terça-feira, 5 de janeiro de 2010

[Citação]

Em matéria de impureza, de realismo invasor, a linguagem é totalmente vulnerável. Não há imaculado possível. Vimos que as experiências do neologismo sistemático, da escrita automática, da dissolução surrealista da sintaxe, acabam por desembocar na trivialidade. Vimos também que nem o escritor mais inventivo e inovador pode escapar à localidade e à temporalidade da linguagem que herda ou adquire, ao seu estado nativo e à sua prioridade histórica lexical e gramatical. A linguagem está incomensuravelmente saturada. As palavras, as formas gramaticais, as frases, as convenções retóricas estão saturadas, até ao nível do fonema quase, pelo uso, pelos precedentes e pelas conotações culturais e sociais. Cada som da fala desencadeia harmonias concêntricas e formalmente ilimitadas. Colide com cada uma das partículas semânticas suas vizinhas numa câmara de eco, como que à maneira dos sinos de Veneza, por vezes desacertados, dessincronizados, fora do ritmo, que inundam o ar com as suas vozes ao mesmo tempo concordantes e contrárias. Um mestre da linguagem pode imprimir a esse meio a energia de um salto quântico. Mas a nova órbita pululará, por seu turno, de associações, que não foram escolhidas. O facto de "o mundo estar em excesso para o poeta" não resulta tanto das tentações mundanas, do investimento de si no transitório e no oportuno, mas é antes um corolário absolutamente inescapável da própria linguagem que veicula consigo, queiramo-o ou não, a carga do mundo. Na linguagem, as matemáticas puras só poderiam ser silêncio.

George Steiner, Gramáticas da Criação, Relógio d'Água, Lisboa, 2002 (trad. de Miguel Serras Pereira)

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