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(San Sebastián, há pouco.)
Passou Brás Luís de Abreu ao Porto, fazendo tenção de estabelecer-se na segunda cidade do reino. Deteve-se em Aveiro alguns dias, e passeando cientificamente pelos arrabaldes da vila, descobriu a planta do chá, nascida em barda por aqueles maninhos. Consta-me que os aveirenses, decerto ignorantes do descobrimento do médico, ainda agora compram para seu uso chá da China, como se não tivessem ali à mão a erva de que se faz. Aqui lhe transcrevo as palavras de Brás Luís, e muito faço em prova do meu desprendimento de bens de fortuna, se não iria eu propriamente colher a erva, comprar os maninhos, e senhorear-me de Aveiro em poucos anos. Aqui está a notícia:
"Na vila de Aveiro, e em todas as suas vizinhanças, nasce uma erva, a que os naturais chamam erva formigueira, porque pisada tem o cheiro como de formigas pisadas; e há em tanta quantidade que podem carregar-se navios dela. Esta tal (ao meu entender) é o verdadeiro chá que vem da China e do Japão; não só porque a experiência descobre nela as mesmas virtudes do chá; mas também porque mandando-se da Índia a Gonçalo de Sousa de Meneses, morador na sua quinta de Salreu, a semente do legítimo chá, ele a mandou semear com todo o cuidado, e nasceu a mesma erva de que aqui se acham revestidos os campos e os cômaros."
Não há dúvida nenhuma: o chá da Índia é a erva formigueira de Aveiro. E dizem que nós, os portugueses, não somos gente para descobrimentos! O que nós somos é uns pródigos e depreciadores dos mananciais de riqueza que a Providência nos oferece como a filhos seus dilectíssimos. Se alguma companhia entrasse em exploração daquela mina, quem sabe se, fechados os portos à erva indiática, poderíamos ainda com o nosso chá amortizar a dívida externa, e meter a Europa numa infusão de erva formigueira? Razão tinha o patriota doutor Olho de Vidro, quando em seguida à notícia, que os coevos menosprezaram, ajuntou:
"Quem quiser indagar-lhe os préstimos, com facilidade o pode fazer, se acaso não for do génio daqueles que fazem eterno capricho de preferir sempre as coisas estrangeiras às nacionais e domésticas".
Não se sabe como, a ideia de que podiam tornar-se parentes foi criando raízes e partilhavam tudo: ideias, livros e aquela mania de descreverem Raskólnikov, deixando só um osso descarnado, um fóssil do qual não se tira mais nada.
Assim como os pequenos lobos brincam entre eles e se preparam para o sexo e as caçadas, também os irmãos, embora criados em castidade e defesa do pecado, se entregam a mil ares de sedução e de traição até aos mais obscuros passos da paixão humana. Vêde as irmãs Brontë, as escritoras. Há melhor sarabanda do desejo, melhor orquestra de suspiros e tormentos? O irmão chega a apagar o retrato dele no meio dos retratos delas. E morre como um peixe no seu tanque de água salobra, procurando saltar e libertar-se. Querem exemplo melhor duma família feliz, embriagada de amor, e de álcool e de urzes das serras? Assim nascem os romances; do proibido e negro pasto do coração. Quando não houver mais esse gosto das coisas inabordáveis e trágicas, não haverá romance, nem literatura, nem nada.
Agustina Bessa-Luís, Antes do degelo
Sí: tenía quince años cuando la conocí - lees en el segundo folio de las memorias - elle avait quinze ans lorsque je l'ai connue et, si j'ose le dire, ce sont ses yeux verts qui ont fait ma perdition: los ojos verdes de Consuelo, que tenía quince años en 1867, cuando el general Llorente casó con ella y la llevó a vivir en París, al exilio. Ma jeune poupée aux yeux verts; je t'ai comblée d'amour: describió la casa en que vivieron, los paseos, los bailes, los carruajes, el mundo del Segundo Imperio: sin grande relieve, ciertamente. J'ai même supporté ta haine des chats, moi qu'aimais tellement les jolies bêtes... Un día la encontró, abierta de piernas, con la crinolina levantada por delante, martirizando a un gato y no supo llamarle la atención porque le pareció que tu faisais ça d'une façon si innocent, par pur enfantillage e incluso lo excitó el hecho, de manera que esa noche la amó, si le das crédito a tu lectura, con una pasión hiperbólica, parce que tu m'avais dit que torturer les chats était ta manière à toi de rendre notre amour favorable, par un sacrifice symbolique.
Sabes o que classificavam de felicidade máxima? Ter filhos belos e bons, e Telo de Atenas , o mais feliz dos homens, foi o mais feliz dos homens porque teve isto (filhos e netos belos e bons) e morreu com «um final brilhante», escreve Heródoto, porém não se deve fazer uma longa caminhada no meio de pessoas da mesma idade que sejam mais felizes que nós, era isto que aconselhavam os gregos, porque a meio da caminhada, a meio da peregrinação, vamos ter vontade de os matar, eis o que diz a minha amiga do México, que conhece bem a infelicidade e a violência, e por isso diz: ser feliz é para os europeus, no México as coisas são mais excitantes. Si? Pergunto. Si, responde ela.
O meu combate era a doutrina, a alfabetização, era pôr as minhas leituras ao serviço da libertação maubere, de alguma maneira. Explicar à massa rural analfabeta o que era Virgílio, por exemplo, que era o que eu conhecia melhor porque, é redundante explicar, era a paixão literária do meu pai. É claro, Virgílio e os clássicos interessam pouco a agricultores que, de epopeias e da sua própria gesta, querem apenas o canto do oráculo sobre a próxima colheita - algo que nós, maoístas de véspera, não levámos em conta.
O adjunto Jó, na altura, viu logo aquilo que eu era, aquilo que eu poderia ser e, sobretudo, aquilo que eu nunca seria, ainda que muito tentasse. Parte do meu carisma era detectar antes de tempo as limitações dos outros. Durante a retirada para o Matebian, uma tarde, pôs-me a mão no ombro,
És igual a mim, Eneias, mas não tentes ser como eu. Vamos lutar juntos, firmes, mas tu combates virado para o passado e eu combato virado para o futuro. Costas com costas ninguém nos tomba,
disse ele, falando para mim mas falando para toda a audiência de quadros,
é preciso alguém que olhe pela herança da nação enquanto a primeira linha olha o inimigo nos olhos.
Pedro Rosa Mendes, Peregrinação de Enmanuel Jhesus
Por questões práticas e políticas, não podia, de início, passar a Alor os testamentos de Ruy Cinatti - e a angústia deste ao constatar, depois da Segunda Guerra Mundial, a erosão rápida das artes e ofícios e de motivos tradicionais em Timor. Nem sequer dispunha dos livros na minha biblioteca. Os livros em português e o uso da língua eram anátema no tempo indonésio. Li Cinatti em biblioteca privada e em segredo, onde ninguém podia incomodar-me: em casa do governador Abílio Osório Soares. Não estou a inventar. A meu pedido, e parece que por recomendação do pai de Alor, o governador Abílio autorizou o rapaz a consultar «o que quisesse, quando quisesse», na sua biblioteca lusófona, que não era pequena. Penso que Alor aproveitou as leituras que fez, porque, a caminho de Baguia, disse-meVocê é uma quimera, Pak Eneias,Quimera, eu?
Eneias morreu por Matarufa e Matarufa não existe, geograficamente, politicamente, historicamente. Matarufa é uma ideia sem sítio, ou, se existe, ainda não emergiu das águas no início das coisas, pelo umbigo da mãe do mundo, como é que vocês dizem...