quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Do traduzir em linguagem


«Por que muitos que som leterados nom sabem trelladar bem de latim em linguagem, pensei escrever estes avisamentos pera ello necessarios.

Primeiro, conhecer bem a sentença do que ha de tornar e poê-la enteiramente, nom mudando, acrecentando, nem minguando algũa cousa do que está scripto.

O segundo, que nom ponha pallavras latinadas nem doutra linguagem, mas que todo seja em nosso linguagem scripto, mais achegadamente ao geeral boõ custume de nosso fallar que se poder fazer.

O terceiro, que sempre se ponham pallavras que sejam dereita linguagem, respondentes ao latim, nom mudando hũas por outras, assi que onde el disser per latim "scorregar", nom ponha "afastar", e assi em outras semelhantes, entendendo que tanto monta hũa como a outra; por que grande deferença faz, pera se bem entender, seerem estas pallavras propriamente scriptas.

O quarto, que nom ponha pallavras que, segundo o nosso custume de fallar, sejam avidas por desonestas.

O quinto, que guarde aquella ordem que igualmente deve guardar em qual quer outra cousa que se screver deva, scilicet: que screva cousas de boa sustancia, claramente, pera se bem poder entender, e fremoso o mais que elle poder, e curtamente quanto for necessario. E pera esto aproveita muito parragrafar e apontar bem.

(...)

E por que, per vosso requerimento, tornei em linguagem simprezmente rimada de seis pees de huũ consoante a oraçom de "justo juiz Jesu Cristo", vo-la fiz aqui screver, a qual, por a fazer consoar, nom pode compridamente dar seu linguagem, nem a fiz em outra milhor forma, por concordar com a maneira e teençom que era feicta em latim.

Justo juiz Jesu Cristo,
Rei dos Rex e boõ senhor,
que coo padre reinas sempre,
hu he d'ambos huũ
amor:
praza-te de me ouvir
pois me sento pecador.

Tu que do ceeo descendisti
enno ventre virginal,
hu, tomando logo carne,
livraste o segre de mal,
per teu sangue precioso
de perdiçom eternal

...

E traladei do livro dos Stabellicimentos de sam Joham Casiano, por exempro, esta parte de huũ capitollo ajuso scripto, ao pee da letera, que chamam os leterados "a contexto", o qual a alguũs nom muito praz, por seer scripto na maneira latinada. E queriam que se tirasse a sentença posta em mais geeral maneira de fallar. E outros dizem que bem lhes parece.

Porem, quando mandardes tornar algũa leitura de latim em nossa linguagem, a maneira que mais vos prouver mandaae que tenha aquel que dello tever carrego.»


D. Duarte (1391-1438), Leal Conselheiro
ed. F. Costa Marques, Lisboa, 1942

1 comentário:

  1. Uma proposta de versão em português mais próximo do contemporâneo.


    «Porque muitos que são letrados não sabem traduzir bem de latim em linguagem [portuguesa], pensei escrever estes avisamentos para isso necessários.

    Primeiro, conhecer bem a sentença que há-de traduzir, e pô-la inteiramente, não mudando, acrescentando nem minguando alguma coisa do que está escrito.

    O segundo, que não ponha palavras alatinadas nem de outra linguagem, mas que tudo seja em nossa linguagem escrito, o mais achegadamente ao geral bom costume de nosso falar que se puder fazer.

    O terceiro, que sempre se ponham palavras que sejam direita linguagem, correspondentes ao latim, não mudando umas por outras, assim que onde ele [o autor] disser em latim "escorregar", não ponha [o tradutor] "afastar", e assim em outras semelhantes, entendendo que tanto importa uma como a outra, porque grande diferença faz, para se bem entender, serem estas palavras propriamente escritas.

    O quarto, que não ponha palavras que, segundo o nosso costume de falar, sejam tidas por desonestas.

    O quinto, que guarde aquela ordem que igualmente deve guardar em qualquer outra coisa que se escrever deva, isto é: que escreva coisas de boa substância, claramente, para se bem poder entender, e formoso o mais que ele puder, e curtamente quando for necessário. E para isto aproveita muito fazer parágrafos e pontuar bem.

    (...)

    E porque, por vosso requerimento, tornei em linguagem simplesmente rimada de seis pés de uma só rima consoante a oração "justo juiz Jesus Cristo", vo-la fiz aqui escrever, a qual, para a fazer rimar, não pude traduzir rigorosamente, nem a fiz em outra melhor forma, para corresponder com a maneira e intenção que era feita em latim.

    Justo juiz Jesus Cristo
    Rei dos Reis e bom senhor,
    que com o Pai reinas sempre
    onde há de ambos um amor:
    praza-te de me ouvir,
    pois me sinto pecador.

    Tu que do céu desceste
    para o ventre virginal,
    onde tomando logo carne
    licvaste o mundo do mal,
    pelo teu sangue precioso,
    da perdição eternal.

    ...

    E traduzi do livro dos Estabelecimentos de São João Cassiano, para exemplo, esta parte de um capítulo abaixo transcrito, ao pé da letra, que chamam alguns letrados "a contexto", o qual a alguns não muito praz, por ser escrito na maneira alatinada. E queriam que se traduzisse a sentença posta em mais geral maneira de falar. E outros dizem que bem lhes parece.

    Por isso, quando mandardes traduzir alguma leitura de latim em nossa linguagem, a maneira que mais vos aprouver mandai que a tenha aquele que disso tiver o encargo.»

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