segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O Cardeal "Tutti Fruti"

O Cardeal Patriarca de Lisboa diz estes disparates. Digo "disparates" não porque discorde do senhor, simplesmente porque não há quase nada para discordar, e com o pouco que há, sim senhor, discordo. Pelo estilo o Cardeal Patriarca enraiza-se na má tradição católica dogmática (com profundas relações históricas com o jargão político e a tagarelice académica): as suas palavras são inatacáveis pois não significam nada, não há nada para atacar.

“Ajudar a família é, antes de mais, respeitá-la na sua dignidade e na sua natureza antropológica de instituição baseada no contrato entre um homem e uma mulher, que origine uma comunidade específica, onde acontece a procriação e a caminhada em conjunto na descoberta da vida.”
Vamos tentar ler esta frase e juntar os seus constituintes semânticos, como se fosse um puzzle:

"Ajudar a família": Ajudar qual família? A sagrada família? A ideia (platónica) de família? Suponho que a ideia social de família, a construção abstracta que uma parte maioritária da sociedade reconhece como típica. Adiantemos um referente provisório: a ideia de um casal heterossexual com rebentos. Não foi fácil aqui chegar. Mas não estou a ver de que forma esta família hipotética possa ser "ajudada". Podem-se ajudar famílias concretas, não famílias abstractas. Ou então o Sr. cardeal patriarca está a falar de uma outra família qualquer e eu sou parvo (o que, em qualquer dos casos, não desminto.)

Esta nebulosa família é "ajudada" "respeitando-a na sua dignidade". Nova pausa. Inspiração profunda. Em que consiste "respeitar uma [hipotética] família na sua dignidade"? Suponho que o Sr. Cardeal responderia "não permitindo que pessoas do mesmo sexo pudessem casar". O que de facto é um desrespeito para muitas famílias reais, pessoas do mesmo sexo que vivem juntas há muitos anos, e que em muitos casos criaram filhos juntos. Prosseguindo.

"respeitá-la (...) na sua natureza antropológica de instituição baseada no contrato entre um homem e uma mulher"
A única paráfrase que me ocorre para este bizantinice enfumarada é "repudiar qualquer união não baseada no "contrato entre um homem e uma mulher"". Se alguém arranja melhor não se coíba. "[N]atureza antropológica" é um achado. "[I]nstituição baseada no contrato entre um homem e uma mulher" glosa uma definição ultrapassada de casamento, para além de que a coloração legal ("instituição", "contrato") soa grotesca. Mas ao menos corresponde a uma estratégia retórica coerente: por um lado dizer o mínimo possível em muitas palavras, por outro disfarçar com "boas" palavras ("respeito", "dignidade", "família") um ataque dogmático e infundado contra o casamento homossexual. Pois se exorta ao "respeito" pela "família" é porque está a ser "desrespeitada". Por quem? Pelo casamento homossexual. Como? Só deus sabe.

Chegado a este ponto, vejo que o post vai longo e eu não tenho muita paciência para o continuar. O resto da frase, bem como as demais declarações, são banalidades pomposas e qualquer pessoa com dois dedos de testa vê isso.
Termino com uma breve nota etimológica, que será do agrado do Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, pois outrora leccionou Grego. "Policarpo" é formado por dois compostos gregos: πολυ-, "muito", e καρπός, "fruto", e significa algo como "de muitos frutos", o que a alguns poderá parecer um nome desaconselhável para um membro do clero. Entre os seus estudantes a sua alcunha era "o Tutti Fruti". O que, convenhamos, é algo um tanto ou quanto abichanado. Convido o leitor que teve paciência para chegar a este ponto deste post longo e confuso para reler o texto, substituindo onde se lê "Cardeal Patriarca de Lisboa" por "Cardeal Tutti Fruti".

Nota: Cheguei ao artigo do Público através deste post de José Miguel Silva.

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