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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

com o nosso chá amortizar a dívida externa, e meter a Europa numa infusão de erva formigueira

Passou Brás Luís de Abreu ao Porto, fazendo tenção de estabelecer-se na segunda cidade do reino. Deteve-se em Aveiro alguns dias, e passeando cientificamente pelos arrabaldes da vila, descobriu a planta do chá, nascida em barda por aqueles maninhos. Consta-me que os aveirenses, decerto ignorantes do descobrimento do médico, ainda agora compram para seu uso chá da China, como se não tivessem ali à mão a erva de que se faz. Aqui lhe transcrevo as palavras de Brás Luís, e muito faço em prova do meu desprendimento de bens de fortuna, se não iria eu propriamente colher a erva, comprar os maninhos, e senhorear-me de Aveiro em poucos anos. Aqui está a notícia:
"Na vila de Aveiro, e em todas as suas vizinhanças, nasce uma erva, a que os naturais chamam erva formigueira, porque pisada tem o cheiro como de formigas pisadas; e há em tanta quantidade que podem carregar-se navios dela. Esta tal (ao meu entender) é o verdadeiro chá que vem da China e do Japão; não só porque a experiência descobre nela as mesmas virtudes do chá; mas também porque mandando-se da Índia a Gonçalo de Sousa de Meneses, morador na sua quinta de Salreu, a semente do legítimo chá, ele a mandou semear com todo o cuidado, e nasceu a mesma erva de que aqui se acham revestidos os campos e os cômaros."
Não há dúvida nenhuma: o chá da Índia é a erva formigueira de Aveiro. E dizem que nós, os portugueses, não somos gente para descobrimentos! O que nós somos é uns pródigos e depreciadores dos mananciais de riqueza que a Providência nos oferece como a filhos seus dilectíssimos. Se alguma companhia entrasse em exploração daquela mina, quem sabe se, fechados os portos à erva indiática, poderíamos ainda com o nosso chá amortizar a dívida externa, e meter a Europa numa infusão de erva formigueira? Razão tinha o patriota doutor Olho de Vidro, quando em seguida à notícia, que os coevos menosprezaram, ajuntou:
"Quem quiser indagar-lhe os préstimos, com facilidade o pode fazer, se acaso não for do génio daqueles que fazem eterno capricho de preferir sempre as coisas estrangeiras às nacionais e domésticas".

Camilo Castelo Branco, O Olho de Vidro (1866)

terça-feira, 26 de julho de 2011

Pobre Calisto

Se ele soubesse que hoje já nem para os comediantes há subsídios...

"- Sr. presidente. Em Grécia e Roma as festas anuais eram solenizadas com espectáculos. Os cidadãos timbravam em se despenderem aporfiadamente para o maior realce das representações teatrais. Na Grécia, o arconte epónimo, a cargo de quem o Estado delegava as despesas das representações, esmava o dispêndio de cada uma em dois talentos (...). Este dispêndio faziam-no espontâneamente os ricos; e, se era o tesouro nacional que adiantava as despesas, a concorrência convidava pelo preço diminutíssimo do theorikon ou entrada, que correspondia ao vintém da nossa moeda. E de Péricles em diante, sr. presidente, tomou o Estado à sua conta o pagamento das entradas dos pobres. Entre os Romanos, eram os poderosos, como Lépido e Pompeu, e, ao diante, os imperadores, que sustentavam do seu bolsinho as representações teatrais. (...) Eu tenho o desgosto de ter nascido num país em que o mestre-escola ganha cento e noventa réis por dia, e as cantarinas, segundo me dizem, ganham trinta e quarenta moedas por noite. Eu sou de um país, sr. presidente, em que se pede ao povo o subsídio literário para pagar com ele as tramóias da Lucrécia Bórgia. Eu sou de um país pobríssimo em que a veia da Nação exangue sofre cada ano a sangria de algumas dúzias de contos para sustentar comediantes, farsistas, funâmbulos e dançarinas impudicas! Sr. presidente, V. Exª sorriu-se, vejo que a Câmara toda está sorrindo, e eu ouso dizer a V. Exª e aos meus colegas, como o poeta mantuano: sunt lacrimae rerum."

Camilo Castelo Branco, A queda dum anjo, Livros Unibolso, Lisboa.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Do pegar no apêndice para bem pronunciar o português

A Senhora Rattazzi, do Camilo (1880), é das cousas mais divertidas que tenho lido nos últimos tempos. É uma recensão/reacção a um Portugal à vol d'oiseau da dita cuja senhora, que Camilo arrasa de forma verrinosa, com passagens a roçar o brejeiro, denunciando as incorrecções e imprecisões da obra. 

Fica aqui um cheirinho, respeitando a orthographia original. Os itálicos são também do original, e, caso escape a alguém mais distraído, servem para o autor sublinhar as asneiras da Sr.ª Rattazzi ("a princeza" do primeiro excerto).

Reflexionando conspicuamente sobre a nossa deploravel instrucção publica, sahe-lhe de molde a contar que nós, os portuguezes, a um brazileiro que passa chamamos macaca. Que o brazileiro vai passando, e nós dizemos: É una macaca. Não é tanto assim; não se lhe desfigura o sexo. Se a princeza, ao passar, ouviu dizer: é una macaca, isso não era com o brazileiro.
(p. 30)


Na carta XXIII, esta mirifica epistolographa mette a riso a nossa pronuncia nacional, os sons nasaes, as desinencias oês e em , que nos ficaram da lingua galoga, e se pronunciam ouenche, anhon, «com accento violento de nariz, que só bem póde imitar-se pegando n'este appendice com a mão toda para bem proferir o portugaison». Sim, elle é preciso pegar no appendice para bem pronunciar o portugaison.
(pp. 35-36)





A edição consultada é um fac-simile, da Calçada das Letras, e não vai além disso mesmo, de uma reprodução fotográfica do original. Fazia falta uma boa introdução. É que se o leitor de Camilo, em 1880, sabia com toda a segurança quem era a Sr.ª Rattazzi e a obra em questão, o leitor do século XXI não sabe.