se pode estender até ao infinito, seguindo sempre a mesma fórmula.
Flaubert morreu antes de o acabar mas deixou-nos um plano bastante detalhado do final, que eu não vou contar, evidentemente. Borges tem um texto muito bom sobre este livro, em que faz a reabilitação de Bouvard e Pécuchet, chama-se «Reabilitação de Bouvard e Pécuchet» e está publicado no seu livro de 1932, Discussão.
O livro é muito divertido, e os dois copistas às vezes arriscam-se a dar-nos as suas definições sobre os temas mais profundos. No entanto, todas as definições são um acumular de lugares comuns, os copistas não têm ideias próprias e muitas vezes temos quase a certeza que nem personalidade própria possuem (a inexistência de uma coisa tende a excluir a outra). De certa forma, Bouvard e Pécuchet poderá ser entendido como um Dictionnaire des Idées Reçus, só que mais longo. Deixo-vos a definição de Bouvard e Pécuchet do sublime, que parece confirmar esta ideia.

Trataram da questão do sublime.
Certos objectos são por si mesmos sublimes - o estrépito de uma corrente, trevas profundas, uma árvore açoitada pela tempestade. Um temperamento é belo quando triunfa e sublime quando luta.
- Estou a compreender - disse Bouvard - o Belo é o Belo, e o Sublime é o muito Belo.
Como distingui-los?
-Por meio do tacto - respondeu Pécuchet.
-E o tacto, de onde vem ele?
-Do gosto!
-Que é o gosto?

Gustave Flaubert, in Bouvard e Pécuchet, Pedro Tamen (trad.), Livros Cotovia, 1990.

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