sábado, 31 de julho de 2010
Uma diferença entre as duas partes
De todos estes factos nasceu a história: o rapto de Helena e a guerra de Tróia e, ainda antes, a expedição da nau Argos e o rapto de Medeia, elos da mesma cadeia. Um apelo oscilava entre a Ásia e a Europa: a cada oscilação, uma mulher e, com ela, um bando de predadores, passavam de uma margem para a outra. Mas Hérodoto observou que havia, porém, uma diferença entre as duas partes: «Ora, o rapto de mulheres é considerado obra de malfeitores, mas preocupar-se com mulheres raptadas é obra de insensatos, porque é evidente que, se elas não tivessem querido, não teriam sido raptadas». Os Gregos não se comportaram como sábios: «Por causa de uma mulher de Esparta, preparam uma grande expedição e, quando chegaram à Ásia, aniquilaram o poder de Príamo». Desde então, nunca mais cessou a guerra entre a Ásia e a Europa.
Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990
Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990
sexta-feira, 30 de julho de 2010
Um Conto Feliz da Infância: Endrémia e Liasão
Endrémia e Liasão
(da mitologia grega)
Endrémia era filha de Poligaminos, deus da Ensilagem, e de Reba, deusa do Alcaçuz. Era o rebento de uma união infeliz, como mais tarde se soube, porque, quando era ainda pequenina, o pai bateu na mãe com uma bigorna e transformou-se em lírio, para evitar a vingança de Júpiter. Júpiter, porém, era demasiado astuto para Poligaminos e derrubou-o com uma faísca do tamanho do prédio do Banco dos Retalhistas, coisa que o fez desequilibrar-se por completo e o levou a cair no abismo e a esbarrar na morte.
Enquanto isso, a pequenina Endrémia viu-se sozinha no mundo, sem ninguém que lhe acudisse, excepto Endrócina, deusa da Alface, e seu filho Bilás, deus da Goma Arábica. Mas, como Poligaminos (seu pai; já se esqueceram, seus palermas?) havia transformado Endrémia em cogumelo antes de ele próprio se transformar em lírio, nenhum dos seus protectores sabia quem ela era, por isso, de nada lhe valia tal protecção.
Júpiter, todavia, não esquecera tão depressa a filha da sua favorita (Reba), e apareceu-lhe uma noite, em forma de colector de cogumelos, perguntando-lhe se ela gostaria de sair daquela árvore (ela era um cogumelo dos que crescem nas árvores) e entrar para dentro do cabaz que trazia na mão. Endrémia, ignorando que era Júpiter quem tal lhe perguntava, pouco disse. E então Júpiter, soltando a sua ira poderosa, derrubou a árvore toda, com uma faísca que trouxera para o caso de Endrémia não ouvir a voz da razão.
É por isso que não é prudente comermos os cogumelos que crescem nas árvores ou recusarmos entrar para dentro do cabaz de Júpiter.
Robert Benchley, «Contos Felizes da Infância», Wit: ensaios humorísticos, Tinta da China edições, Lisboa, 2010 (trad. de Júlio Henriques).
Um fragmento de 4
O que acontece entre nós
acontece há séculos
sabêmo-lo da literatura.
Adrienne Rich, Uma Paciência Selvagem, Maria Ramalho e Monica Andrade (trad.), Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 87.
acontece há séculos
sabêmo-lo da literatura.
Adrienne Rich, Uma Paciência Selvagem, Maria Ramalho e Monica Andrade (trad.), Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 87.
quinta-feira, 29 de julho de 2010
Nada
nada
se aguenta no reino da pura necessidade
senão o que as minhas mãos conseguem segurar.
Adrienne Rich, Uma Paciência Selvagem, Maria Ramalho e Monica Andrade (trad.), Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 149.
se aguenta no reino da pura necessidade
senão o que as minhas mãos conseguem segurar.
Adrienne Rich, Uma Paciência Selvagem, Maria Ramalho e Monica Andrade (trad.), Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 149.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
Às vezes um verso
Que espécie de animal transformaria a sua vida em palavras?
Adrienne Rich, Uma Paciência Selvagem, Maria Ramalho e Monica Andrade (trad.), Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 129.
Adrienne Rich, Uma Paciência Selvagem, Maria Ramalho e Monica Andrade (trad.), Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 129.
11
Sob os cantos de baço e enegrecido metal
da pequena máquina de café
lampeja um jacto azul
um cheiro matiza a sala
- um farejo ou presciência de
uma vida que na verdade pudesse ser
vivida um grão de esperança
uma trinca de chocolate amargo no metro
para acordar os sentidos
sem eles somos presas
da vontade falhada
sua ciência de desespero
da pequena máquina de café
lampeja um jacto azul
um cheiro matiza a sala
- um farejo ou presciência de
uma vida que na verdade pudesse ser
vivida um grão de esperança
uma trinca de chocolate amargo no metro
para acordar os sentidos
sem eles somos presas
da vontade falhada
sua ciência de desespero
Adrienne Rich, Uma Paciência Selvagem, Maria Ramalho e Monica Andrade (trad.), Livros Cotovia, Lisboa, 2008
terça-feira, 27 de julho de 2010
Como se fôsssemos cartas
Estás a ver? A vida baralha-nos como se fôssemos cartas, e é apenas por acaso, e mesmo então, não por muito tempo, que acertamos no nosso lugar!
Máximo Gorki, Seres que Outrora Foram Humanos, Monica Cozacenco (trad.), Francisco Silva Pereira (editing), Arbor Litterae, 2010
Máximo Gorki, Seres que Outrora Foram Humanos, Monica Cozacenco (trad.), Francisco Silva Pereira (editing), Arbor Litterae, 2010
Presunção
«Dizem que os Cursistas de Artes no primeyro anno são Doutores, no segundo Licenciados, no terceyro Bachareys, e despoys são nada, porque quãto mais vão estudando, tanto melhor sabem que não sabem: e quanto era menos a luz, era mais a presumpção.»
Pe. Manuel Bernardes (1644-1710)
Luz e Calor
in A. do Prado Coelho (ed.), Clássicos Portugueses. Trechos Escolhidos. Manuel Bernardes I
Clássica Editora, Lisboa 1942
segunda-feira, 26 de julho de 2010
Máximo Gorki, "Seres que Outrora foram Humanos"
Gostei muito deste Seres que Outrora foram Humanos de Gorki, acho que o lugar comum que se deve ter à mão para dizer acerca dele é que é um livro sobre as pequenas formas, quase inofensivas, de crueldade que restam às pessoas quando elas são reduzidas à miséria e até na miséria lhes tentam retirar o pouco que lhes resta. E é verdade, é um livro sobretudo sobre isto. Mas é também sobre como as pessoas na miséria mais extrema conseguem preservar um certo grau de humanidade, como é possível que laços sejam estabelecidos, que as pessoas permaneçam ligadas entre si por alguma coisa. E depois há o tom irónico de Gorki.
Contudo, o livro deste verão até agora é O Jardim dos Finzi-Contini e, de resto, o filme também (vá, dividido com o Rocco i suoi Fratelli, que é sempre o Rocco, mesmo quando visto uma segunda vez, e com Inception).
Contudo, o livro deste verão até agora é O Jardim dos Finzi-Contini e, de resto, o filme também (vá, dividido com o Rocco i suoi Fratelli, que é sempre o Rocco, mesmo quando visto uma segunda vez, e com Inception).
Esta contradição
Esta contradição, como muitas outras contradições, deveria primeiro ser registada como um mero facto, muito antes de tentarmos explicar por que motivo as coisas se contradizem; devemos, se somos honestos e bons críticos, registar essa realidade preliminar: de que as coisas se contradizem.
Máximo Gorki, Seres que Outrora Foram Humanos, Monica Cozacenco (trad.), Francisco Silva Pereira (editing), Arbor Litterae, 2010
Máximo Gorki, Seres que Outrora Foram Humanos, Monica Cozacenco (trad.), Francisco Silva Pereira (editing), Arbor Litterae, 2010
Sala da frente
Do sofá ainda tão gasto
entre as duas portas,
agora parecem mais:
todos no chão da sala,
volumes em resma,
tamanhos variáveis,
desalinhados,
no lugar dos tacos regulares,
escondem-nos.
Os livros todos, o chão da sala,
pequenas torres impressas,
legos impossíveis:
os que foram
desconhecidos nesta morada,
as dádivas secretas,
o sítio das palavras que não regressaram.
No canto superior direito,
o índice dos teus dedos,
a tua sombra em tantas páginas.
Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, &etc., 2010
entre as duas portas,
agora parecem mais:
todos no chão da sala,
volumes em resma,
tamanhos variáveis,
desalinhados,
no lugar dos tacos regulares,
escondem-nos.
Os livros todos, o chão da sala,
pequenas torres impressas,
legos impossíveis:
os que foram
desconhecidos nesta morada,
as dádivas secretas,
o sítio das palavras que não regressaram.
No canto superior direito,
o índice dos teus dedos,
a tua sombra em tantas páginas.
Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, &etc., 2010
domingo, 25 de julho de 2010
Corredor
Se volto cedo
talvez chegue a tempo
do silêncio.
Ou ainda o som dos passos
livres pela rua que desce,
quase cai, livres,
para continuar plana depois.
Antes,
o som metálico das chaves,
as outras e a que abre.
No trinco, e mesmo assim
o silêncio.
Ou ainda a campainha da loja em frente,
quando o vento lhe agita as franjas coloridas,
esse vento ou um mais alto,
na árvore, cortina da sala.
A porta aberta, passagem
demasiado estreita,
metade da casa
é dos outros.
Do meu lado, no fim
do caminho, só o rádio partido
e a luz dos primeiros dias.
Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, &etc., 2010
talvez chegue a tempo
do silêncio.
Ou ainda o som dos passos
livres pela rua que desce,
quase cai, livres,
para continuar plana depois.
Antes,
o som metálico das chaves,
as outras e a que abre.
No trinco, e mesmo assim
o silêncio.
Ou ainda a campainha da loja em frente,
quando o vento lhe agita as franjas coloridas,
esse vento ou um mais alto,
na árvore, cortina da sala.
A porta aberta, passagem
demasiado estreita,
metade da casa
é dos outros.
Do meu lado, no fim
do caminho, só o rádio partido
e a luz dos primeiros dias.
Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, &etc., 2010
sábado, 24 de julho de 2010
O gato
O grande problema do gato é como dar futuro a esses seis gatinhos que vieram ao mundo de uma só vez.
*
A civilização terá atingido um alto grau quando os gatos estiverem a ler revistas infantis nos portais.
*
O leão daria metade da sua vida por um pente.
*
O gato rubrica todos os seus pensamentos com o rabo.
Ramón Gómez de La Serna, Greguerías: Uma Selecção, Jorge Silva Melo (trad.), Assírio & Alvim, 1998.
*
A civilização terá atingido um alto grau quando os gatos estiverem a ler revistas infantis nos portais.
*
O leão daria metade da sua vida por um pente.
*
O gato rubrica todos os seus pensamentos com o rabo.
Ramón Gómez de La Serna, Greguerías: Uma Selecção, Jorge Silva Melo (trad.), Assírio & Alvim, 1998.
sexta-feira, 23 de julho de 2010
Direcções opostas
Olharam-se de janela a janela em dois comboios que iam em direcções opostas, mas tal é a força do amor que logo os dois comboios se puseram a andar para o mesmo lado.
Ramón Gómez de La Serna, Greguerías: Uma Selecção, Jorge Silva Melo (trad.), Assírio & Alvim, 1998
Ramón Gómez de La Serna, Greguerías: Uma Selecção, Jorge Silva Melo (trad.), Assírio & Alvim, 1998
quinta-feira, 22 de julho de 2010
31
Assim, um dia, viajei para norte
por ímpares estradas, sob o míssil doirado
diversamente chamado sol ou lua,
saber da tua sorte; vim dar
a esta superfície sem desenho
onde a terra e os gelos se misturam
e o silêncio é perfeito e permanente.
Fizeste, do teu rosto, um muro alto,
são dentes os teus dedos, fino seixo
o coração pequeno e ocupado,
e transformaste a língua num bocado
de areia fria misturado ao lixo.
E ainda assim persisto, porque sei
que por amor nos basta o que te tenho.
por ímpares estradas, sob o míssil doirado
diversamente chamado sol ou lua,
saber da tua sorte; vim dar
a esta superfície sem desenho
onde a terra e os gelos se misturam
e o silêncio é perfeito e permanente.
Fizeste, do teu rosto, um muro alto,
são dentes os teus dedos, fino seixo
o coração pequeno e ocupado,
e transformaste a língua num bocado
de areia fria misturado ao lixo.
E ainda assim persisto, porque sei
que por amor nos basta o que te tenho.
António Franco Alexandre, Duende, Assírio & Alvim, 2002.
Perceber verdadeiramente
Na vida, para se perceber, mas perceber verdadeiramente, como são as coisas deste mundo, deve-se morrer pelo menos uma vez. E então, uma vez que é essa a lei, o melhor é morrer quando ainda se é novo, quando se tem ainda tempo, diante de si, para se aguentar no balanço e ressuscitar...
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, Egito Gonçalves (trad.), Quetzal
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, Egito Gonçalves (trad.), Quetzal
quarta-feira, 21 de julho de 2010
19
Já nasceste a saber o que eu não sei,
o que o lume na água mais procura;
se me dás de beber vou ter a sede
incessante da fonte mais impura.
Cada noite te peço que imagines
uma outra fina, elementar tortura,
como essa, de nunca mais arder
o corpo que no corpo se insinua.
Por cada gesto teu leio almanaques
de vãs filosofias, para ter
a réplica prevista à sua altura;
por cada lábio, sou mais sábio que
toda a corte celeste talmudista;
e ainda não sei o que ao nascer sabias.
António Franco Alexandre, Duende, Assírio & Alvim, 2002.
o que o lume na água mais procura;
se me dás de beber vou ter a sede
incessante da fonte mais impura.
Cada noite te peço que imagines
uma outra fina, elementar tortura,
como essa, de nunca mais arder
o corpo que no corpo se insinua.
Por cada gesto teu leio almanaques
de vãs filosofias, para ter
a réplica prevista à sua altura;
por cada lábio, sou mais sábio que
toda a corte celeste talmudista;
e ainda não sei o que ao nascer sabias.
António Franco Alexandre, Duende, Assírio & Alvim, 2002.
terça-feira, 20 de julho de 2010
36
Talvez por divertimento,
me esmagues a cabeça contra um muro,
ou antes, por ser grande a minha ofensa,
com um pé nu me quebres a garganta.
É bem melhor assim, do que o rasgão
irregular e rombo das navalhas,
ou o silvo cortante das palavras
vibrando no ar frio como uma foice;
dá para ver a fina tatuagem
de uma cobra em redor do tornozelo,
ou admirar, em última mensagem,
a distinção da voz que me anoitece.
Antes assim que de cortês figura
a meio me cortares por desmazelo.
António Franco Alexandre, Duende, Assírio & Alvim, 2002.
me esmagues a cabeça contra um muro,
ou antes, por ser grande a minha ofensa,
com um pé nu me quebres a garganta.
É bem melhor assim, do que o rasgão
irregular e rombo das navalhas,
ou o silvo cortante das palavras
vibrando no ar frio como uma foice;
dá para ver a fina tatuagem
de uma cobra em redor do tornozelo,
ou admirar, em última mensagem,
a distinção da voz que me anoitece.
Antes assim que de cortês figura
a meio me cortares por desmazelo.
António Franco Alexandre, Duende, Assírio & Alvim, 2002.
segunda-feira, 19 de julho de 2010
"The Ghost Writer" de Roman Polanski, 2010
Desiludiu-me um bocado este "The Ghost Writer". Não é preciso ser-se muito inteligente para, a meio do filme, perceber como vai acabar. A única coisa que frustra um pouco a nossa impressão de certeza em relação ao final é a expectativa que temos de que o enredo sofra um desvio, que não seja arrastado para o final que nos parece ir ter, mas não. É mesmo o que parece. E isso até pode não ser mau, mas ficamos de facto frustrados pela expectativa de que entretanto aconteça outra coisa qualquer.
À parte isso, são cento e vinte e oito minutos de entretenimento competente e salva-se porque a fotografia é mesmo muito boa. Juro-vos que há imagens que parecem poemas. E não estou só a falar dos grandes planos da ilha ou das janelas rasgadas da casa. Mesmo os planos urbanos. E o Digital, ou lá como lhe chamam, é de facto impressionante. Mas depois, argumento... bah...
Polanski podia querer fazer uma sequela para este filme de tão a meio que me parece ter ficado...
À parte isso, são cento e vinte e oito minutos de entretenimento competente e salva-se porque a fotografia é mesmo muito boa. Juro-vos que há imagens que parecem poemas. E não estou só a falar dos grandes planos da ilha ou das janelas rasgadas da casa. Mesmo os planos urbanos. E o Digital, ou lá como lhe chamam, é de facto impressionante. Mas depois, argumento... bah...
Polanski podia querer fazer uma sequela para este filme de tão a meio que me parece ter ficado...
Canto vigésimo segundo
Vinte dias atrás meti uma rosa no copo
perto da janela em cima da mesinha.
Quando reparei que as folhas
perdiam o vigor
sentei-me diante do copo
para ver a rosa morrer.
Esperei um dia e uma noite.
A primeira pétala desprendeu-se às nove da manhã
e deixei que caísse em minhas mãos.
Nunca tinha estado ao leito de morte de um moribundo
nem quando minha mãe morreu,
pois então estava de pé, ao longe, no fundo da rua.
Tonino Guerra, O Mel, Mário Rui de Oliveira (trad.), Assírio & Alvim, 2003
perto da janela em cima da mesinha.
Quando reparei que as folhas
perdiam o vigor
sentei-me diante do copo
para ver a rosa morrer.
Esperei um dia e uma noite.
A primeira pétala desprendeu-se às nove da manhã
e deixei que caísse em minhas mãos.
Nunca tinha estado ao leito de morte de um moribundo
nem quando minha mãe morreu,
pois então estava de pé, ao longe, no fundo da rua.
Tonino Guerra, O Mel, Mário Rui de Oliveira (trad.), Assírio & Alvim, 2003
domingo, 18 de julho de 2010
O poema português com melhor início (na primeira década do séc. xxi)
Já a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
António Franco Alexandre, in «30», Duende, Assírio & Alvim, 2002
deixei de ser mortal a noite inteira;
António Franco Alexandre, in «30», Duende, Assírio & Alvim, 2002
Canto vigésimo nono
Uma voz despertou-nos.
Mais que a voz normal era um grito,
um nome, talvez o meu. Abrimos a janela
e ninguém, nem nos outros quartos,
no sótão, debaixo das camas, a meio da estrada.
Teremos sonhado? Mas como é possível
duas pessoas sonharem a mesma coisa?
Era uma voz na noite.
Seria de homem ou de mulher?
Tonino Guerra, O Mel, Mário Rui de Oliveira (trad.), Assírio & Alvim, 2003
Mais que a voz normal era um grito,
um nome, talvez o meu. Abrimos a janela
e ninguém, nem nos outros quartos,
no sótão, debaixo das camas, a meio da estrada.
Teremos sonhado? Mas como é possível
duas pessoas sonharem a mesma coisa?
Era uma voz na noite.
Seria de homem ou de mulher?
Tonino Guerra, O Mel, Mário Rui de Oliveira (trad.), Assírio & Alvim, 2003
sábado, 17 de julho de 2010
Canto décimo nono
Parei ao sol uma manhã de verão
e vi as estradas
cheias de pessoas, como outrora,
para o mercado da seda.
Os casulos nos sacos
empolavam os aventais das mulheres.
Mas de repente desapareceu tudo
e eu era um prego no meio da praça
fazendo uma sombra quente.
Tonino Guerra, O Mel, Mário Rui de Oliveira (trad.), Assírio & Alvim, 2003
e vi as estradas
cheias de pessoas, como outrora,
para o mercado da seda.
Os casulos nos sacos
empolavam os aventais das mulheres.
Mas de repente desapareceu tudo
e eu era um prego no meio da praça
fazendo uma sombra quente.
Tonino Guerra, O Mel, Mário Rui de Oliveira (trad.), Assírio & Alvim, 2003
"Medea" de Lars von Trier, 1988
Estou em crer que nesta Medeia tudo foi bem feito: a começar pelas cores em que o filme é realizado e a terminar no desenlace, na morte dos filhos, que, estou em crer, é totalmente mérito de Lars von Trier e não de Dreyer. A Medeia de Pasolini é um bom filme, mas este é melhor.
sexta-feira, 16 de julho de 2010
Canto oito
Este ano as folhas secas ficaram presas aos ramos
porque não sopra fio de vento
e as árvores parecem «fogueiras» em flamas.
Lá em baixo em Montebello, nos rasos do Marecchia,
existe um convento abandonado há cem anos
com um claustro entupido de nogueiras.
Eu e meu irmão passámos por um buraco
para caminhar debaixo das plantas que tinham
suspensa sobre os ramos uma nuvem vermelha.
Quando soamos os sinos
o ar agitado do repique abateu as folhas
e de súbito todas as árvores se despiram.
Tonino Guerra, O Mel, Mário Rui de Oliveira (trad.), Assírio & Alvim, 2003
porque não sopra fio de vento
e as árvores parecem «fogueiras» em flamas.
Lá em baixo em Montebello, nos rasos do Marecchia,
existe um convento abandonado há cem anos
com um claustro entupido de nogueiras.
Eu e meu irmão passámos por um buraco
para caminhar debaixo das plantas que tinham
suspensa sobre os ramos uma nuvem vermelha.
Quando soamos os sinos
o ar agitado do repique abateu as folhas
e de súbito todas as árvores se despiram.
Tonino Guerra, O Mel, Mário Rui de Oliveira (trad.), Assírio & Alvim, 2003
Ferrara
E, no fundo do campo, a leste, apenas a quarenta quilómetros de distância, o mar, com praias desertas, orladas de magníficas florestas de carvalhos e pinheiros: à parte isso a própria cidade, se se lhe entrava bem dentro, se se tentava conhecê-la como ele tinha decidido fazer, observando-a de perto, sem ideias preconcebidas, encerrava em si, como tantas outras, tais tesouros de rectidão, de inteligência e de bondade que só cegos e surdos, ou então gente de coração árido, poderiam ignorar ou desvalorizar.
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, Egito Gonçalves (trad.), Quetzal
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, Egito Gonçalves (trad.), Quetzal
quinta-feira, 15 de julho de 2010
O que sei de Dezembro
No Nordeste,
desconheço o plaino, a praia,
o vagar dos grandes rios.
De Dezembro pouco sei,
situado aqui a norte:
sei a faina da azeitona,
sei a ausência
do agreste suco das romãs,
sei a noite prematura e alongada,
as ilegíveis páginas da água,
às vezes neves.
Mas sei lugares onde há pedras
que conversam comigo.
A. M. Pires Cabral, Arado, Livros Cotovia, 2009
No Nordeste,
desconheço o plaino, a praia,
o vagar dos grandes rios.
De Dezembro pouco sei,
situado aqui a norte:
sei a faina da azeitona,
sei a ausência
do agreste suco das romãs,
sei a noite prematura e alongada,
as ilegíveis páginas da água,
às vezes neves.
Mas sei lugares onde há pedras
que conversam comigo.
A. M. Pires Cabral, Arado, Livros Cotovia, 2009
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Miguel Torga
Um clamor severo
nomeia a mais lavada rebeldia.
Os contornos da fonte declarados
sob a luz da palavra.
Um deus pressentido - Dionísio,
presidindo ao suor.
O outro lado
da semente esclarecido.
Uma tesoura da poda
podando rama e raiz.
Tudo somado:
a terra feita voz.
Sem frio, sem fadiga
ou morte alguma.
A. M. Pires Cabral, Arado, Livros Cotovia, 2009
nomeia a mais lavada rebeldia.
Os contornos da fonte declarados
sob a luz da palavra.
Um deus pressentido - Dionísio,
presidindo ao suor.
O outro lado
da semente esclarecido.
Uma tesoura da poda
podando rama e raiz.
Tudo somado:
a terra feita voz.
Sem frio, sem fadiga
ou morte alguma.
A. M. Pires Cabral, Arado, Livros Cotovia, 2009
Insónia
Estamos na insónia como diante dum
espelho estilhaçado que fragmenta cada dúvida
em mim - que, nem por serem tantas,
são a dúvida, mas apenas
esquírolas dela, simples peças soltas
dum puzzle não resolúvel
porque faltam outras peças.
Estamos na insónia como dentro duma poça
de água que não tem por onde escoar
e onde a gente, sem saber nadar,
moves os braços ao acaso, na esperança
de diferir a morte (a menos que
fosse depressa e limpa).
É assim que estamos na insónia,
enquanto o vento despenteia e faz sonora
a cabeleira da noite.
A. M. Pires Cabral, Arado, Livros Cotovia, 2009
espelho estilhaçado que fragmenta cada dúvida
em mim - que, nem por serem tantas,
são a dúvida, mas apenas
esquírolas dela, simples peças soltas
dum puzzle não resolúvel
porque faltam outras peças.
Estamos na insónia como dentro duma poça
de água que não tem por onde escoar
e onde a gente, sem saber nadar,
moves os braços ao acaso, na esperança
de diferir a morte (a menos que
fosse depressa e limpa).
É assim que estamos na insónia,
enquanto o vento despenteia e faz sonora
a cabeleira da noite.
A. M. Pires Cabral, Arado, Livros Cotovia, 2009
terça-feira, 13 de julho de 2010
Vocação
Quem saberá como e por que nasce uma vocação para a solidão?
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, Egito Gonçalves (trad.), Quetzal
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, Egito Gonçalves (trad.), Quetzal
Um verso hebraico
A Estrela d'Alva
Que esta luz não me esqueça.
Quando tu afastares a cortina
E a minha cabeça, lembrada, te
Mostrar a sua garra em terra.
Subiste. No fragor da chegada:
Kervan kiran. Kervan kiran!
Um momento disse ela. E parámos.
Ervas de judeus e pegas anil.
Gil de Carvalho, Tarantela & Viagens, Fenda, 1998
Quando tu afastares a cortina
E a minha cabeça, lembrada, te
Mostrar a sua garra em terra.
Subiste. No fragor da chegada:
Kervan kiran. Kervan kiran!
Um momento disse ela. E parámos.
Ervas de judeus e pegas anil.
Gil de Carvalho, Tarantela & Viagens, Fenda, 1998
segunda-feira, 12 de julho de 2010
Recorde
À mesa dos cafés, a carne.
Quase nua, palpita dentro
De pequenos cronómetros.
Recorda, dia e noite, que
Afinal os obstáculos perduram
Sempre no interior da chama.
Que o Eterno vacila sobre a cama
Destes animais litúrgicos, votados
Que somos - ao amor, à morte, ao abandono.
Gil de Carvalho, Tarantela & Viagens, Fenda, 1998
Quase nua, palpita dentro
De pequenos cronómetros.
Recorda, dia e noite, que
Afinal os obstáculos perduram
Sempre no interior da chama.
Que o Eterno vacila sobre a cama
Destes animais litúrgicos, votados
Que somos - ao amor, à morte, ao abandono.
Gil de Carvalho, Tarantela & Viagens, Fenda, 1998
Palavra dialectal
Assim as maçãs eram «i pum», os figos, «i figh», os damascos, «i mugnágh», os pêssegos, «i perságh». Só em dialecto se podia falar daquelas coisas. Só a palavra dialectal lhe permitia, ao citar árvores e frutos, dobrar os lábios na careta que o coração lhe sugeria e que ficava a meio caminho entre a ternura e o desinteresse.
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, Egito Gonçalves (trad.), Quetzal
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, Egito Gonçalves (trad.), Quetzal
domingo, 11 de julho de 2010
Os livros formatam as realidades
Depois de ter passado tanto tempo a ler Brecht, parece-me quase uma traição passar para qualquer outro livro de poesia. Um dos meus poemas favoritos é este. Eu leio este poema e tenho vontade de lançar a mesma exclamação, num tom entre o admirado e o histérico, que uma colega minha lançou em tempos no decurso de uma aula de Cultura Romana, quando o professor exibiu um slide com a efígie de Sula: É tããããããããããão bonito!!!
sábado, 10 de julho de 2010
Tempos difíceis
De pé à escrivaninha
Vejo pela janela de um jardim um sabugueiro
E reconheço nele coisas vermelhas e pretas
E lembro-me de repente do sabugueiro.
Da minha infância em Augsburgo.
Vários minutos fico a pensar
Muito a sério se irei ou não à mesa
Buscar os óculos para ver outra vez
As bagas pretas nos raminhos vermelhos.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
Vejo pela janela de um jardim um sabugueiro
E reconheço nele coisas vermelhas e pretas
E lembro-me de repente do sabugueiro.
Da minha infância em Augsburgo.
Vários minutos fico a pensar
Muito a sério se irei ou não à mesa
Buscar os óculos para ver outra vez
As bagas pretas nos raminhos vermelhos.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
Perda dum homem valioso
Perdeste um homem valioso.
O ter-se ido de ti, não prova
Que não seja valioso. Concorda:
Perdeste um homem valioso.
Perdeste um homem valioso.
Foi-se de ti, porque servias uma causa boa
E ele foi servir uma sem valor.
Perdeste um homem valioso.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007
O ter-se ido de ti, não prova
Que não seja valioso. Concorda:
Perdeste um homem valioso.
Perdeste um homem valioso.
Foi-se de ti, porque servias uma causa boa
E ele foi servir uma sem valor.
Perdeste um homem valioso.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007
sexta-feira, 9 de julho de 2010
Steven Pinker on the Myth of Violence
Com a devida vénia ao Chico e ao André, que me contaram deste site
Aos soldados alemães no Leste
5
Que haja mães que digam que não têm filhos.
Que haja filhos que digam que não têm pais.
Que haja colinas de terra que não dêem sinais.
6
E eu nunca mais verei
A terra donde vim
Nem os bosques bávaros, nem a montanha do Sul
Nem o mar, nem a charneca da Marca, nem o pinheiro bravo
Nem a vinha junto ao rio na Francónia.
Nem ao lusco-fusco da manhã, nem ao mei'-dia
E não quando a noite vem descendo.
Nem as cidades e a cidade onde nasci.
Não as bancas da oficina, e também não a sala
Nem a cadeira.
Tudo isto nunca mais verei.
E nenhum, que comigo veio,
Verá isto tudo uma vez mais.
E eu não e tu não
Ouviremos a voz das mulheres e das mães
Ou o vento sobre a chaminé da pátria
Ou o barulho alegre ou amargo da cidade.
9
Ante as florestas, por trás dos canhões
Nas ruas e nas casas
Debaixo dos tanques, na berma das estradas
Pelos homens, pelas mulheres, pelas crianças
No frio, na noite, na fome
Que todos seremos exterminados
Hoje ou amanhã ou no dia a seguir
Eu e tu e o general, tudo
O que veio pra aqui para devastar
O que foi erguido pela mão do homem.
10
Porque é tal canseira amanhar a terra
Porque custa tanto suor erguer uma casa
Abater as árvores desenhar a planta
Levantar os muros, cobrir o telhado.
Porque cansa tanto, porque era tão grande a esperança.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007
Que haja mães que digam que não têm filhos.
Que haja filhos que digam que não têm pais.
Que haja colinas de terra que não dêem sinais.
6
E eu nunca mais verei
A terra donde vim
Nem os bosques bávaros, nem a montanha do Sul
Nem o mar, nem a charneca da Marca, nem o pinheiro bravo
Nem a vinha junto ao rio na Francónia.
Nem ao lusco-fusco da manhã, nem ao mei'-dia
E não quando a noite vem descendo.
Nem as cidades e a cidade onde nasci.
Não as bancas da oficina, e também não a sala
Nem a cadeira.
Tudo isto nunca mais verei.
E nenhum, que comigo veio,
Verá isto tudo uma vez mais.
E eu não e tu não
Ouviremos a voz das mulheres e das mães
Ou o vento sobre a chaminé da pátria
Ou o barulho alegre ou amargo da cidade.
9
Ante as florestas, por trás dos canhões
Nas ruas e nas casas
Debaixo dos tanques, na berma das estradas
Pelos homens, pelas mulheres, pelas crianças
No frio, na noite, na fome
Que todos seremos exterminados
Hoje ou amanhã ou no dia a seguir
Eu e tu e o general, tudo
O que veio pra aqui para devastar
O que foi erguido pela mão do homem.
10
Porque é tal canseira amanhar a terra
Porque custa tanto suor erguer uma casa
Abater as árvores desenhar a planta
Levantar os muros, cobrir o telhado.
Porque cansa tanto, porque era tão grande a esperança.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007
quinta-feira, 8 de julho de 2010
A tudo o que sentes
A tudo o que sentes, dá
A menor grandeza.
Ele disse que sem ti
Não pode viver. Conta pois com que, quando o tornares a encontrar,
Ele te reconheça.
Faz-me pois o favor de não me amares de mais.
Quando fui amado pela última vez, em todo esse tempo
Não recebi a mínima amabilidade.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
A menor grandeza.
Ele disse que sem ti
Não pode viver. Conta pois com que, quando o tornares a encontrar,
Ele te reconheça.
Faz-me pois o favor de não me amares de mais.
Quando fui amado pela última vez, em todo esse tempo
Não recebi a mínima amabilidade.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
quarta-feira, 7 de julho de 2010
Hermes (ou como de uma analogia «fazer» uma personagem)
Tinha tudo debaixo de olho, como um jovem Hermes de olhos azuis e astutos. E os conhecimentos que tinha eram, realmente, admiráveis. Era admirável o que sabia de vacas de Jersey, de fabrico de queijo, de como cavar fossos e levantar vedações, de flores e jardinagem, de navios e navegação. Era uma fonte de sabedoria sobre tudo, e comunicava ao pessoal estes conhecimentos de uma forma muito estranha, semi-irónica e semi-solene, como se, realmente, pertencesse ao mundo superior e semi-real dos deuses.
D. H. Lawrence, O Amor no Feno e Outros Contos, Maria Teresa Guerreiro (trad.), Assírio & Alvim, 1988
D. H. Lawrence, O Amor no Feno e Outros Contos, Maria Teresa Guerreiro (trad.), Assírio & Alvim, 1988
Ardens sed Virens
Belo o que no fogo belo
Se não faz em cinza ardida!
Irmã, olha, assim não me és querida,
Ardente e não consumida.
Se não faz em cinza ardida!
Irmã, olha, assim não me és querida,
Ardente e não consumida.
Vi finos arrefecer
Fogosos vi na descida.
Irmã, posso-te reter
Ardente e não consumida.
Ai, nunca houve pra ti montada
Pra fugir da batalha perdida.
E vi-te combater acautelada
Ardente e não consumida.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
terça-feira, 6 de julho de 2010
Estou mesmo contente com isto
Entre outras coisas porque, quando li O Vermelho e o Negro, na minha edição o herói chamava-se Julião Sorel.
Muitas coisas dissolvidas no silêncio e negrura
Parou entre as medas, mas não ouvia mais do que o pingar da água, as chicotadas ligeiras da chuva. Tudo estava perdido na escuridão. Imaginou que a morte haveria de ser assim, muitas coisas dissolvidas no silêncio e negrura, apagadas, mas em existência. Na densa negrura, sentiu-se quase extinto. Receava não encontrar as coisas como as deixara. Quase num frenesim, aos tropeços, aos apalpões, regressou e só parou quando tocou na chapa fria. Ia à procura de um raio de luz.
D. H. Lawrence, O Amor no Feno e Outros Contos, Maria Teresa Guerreiro (trad.), Assírio & Alvim, 1988
William Faulkner
New Albany, 25 de Setembro de 1897 - Byhalia, 6 de Julho de 1962: entre uma data e outra escreveu um dos livros que mais amo.
Não era mais conspícuo que os montes de flores
Lavou-se da cabeça aos pés, de pé no canto fresco e esquecido do campo, onde ninguém o veria nem de dia, de modo que, agora, no tom cinzento do luar, não era mais conspícuo que os montes de flores. A noite parecia-lhe nova e diferente: não se lembrava de alguma vez ter visto o brilho cinzento lustroso, nem de ter reparado em como as luzes pareciam vitais, como gente viva habitando os espaços de prata.
D. H. Lawrence, O Amor no Feno e Outros Contos, Maria Teresa Guerreiro (trad.), Assírio & Alvim, 1988
D. H. Lawrence, O Amor no Feno e Outros Contos, Maria Teresa Guerreiro (trad.), Assírio & Alvim, 1988
segunda-feira, 5 de julho de 2010
«O Jardim dos Finzi-Contini» (2)
[Giorgio] I just wanted to see you again. That's all. I love you. It's never happened to me before. And I know it never will again.
[Micol] But I don't love you! Lovers have a drive to overwhelm one another. But the way we are, alike as two drops of water... how could we ever overwhelm or tear each other to pieces?
domingo, 4 de julho de 2010
«O Jardim dos Finzi-Contini» de Vittorio De Sica, 1970
O mais terrível de tudo é o peso da sorte que estas duas personagens predestinam para si próprias. O mais terrível a seguir a isso é a forma como condicionam os seus actos a partir dessa ideia. Porque agem de acordo com uma premissa inexistente, são excluídos de qualquer lógica, ou só têm aquela que lhes é concedida pela sua interpretação das circunstâncias, que por sua vez é condicionada pela imagem que de si guardaram para o futuro.
Tudo neste filme, Il Giardino dei Finzi-Contini, é cruel. E, contudo, é tão belo.
Tudo neste filme, Il Giardino dei Finzi-Contini, é cruel. E, contudo, é tão belo.
sábado, 3 de julho de 2010
Os jovens estão debruçados sobre os livros.
Os jovens estão debruçados sobre os livros.
Pra que é que aprendem?
Nenhum livro ensina
Como, dependurado do arame farpado,
se consegue água.
*
As raparigas à sombra das árvores da aldeia
Escolhem os namorados.
A morte escolhe também.
Talvez
nem sequer as árvores fiquem com vida.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
Pra que é que aprendem?
Nenhum livro ensina
Como, dependurado do arame farpado,
se consegue água.
*
As raparigas à sombra das árvores da aldeia
Escolhem os namorados.
A morte escolhe também.
Talvez
nem sequer as árvores fiquem com vida.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
Subscrever:
Mensagens (Atom)