Em matéria de impureza, de realismo invasor, a linguagem é totalmente vulnerável. Não há imaculado possível. Vimos que as experiências do neologismo sistemático, da escrita automática, da dissolução surrealista da sintaxe, acabam por desembocar na trivialidade. Vimos também que nem o escritor mais inventivo e inovador pode escapar à localidade e à temporalidade da linguagem que herda ou adquire, ao seu estado nativo e à sua prioridade histórica lexical e gramatical. A linguagem está incomensuravelmente saturada. As palavras, as formas gramaticais, as frases, as convenções retóricas estão saturadas, até ao nível do fonema quase, pelo uso, pelos precedentes e pelas conotações culturais e sociais. Cada som da fala desencadeia harmonias concêntricas e formalmente ilimitadas. Colide com cada uma das partículas semânticas suas vizinhas numa câmara de eco, como que à maneira dos sinos de Veneza, por vezes desacertados, dessincronizados, fora do ritmo, que inundam o ar com as suas vozes ao mesmo tempo concordantes e contrárias. Um mestre da linguagem pode imprimir a esse meio a energia de um salto quântico. Mas a nova órbita pululará, por seu turno, de associações, que não foram escolhidas. O facto de "o mundo estar em excesso para o poeta" não resulta tanto das tentações mundanas, do investimento de si no transitório e no oportuno, mas é antes um corolário absolutamente inescapável da própria linguagem que veicula consigo, queiramo-o ou não, a carga do mundo. Na linguagem, as matemáticas puras só poderiam ser silêncio.
George Steiner, Gramáticas da Criação, Relógio d'Água, Lisboa, 2002 (trad. de Miguel Serras Pereira)
George Steiner, Gramáticas da Criação, Relógio d'Água, Lisboa, 2002 (trad. de Miguel Serras Pereira)
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