quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Com esta grata indignação que devo aos homens

Enquanto esperávamos para entregar os ensaios naquele dia, ordenados em fila, cada um com o seu trabalho enfiado dentro de um envelope branco, tudo gente mais velha que eu naquela turma, e tudo com um ar tão circunspecto, eu não estava a pensar no que tinha acabado de escrever, nem no romance sobre que versavam as oito páginas de todos e cada um (não era o mesmo para todos o romance), saí da fila, foi sentar-me no bar, vazio àquela hora da manhã, lembrei-me de um parêntesis n' A Invenção de Morel em que a personagem diz «(com esta grata indignação que devo aos homens)», esta coisa quase paradoxal, como dizer a uma pessoa que a detestamos cordialmente, olha a minha «grata indignação», mas depois percebi, que há um espaço entre «grata» e «indignação» onde está o meu orgulho, essa parcela de uma coisa invisível que é intocável e de pedra, irredutível, mas que é alimentada a partir de um assíduo convívio com as coisas que detestamos ou podemos detestar nos outros, sem que isso afecte a nossa cordialidade (penso que isto devia ser a «peçonha» de que falava Garrett, embora na verdade não o seja), ser «grata» não significa que seja monótona. É «grata» porque nela nos definimos, definimos traços fundamentais do nosso carácter, de o ter. Assim Ezra Pound quando mais ou menos escreveu (penso que num poema chamado "Praise of Ysolt", deste mesmo livro que por estes dias ando a ler), "In vain have I striven,/ to teach my heart to bow", porque nessa altura pensei que ele podia ter dito "In vain have I tried/ to teach...", mas não, o verbo é "striven", é uma coisa de arco e seta, nele se contém (imagino) o esforço dos sucessivos pretendentes para curvar e armar o arco de Ulisses dentro da sua própria casa, onde ele bebeu até à última gota do amargo cálice (a expressão não é minha, é de um homem chamado Pietro Citati) da vergonha, dentro da sua própria casa, por ele construída, em nenhum outro sítio, não em vão curvou Ulisses o arco do seu coração, pensava eu a essa hora da manhã, não sei se a indignação dele era grata, ao contrário dos outros, ele estava ali para a sua vingança (tão excessiva que há filólogos que dizem que é apócrifa, que há versões do mito que contam de como o deus Pan nasceu dos amores de Penélope e de todos os pretendentes), portanto a sua indignação devia ser amarga, plena de revolta, como Ezra Pound, em vão se debatendo para curvar o seu coração, o que sucede no entanto, é que as duas indignações são possíveis. Tão vastas como as teias dos nossos pensamentos, em que, mais frequentemente do que aquilo que gostaríamos, enredamos os dedos, truncamos os fios contínuos com que estávamos a tecer essa tapeçaria, onde acabamos afundados um pouco.

6 comentários:

  1. Tatiana,
    recebe minha "grata admiração".
    Teu texto dói docemente, é belo!
    Edito a revista eletrônica imaginário poético e gostaria da tua permissão para publicar este teu texto com link para este teu site.
    Grande abraço,
    dana paulinelli
    _______________
    www.imaginariopoetico.com.br

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  2. Cara Dana,

    muito obrigada pelas suas palavras, ainda que o texto não seja tudo isso.

    Saudações cordiais,

    Tatiana

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  3. Pois já está publicadíssimo, Tatiana.
    http://www.imaginariopoetico.com.br/2011/01/tatiana-faia-com-esta-grata-indignacao.html

    Obrigada pelo belo ensaio e um grande abraço!
    dana

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