«Por que muitos que som leterados nom sabem trelladar bem de latim em linguagem, pensei escrever estes avisamentos pera ello necessarios.
Primeiro, conhecer bem a sentença do que ha de tornar e poê-la enteiramente, nom mudando, acrecentando, nem minguando algũa cousa do que está scripto.
O segundo, que nom ponha pallavras latinadas nem doutra linguagem, mas que todo seja em nosso linguagem scripto, mais achegadamente ao geeral boõ custume de nosso fallar que se poder fazer.
O terceiro, que sempre se ponham pallavras que sejam dereita linguagem, respondentes ao latim, nom mudando hũas por outras, assi que onde el disser per latim "scorregar", nom ponha "afastar", e assi em outras semelhantes, entendendo que tanto monta hũa como a outra; por que grande deferença faz, pera se bem entender, seerem estas pallavras propriamente scriptas.
O quarto, que nom ponha pallavras que, segundo o nosso custume de fallar, sejam avidas por desonestas.
O quinto, que guarde aquella ordem que igualmente deve guardar em qual quer outra cousa que se screver deva, scilicet: que screva cousas de boa sustancia, claramente, pera se bem poder entender, e fremoso o mais que elle poder, e curtamente quanto for necessario. E pera esto aproveita muito parragrafar e apontar bem.
(...)
E por que, per vosso requerimento, tornei em linguagem simprezmente rimada de seis pees de huũ consoante a oraçom de "justo juiz Jesu Cristo", vo-la fiz aqui screver, a qual, por a fazer consoar, nom pode compridamente dar seu linguagem, nem a fiz em outra milhor forma, por concordar com a maneira e teençom que era feicta em latim.
Justo juiz Jesu Cristo,
Rei dos Rex e boõ senhor,
que coo padre reinas sempre,
hu he d'ambos huũ amor:
praza-te de me ouvir
pois me sento pecador.
Tu que do ceeo descendisti
enno ventre virginal,
hu, tomando logo carne,
livraste o segre de mal,
per teu sangue precioso
de perdiçom eternal
...
E traladei do livro dos Stabellicimentos de sam Joham Casiano, por exempro, esta parte de huũ capitollo ajuso scripto, ao pee da letera, que chamam os leterados "a contexto", o qual a alguũs nom muito praz, por seer scripto na maneira latinada. E queriam que se tirasse a sentença posta em mais geeral maneira de fallar. E outros dizem que bem lhes parece.
Porem, quando mandardes tornar algũa leitura de latim em nossa linguagem, a maneira que mais vos prouver mandaae que tenha aquel que dello tever carrego.»
D. Duarte (1391-1438), Leal Conselheiro
ed. F. Costa Marques, Lisboa, 1942
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
Do traduzir em linguagem
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Uma proposta de versão em português mais próximo do contemporâneo.
ResponderEliminar«Porque muitos que são letrados não sabem traduzir bem de latim em linguagem [portuguesa], pensei escrever estes avisamentos para isso necessários.
Primeiro, conhecer bem a sentença que há-de traduzir, e pô-la inteiramente, não mudando, acrescentando nem minguando alguma coisa do que está escrito.
O segundo, que não ponha palavras alatinadas nem de outra linguagem, mas que tudo seja em nossa linguagem escrito, o mais achegadamente ao geral bom costume de nosso falar que se puder fazer.
O terceiro, que sempre se ponham palavras que sejam direita linguagem, correspondentes ao latim, não mudando umas por outras, assim que onde ele [o autor] disser em latim "escorregar", não ponha [o tradutor] "afastar", e assim em outras semelhantes, entendendo que tanto importa uma como a outra, porque grande diferença faz, para se bem entender, serem estas palavras propriamente escritas.
O quarto, que não ponha palavras que, segundo o nosso costume de falar, sejam tidas por desonestas.
O quinto, que guarde aquela ordem que igualmente deve guardar em qualquer outra coisa que se escrever deva, isto é: que escreva coisas de boa substância, claramente, para se bem poder entender, e formoso o mais que ele puder, e curtamente quando for necessário. E para isto aproveita muito fazer parágrafos e pontuar bem.
(...)
E porque, por vosso requerimento, tornei em linguagem simplesmente rimada de seis pés de uma só rima consoante a oração "justo juiz Jesus Cristo", vo-la fiz aqui escrever, a qual, para a fazer rimar, não pude traduzir rigorosamente, nem a fiz em outra melhor forma, para corresponder com a maneira e intenção que era feita em latim.
Justo juiz Jesus Cristo
Rei dos Reis e bom senhor,
que com o Pai reinas sempre
onde há de ambos um amor:
praza-te de me ouvir,
pois me sinto pecador.
Tu que do céu desceste
para o ventre virginal,
onde tomando logo carne
licvaste o mundo do mal,
pelo teu sangue precioso,
da perdição eternal.
...
E traduzi do livro dos Estabelecimentos de São João Cassiano, para exemplo, esta parte de um capítulo abaixo transcrito, ao pé da letra, que chamam alguns letrados "a contexto", o qual a alguns não muito praz, por ser escrito na maneira alatinada. E queriam que se traduzisse a sentença posta em mais geral maneira de falar. E outros dizem que bem lhes parece.
Por isso, quando mandardes traduzir alguma leitura de latim em nossa linguagem, a maneira que mais vos aprouver mandai que a tenha aquele que disso tiver o encargo.»