domingo, 8 de maio de 2011

A sudden blow

Quando chegou àquela cidadezinha perto de Mégara onde contraiu a febre de que viria a morrer, é possível que já então Públio Maro (a.k.a. Vergílio) tivesse revisto aquele verso do Canto VI da Eneida, em que escrevera ibant obscuri sola sub nocte per umbram, que é (e não me lembro se já escrevi sobre isto) um verso perfeito, a mais perfeita forma de representação de alguma coisa de que tenho conhecimento ou memória, mas é intraduzível, nós começamos a tentar vertê-lo e o sentido perde-se para sempre.
O movimento da descida de Eneias ao Hades acompanhado pela Sibila, muito só na noite só, a coberto de penumbra, não é traduzível. Penso que talvez porque o verso conteve tão perfeitamente o movimento do que queria dizer. Assim, é uma coisa que está apenas na respiração daquele verso e qualquer tentativa de traduzi-lo, implica que o estilhacemos. Não é tanto o que verso diz, isso é fácil, mas o modo como está dito, este que é o cerne do modo como a literatura imita a vida, e que é uma coisa talvez sem mistério: um modo de ver que uma vez dito instaure entre nós e a realidade um estranhamento (a ideia não é minha, é de um senhor chamado Viktor Shklovsky), algo que se calhar até já vimos ou ouvimos mas que naquele contexto está arredado do que é, como Bartleby e o seu constante I'd prefer not to, ou, neste caso, um tipo e uma tipa que desceram ao inferno (que se a memória não me falha era literalmente um lugar na baía de Nápoles). Ibant obscuri sola sub nocte per umbram é uma coisa fora do tempo, que podia ficar a ecoar na nossa cabeça até não ter sentido e ainda assim seria belo, inutilmente belo.
E enquanto pensava nisto lembrei-me daquele verso inicial de Leda and the Swan de Yeats, e pensei que não podia haver melhor definição para aquilo que é um verso que nos diga alguma coisa, um verso que nos diga alguma coisa é sempre a sudden blow. Aliás, e generalizando, o momento em que alguma coisa nos prende é sempre a sudden blow.

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